domingo, 2 de julho de 2023

O assédio laboral é algo insidioso que vai destruindo a vítima

 

A 1 de julho, fez títulos, em diversos artigos do Diário de Notícias (DN) online, o assédio laboral na classe médica, com declarações de vítimas, da Federação Nacional dos Médicos (FNAM), do Diretor Executivo do Serviço Nacional de Saúde (DE-SNS), do bastonário da Ordem dos Médicos (OM) e de uma advogada que se dedica ao tema.  

O assédio laboral é proibido e punido, nos termos da Lei n.º 73/2017, de 16 de agosto, que reforça o quadro legislativo para a prevenção da prática de assédio, procedendo à 12.ª alteração ao Código do Trabalho (CT), aprovado em anexo à Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, à 6.ª alteração à Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LGTFP), aprovada em anexo à Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, e à 5.ª alteração ao Código de Processo do Trabalho (CPT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 480/99, de 9 de novembro. E a Organização Internacional do Trabalho (OIT) rejeita, in limine, esta prática. Todavia, tornou-se realidade na classe médica e transversal a muitas profissões. A OM e as estruturas sindicais assumem que é um comportamento “reiterado”, “silenciado” e “sem punição”. E as vítimas resistem, habituam-se ou desistem, sendo poucas as que avançam com queixas, pois impera o medo de represálias e a falta de confiança nas soluções.

Assim, ao invés do apregoado, o assédio é uma das principais razões do burnout, do absentismo e das saídas do SNS. A proibição legal, mais antiga que a lei de reforço, mencionada supra, é clara, mas é difícil fazer prova, sobretudo porque os assediantes são, habitualmente, chefes. Não obstante, as narrativas feitas ao DN são de quem ainda crê na mudança. Ressalta o caso paradigmático de alguém que avançou com queixas no sindicato, na OM, na Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) e no Tribunal Trabalho (TT). Porém, na primeira audiência para julgamento, a juíza pressionou o acordo, que foi aceite. E, três anos depois, reativa os processos, porque o assédio se mantém, e o serviço considerou que o caso era de conflito laboral.

A lei proíbe esta prática desde 2003 (Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto, que aprovou o primeiro CT), precisamente há 20 anos, e define o combate a este comportamento como um direito de qualquer trabalhador.

O diretor executivo do SNS diz que o assédio é realidade que não se pode ignorar e a prevenção e o combate do mesmo têm de ser uma prioridade das instituições públicas e privadas.   

O bastonário da OM promete um canal informático seguro para receber denúncias anónimas.

A OIT, que se manifesta, liminarmente, contra a prática do assédio moral no local de trabalho, lançou, em 2021, uma campanha de sensibilização, para que todos os Estados promovam e adotem códigos de conduta que travem o assédio. E, em junho desse ano, aprovou o tratado internacional sobre violência e assédio no mundo do trabalho, que passou a vigorar, no dia 25 – dois anos depois de ter sido adotado pela Conferência Internacional do Trabalho (CIT), em Genebra. Em 2019, seis países ratificaram a Convenção sobre Violência e Assédio (Argentina, Equador, Fiji, Namíbia, Somália e Uruguai), ficando legalmente vinculados às disposições da Convenção, um ano após a ratificação, e a ter de reconhecer “o direito de todas as pessoas a um mundo de trabalho livre de violência e assédio”.

A advogada Maria Antónia Beleza, do gabinete jurídico da FNAM, com muita da sua atividade dedicada às queixas e processos de assédio moral no trabalho, é perentória, ao vincar: “Sem legislação mais dura, o assédio continuará a ser uma prática reiterada.” E diz que o medo silencia a realidade, os juízes não estão preparados para estes casos, as administrações são cúmplices dos assediantes, a tutela devia ser mais interveniente e a Comissão para a Igualdade “deveria estar mais atenta, porque há muito a fazer”.

Na verdade, o assédio laboral visa, em última instância, levar o profissional a sair do serviço ou da unidade onde está e a denunciar o contrato de trabalho – o que põe em causa a estabilidade do emprego e da vida familiar. O/a médico/a pensa que, denunciando o contrato, corre riscos, principalmente se tiver de ir para local distante de onde tem a vida organizada. E prefere fazer o que define o próprio assédio que é ir aguentando, isolando-se e tentando passar pelos pingos da chuva. Assim, evita ser o foco de atenção, anula-se, não progride na carreira e chega à depressão, na tentativa de esgotar, ao máximo, as hipóteses de não ter de denunciar o contrato. Além disso, vem dos tribunais a dificuldade do ónus prova, com a dificuldade de arrolar testemunhas.

A presidente da FNAM, Joana Bordalo e Sá, assume que o assédio é prática reiterada na classe, ainda “silenciada” e sem “punição”. Porém, chegam cada vez mais queixas, sobretudo depois de esta estrutura ter lançado o Guia de Apoio no Combate ao Assédio.

Nos últimos meses, o Sindicato dos Médicos da Zona Norte (SMZN), que integra a FNAM, recebeu 18 queixas por assédio laboral, cinco das quais depois de abril e do lançamento do guia. Nos sindicatos das zonas Centro e Sul, há dez queixas a decorrer. Assim, aquela dirigente sindical conclui: Quase se pode dizer que o número de queixas disparou este ano, mas, mesmo assim, ainda estão longe da dimensão desta realidade.”

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Já a 27 de abril, o Jornal de Notícias (JN) dava conta de que a FNAM, confirmando que há “cada vez mais queixas de assédio moral” a chegar aos sindicatos e que a realidade é do quotidiano da classe, elaborou um guia de informação para que os médicos saibam quais as situações que se enquadram neste tipo de crime, as tipologias, como proceder e o apoio que podem ter.

A presidente da FNAM revela que o alerta começou a soar, quando muitos profissionais pediam ao sindicato aconselhamento e relatavam situações que configuravam assédio moral. Por isso, a FNAM decidiu avançar com a elaboração de um guia de informação sobre o assédio, constante no seu site, para que todos os médicos e médicas saibam “como agir nestas situações”, garantindo-se, “desde logo, apoio, aconselhamento, proteção e sigilo total”.

Joana Bordalo e Sá dizia que “a esmagadora maioria das situações que nos chegam são de assédio moral, porque assédio sexual, felizmente, quase não existe”. O tema está a preocupar a classe e é importante que seja abordado com clareza, pois, como salienta, “as situações são mais recorrentes do que se imagina, fazem parte da realidade”. Dantes, “as pessoas não tinham noção disto, aceitavam e habituavam-se”, embora com sofrimento e acabando, muitas vezes, com burnout, ou decidindo sair do SNS ou até da profissão. Hoje, a classe está mais informada e queixa-se mais. Assim, o facto de haver mais queixas não significa mais situações do que antes, mas a “mudança geracional na forma de encarar o assédio e [de] prosseguir com as queixas”. Por outro lado, o aumento das queixas está relacionado com a degradação das condições de trabalho dos médicos e com a sobrecarga de trabalho. Com efeito, “o assédio moral contribui, em grande escala, para o mau ambiente de trabalho, para o burnout.

Como refere o documento da FNAM, “o assédio é um comportamento contínuo, praticado normalmente pelo empregador ou por um superior hierárquico, manifestamente humilhante, vexatório e atentatório da dignidade, e que tem consequências hostis no/a trabalhador/a.”

Segundo o CT, “é assédio todo o comportamento indesejado, nomeadamente o baseado em fator de discriminação, praticado no momento do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objetivo ou efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador” (artigo 29.º do CT).

O guia da FNAM alerta para o facto de “o assédio no local de trabalho ter repercussões na saúde mental dos médicos” e Joana Bordalo e Sá relembra que “as situações surgem, sobretudo, do lado das chefias, intermédias ou de topo”, atingindo, sobretudo, “os profissionais mais jovens”. Porém, qualquer médico pode vivenciar uma situação destas: “Muitas vezes, nem sequer parte das chefias, mas de um colega que lança uma frase insultuosa e que a vai repetindo ao longo do tempo, provocando sofrimento e humilhação na vítima.”. Até pode surgir de inferior para superior que esteja fragilizado.

Continua a haver “um medo enorme para avançar com as queixas”: “Os médicos não se sentem seguros a usar os canais internos institucionais, nos hospitais ou noutras unidades, para fazer a denúncia e/ou receber a devida proteção, sobretudo quando o assédio é feito por um superior hierárquico, sendo que, nos internos, é sempre pior, pois sentem-se como o elo mais fraco e têm medo de sofrer represálias.” Ora, as próprias unidades deveriam ter canais seguros de apoio aos profissionais, uma falha colmatada por este guia, que tem o objetivo de elucidar os médicos sobre como agir e o tipo de apoio que podem conseguir.

O documento da FNAM dá conta da dimensão que podem ter as situações de assédio, sendo o “isolamento social” um dos principais indicadores, tal como “a não-atribuição, sistemática, de funções efetivas, o esconder informações necessárias ao desempenho de funções”, a perseguição profissional ou a definição de objetivos com prazos impossíveis de atingir.

O mesmo sucede em casos de “desvalorização sistemática do trabalho”, de “atribuição de funções desadequadas”, de “instruções de trabalho confusas e imprecisas”, de “bloqueio contínuo do trabalho”, de “apropriação de ideias, propostas, projetos ou trabalhos, sem identificar o autor”, de intimidação ou [de] ameaças sistemáticas de despedimento” ou de criação de “situações de stresse, para gerar descontrolo ou humilhação pessoal”, incluindo a “humilhação por caraterísticas físicas, psicológicas ou outras”, bem como divulgação de rumores, comentário malicioso, crítica sistemática em público, gritos, intimidação e insinuação de problemas mentais ou familiares.

Sobre o assédio sexual, o guia menciona como exemplos: “insinuações sexuais, piadas ou comentários – sentidos como ofensa, sobre o aspeto ou corpo –, piadas ou comentários ofensivos de caráter sexual” ou, ainda, contacto físico não desejado (tocar, mexer, agarrar, apalpar, beijar ou tentar beijar). Há, ainda, outras formas como a agressão ou tentativa de agressão sexual e o aliciamento, através de pedidos de favores sexuais associados a promessas de obtenção de emprego ou de melhoria das condições de trabalho, ou o envio reiterado de desenhos, de fotografias ou de imagens da Internet, indesejadas e de teor sexual, ou telefonemas, cartas, SMS ou e-mails indesejados, de caráter sexual.

A vítima deve “manter o registo dos factos ocorridos, nomeadamente o local e datas onde ocorreram, o que foi dito ou feito, o que sentiu, quem estava envolvido e potenciais testemunhas, cartas, e-mails e mensagens”; não deve falar da vida pessoal; deve desencorajar o/a agressor/a, tentando ser sempre profissional; deve evitar conversar com o/a agressor/a sós, tendo sempre por perto um/a colega de confiança.

Segundo o guia da FNAM, o assédio é moral, quando se traduz em ataques verbais de conteúdo ofensivo ou humilhante, ou em atos mais subtis, podendo abranger a violência física e psicológica, visando diminuir a autoestima da vítima e, até, a sua desvinculação do posto de trabalho; é sexual, quando os comportamentos são de caráter sexual, como convites de teor sexual, tentativa de contacto físico constrangedor e inoportuno, chantagem para obtenção de emprego ou progressão laboral em troca de favores sexuais e gestos obscenos.

O assédio é identificável por comportamento indesejado, com incómodo injusto ou com prejuízo para a vítima (tem alguma duração no tempo, não é ato isolado); pela intenção imediata de exercer pressão moral sobre a vítima; pelo objetivo final ilícito, eticamente reprovável, de obter um efeito psicológico de constrangimento desejado pelo assediante.

Os tipos de assédio que se conhecem são: assédio moral discriminatório, se se baseia em fator discriminatório, como ascendência, idade, género, orientação sexual, situação familiar, situação económica, etc.; assédio moral não discriminatório, se se manifesta pelo seu caráter continuado e insidioso e tem efeitos hostis; assédio emocional-psicológico, se acontece por animosidade, antipatia, inveja, desconfiança ou insegurança, normalmente para obter um efeito psicológico na vítima; e assédio estratégico, se se traduz em técnica perversa de gestão, com objetivos estratégicos definidos, muitas vezes como meio para contornar as proibições de despedimento sem justa causa, ou como instrumento de alteração das relações de poder no local de trabalho ou para implementar determinados padrões de cultura empresarial ou de disciplina.

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A prevenção e o combate são necessários na profissão médica e em todas as outras!

2023.07.02 – Louro de Carvalho

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