domingo, 9 de julho de 2023

Evolução do conhecimento farmacêutico e da sua aplicação aos doentes

 

O termo “farmácia”, proveniente do termo grego “phármakon”, que significa medicamento, é associado à deusa grega Pharmakis, titular do conhecimento terapêutico, sobretudo, das plantas.

Desde os primórdios, as doenças e os acidentes, pela debilitância que originam, concitaram a atenção individual e coletiva, para minorar ou anular os seus perniciosos efeitos. Assim, a busca de substâncias e de processos para a cura é constante e levou o homem ao encontro do fármaco.

No Paleolítico, iniciou-se, para fins curativos, a utilização de plantas, de derivados de animais e de minerais. E as terapêuticas assentavam em crenças e em mitos, segundo os quais demónios causadores de doença e deuses proporcionavam a cura aos que a merecessem.

Na antiga Mesopotâmia, os Sumérios dirigiam preces aos deuses Ea, Anu, Inanna-Istar, Chamach e Marduk, divindades relacionadas com o quotidiano das pessoas: dor de cabeça, pesadelos e outros achaques. Outros povos da Mesopotâmia prestavam culto a outras divindades conexas com a Medicina, nomeadamente, Ninazu deus-médico e o seu filho Ningishrida, representado por dupla cabeça de serpente, e Gula, deusa da arte de curar.

Nas civilizações mesopotâmicas, era comum a crença de que os deuses decidiam da incidência da doença, uma consequência de comportamentos que desagradavam às divindades. E os deuses podiam curar o doente em recompensa por uma ação benéfica ou pelo arrependimento.

Os médicos eram os sacerdotes-médicos-farmacêuticos. Os sacerdotes separaram-se do médico-farmacêutico na Antiguidade, ao passo que o médico se separou do farmacêutico na Idade Média.

Médicos e farmacêuticos, apesar de estes poderem ser barbeiros ou sacerdotes, gozavam de prestígio social, devido à profissão, mas tinham responsabilidades e riscos associados, pois cortavam-lhes a mão ou escravizavam-nos, se um homem livre morresse numa operação.

Apesar de o tratamento da Mesopotâmia ter origem religiosa, encontrou-se uma série de tabuinhas com informação acerca das doenças, das terapêuticas e dos medicamentos (de origem animal, mineral e vegetal). Referia-se a via de administração de preparações medicamentosas e de veículos empregues, sendo os mais utilizados o vinho, a cerveja e diversos óleos. E Ficou a referência ao cultivo e à comercialização de plantas medicinais, assim como ao fabrico de diversos produtos como corantes, sabões e cosméticos. Sobressai a tábua de Nippur, que tem o título de documento medicinal mais antigo, remonta ao século III a. C. e contém cerca de 15 receitas.

A prática farmacêutica – bem evidenciada: até havia uma rua na Babilónia destinada ao comércio farmacêutico – englobava operações como secagem, pulverização, extração de sucos, filtração, decantação, maceração, digestão e ebulição.

Os Egípcios foram tidos como povo cuidadoso, quanto ao seu físico. Está ligada à beleza e ao cuidado com a pele grande parte dos seus objetos, nomeadamente produtos de maquilhagem e perfumes. Eram crentes na relação entre a doença e o castigo divino. Assim, havia a associação de divindades à prática médica, com destaque para: Toth, deus da ciência e da medicina e patrono dos médicos, e Imhotep, médico divinizado a quem os gregos chamaram Asclépio. E estudos efetuados em múmias revelam que esta civilização padecia de diversas patologias, nomeadamente oculares, de bexiga, dos intestinos, tuberculose, doenças parasitárias, doenças da pele, obesidade, hipertrofia genital, entre outros problemas. A função renal era desconhecida. E os tratamentos eram acompanhados por palavras mágicas.

Os doentes podiam ser tratados por médicos e por mágicos: os médicos recorriam à magia para a preparação de medicamentos e os mágicos recorriam a medicamentos. Os médicos-farmacêuticos do Egito são reconhecidos pela curiosidade e pelo sentido crítico. São abundantes as anotações deixadas sobre os tratamentos efetuados. Quando a Medicina e a Farmácia se separam da religião, começaram a surgir funções e tarefas farmacêuticas: a recolha e armazenamento dos compostos terapêuticos, a preparação dos medicamentos e a sua conservação.

No Mundo Clássico, ou seja, nas civilizações grega e romana, também há relatos da existência de deuses conexos com a Medicina e com a Farmácia (Pharmakis, já referida; Apolo, deus fundador da Medicina; Artemisa, irmã de Apolo com poderes curativos para as mulheres; Asclépio, Símbolo da Medicina; e Higia, filha de Asclépio, deusa da Saúde e da Higiene), o que mostra a relação entre a doença e as causas divinas. Porém, foram os Gregos quem iniciou a explicação da doença como evento natural.

Por volta do ano 500 a.C., os filósofos questionaram a origem da doença e iniciaram a procura da compreensão da Natureza. Surge, então, a teoria dos quatro elementos – água, ar, fogo e terra – matérias a partir das quais tudo é constituído. Hipócrates (460-355 a.C.), médico grego e tido como o “Pai da Medicina”, desenvolveu a teoria dos humores (sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra) para explicar a causa das doenças, baseado na teoria dos quatro elementos. Os desequilíbrios entre os quatro humores estariam na base do aparecimento da doença. O trabalho dos médicos era determinar, conforme o estado do doente, que humor estaria em falta ou em excesso e estabelecer a medicação adequada.

Iniciou-se, então, a “farmacologia ocidental”. Vários documentos mostram como estava avançada a prática farmacêutica, referindo o uso de cataplasmas, de gargarejos, de pílulas, de unguentos, de óleos, de colírios, de ceratos, de inalações, entre outros. E surgiram novas profissões, no âmbito farmacêutico, como vendedores de medicamentos e preparadores de remédios.

É difícil distinguir entre a medicina grega e a romana, pois a medicina romana foi fortemente influenciada pela grega, daí a adoção do termo medicina greco-romana.

Aquando da formação do Império Romano, os médicos gregos tiveram papel fundamental na implementação de uma prática médica mais direcionada para o medicamento. Entre os médicos responsáveis pela medicina greco-romana, destacam-se Pedanius Discórides (século I d. C.), médico e naturalista grego de elevada importância para a evolução da Medicina. Foi o autor do maior guia farmacêutico da antiguidade, De Materia Medica, com referências a mais de 600 substâncias ativas derivadas de plantas, 35 produtos de origem animal e 90 minerais. É uma obra extraordinariamente completa (na génese das disciplinas de Farmacologia e de Farmacognosia), na qual Discórides descrevia todo o tipo de informação para cada planta, desde o seu habitat à posologia e ao modo de administração. Outra personalidade muito importante, contemporânea a Discórides foi Celso, que, apesar das dúvidas quanto à sua profissão, médico ou enciclopedista, dispôs os medicamentos em simples ou compostos. Os simples eram os diuréticos, os purgantes, os narcóticos, os sudoríferos; e os compostos eram divididos em pílulas, gargarejos, emplastros, unguentos, colírios e antídotos. E Galeno, médico grego nascido no século II d. C., na obra De methodo Medendi (A Arte de Curar), desenvolve temas, como as propriedades e a composição dos medicamentos simples e compostos, com base na doutrina hipocrática.

A terapêutica de Galeno (“Pai da Farmácia”) provocava o efeito contrário ao sintoma do doente, por exemplo, se este sentisse frio, seria tratado com medicamento quente. E Galeno descreveu a importância de aspetos como a correta prescrição, o modo de administração, a quantidade necessária de princípio ativo para exercer efeito terapêutico e a duração do tratamento.

A Medicina árabe do século VII teve como objetivo a descoberta e a obtenção de substâncias dotadas de capacidades terapêuticas. O contacto com a alquimia permitiu considerável avanço na Medicina e na Farmácia. Foi quando surgiram os formulários farmacêuticos com fórmulas e receitas médicas e com o modo de preparação. Alguns consideram que foram os Árabes os responsáveis pela separação da Farmácia da Medicina, assim como do desenvolvimento de novas formas farmacêuticas como xaropes, conservas, confeções e elixires.

Nesta altura, o conceito de farmácia é alterado e são exigidos conhecimentos técnicos e científicos para exercer a profissão. O farmacêutico é o responsável pelo conhecimento, pela procura e pela manipulação das substâncias terapêuticas, de modo a obter medicamentos de fácil administração aos doentes. O medicamento deve ser o mais semelhante possível ao alimento e só pode utilizar-se quando a alimentação não consegue restabelecer o equilíbrio do organismo. Era grande a importância do consumo e da qualidade de água. E, para diabéticos, recorria-se à preparação de fórmulas à base de leite de vaca, que seria capaz de engrossar o sangue.  

Na Europa, os avanços significativos na área da saúde iniciaram-se no século XII, com o aparecimento de três profissionais de saúde: médico, cirurgião e boticário (de “apotheca”, armazém, no Latim). Em 1240, o rei Frederico II da Sicília, publicou a Magna Carta da Farmácia, pela qual a profissão farmacêutica foi reconhecida como independente da médica.

A farmácia europeia da época medieval, tendo por base a influência árabe, é caraterizada por um espaço pequeno, tipo armazém aberto para o mercado. Atrás do balcão, havia prateleiras com os medicamentos simples e compostos. Procurava-se a utilização de substâncias exóticas, como o corno de unicórnio, animal mítico que só podia se captado por uma jovem virgem. Beber um líquido a partir do corno era uma forma de proteção contra a morte. Os farmacêuticos da altura contornavam a incapacidade de captura deste animal com a utilização de cornos de rinoceronte, de veado ou de antílope. O corno era o símbolo da farmácia da Europa Ocidental.

A Idade Média ficou também marcada pelo início da produção de perfumes, com álcool na sua constituição, uma vez que foi em 1320 que os químicos italianos desenvolveram o instrumento para a produção de álcool, denominado de serpentina de refrigeração.

O Renascimento questionava tudo o que fora desenvolvido até aí. E a saúde não foi exceção. Filipe Aurélio Teofrasto Bombastus von Hohenheim, médico suíço que veio a adotar o nome de Paracelso (pela vontade de demonstrar superioridade em relação ao enciclopedista romano Celso), contestou tudo o que até aí fora escrito sobre Medicina e sobre Farmácia, desde a teoria dos elementos até à teoria dos humores. E formulou a nova teoria que defendia que a doença resulta, não de desequilíbrio entre os quatro humores vitais, mas de anomalia do organismo, sendo que a saúde depende do equilíbrio de três elementos: enxofre, mercúrio e sal. A anomalia, que é do foro químico, tem de ser tratada pela utilização de químicos. A terapia de Paracelso incluía, na sua maioria, tinturas, extratos e essências – em oposição aos xaropes e extratos até aí utilizados – considerados como químicos, já que eram obtidos a partir de processos de separação. Também agora, por oposição ao conceito galénico, surge nova teoria quanto à utilização dos compostos. Os seguidores de Paracelso sustentavam que o idêntico cura o idêntico, isto é, o medicamento utilizado deve ser específico para cada patologia.

A época paracelsiana destacou-se pelos avanços a nível químico e metalúrgico, na medida em que foram desenvolvidos os processos de obtenção de compostos metálicos, visando a utilização terapêutica de diversos metais como ferro, cobre, chumbo, entre outros. E foi então que o farmacêutico deixou de ser apenas botânico e passou a ser químico e botânico e os processos químicos como a destilação, por exemplo, passaram a ser praticados nas farmácias.

Hoje, distingue-se entre laboratório – para investigação e produção do medicamento –, farmácia hospitalar (armazém do medicamento para ser aplicado no hospital) e unidade comercial farmacêutica (farmácia comunitária), para distribuição onerosa do medicamento, habitualmente sob prescrição médica, bem como o aconselhamento e o apoio o doente.

Enfim, é longa, espinhosa e controversa a diacronia da ciência e da sua aplicação.

2023.07.09 – Louro de Carvalho

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