quarta-feira, 26 de julho de 2023

Foi a uma mulher que o Ressuscitado apareceu em primeira mão

 

Para celebrar a figura de Maria Madalena como como “apóstola dos apóstolos”, pois é a primeira testemunha bíblica da Ressurreição de Jesus, o Papa Francisco elevou a memória desta importante mulher dos Evangelhos à categoria de “festa”, celebrada a 22 de julho, com dignidade idêntica às festas dos demais apóstolos e evangelistas. Porém, alguns setores eclesiais entendem que se devem tirar todas as consequências desta índole do episódio, nomeadamente, quanto ao lugar que as mulheres ocupam na vida atual da Igreja e quanto ao que deveriam ocupar.

Muitos continuam longe de Maria Madalena ou de Jesus, com ideias obsoletas, como, por exemplo a de que se trata de uma prostituta que se arrependeu, quando encontrou Jesus. Todavia, a Bíblia não permite tirar essa conclusão.

Como refere a carta datada de 16 de julho, subscrita pelo arcebispo Arthur Roche, secretário do Dicastério para o Culto Divino, “a tradição ocidental, em especial desde o tempo de [São] Gregório Magno, identificou Santa Maria Madalena” como “a mulher que ungiu os pés de Cristo com perfume na casa de Simão, o fariseu; e [Maria] a irmã de Lázaro e Marta, como a mesma pessoa”. Esta interpretação “continuou a influenciar os autores eclesiásticos ocidentais, a arte cristã e os textos litúrgicos relativos a esta Santa”, escreve Arthur Roche. Foi, do meu ponto de vista a intromissão, da perniciosa da tradição eclesiástica na veneranda tradição bíblico-eclesial.

O certo é que Maria Madalena se encontrava entre os discípulos, esteve presente no momento em que Jesus foi crucificado e foi a primeira a descobrir o túmulo vazio, a encontrar o Ressuscitado e a corresponder ao pedido para que fosse anunciar essa boa nova. Daí o epíteto de “apóstola dos apóstolos”, proposto por S. Tomás de Aquino, na linha da boa tradição eclesial, e que, nos últimos anos, tem vindo a ser recuperado.

Nesta linha, o movimento católico FutureChurch (Igreja do Futuro), com sede nos Estados Unidos da América (EUA), tomou a iniciativa de um abaixo-assinado, aberto a mais assinaturas, para que, no mais importante dia litúrgico do ano – o domingo de Páscoa – haja uma leitura completa da narrativa da Ressurreição que inclua o respeitante a Maria Madalena (ou de Magdala).

Nas celebrações desse domingo, é lido o capítulo 20 do evangelho de João, mas apenas a parte dos versículos 1 a 9. E o que o FutureChurch solicita aos responsáveis eclesiásticos – Comité da Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos sobre o Culto Divino, Dicastério para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos e Secretaria-Geral do Sínodo dos Bispos, o qual se reúne em primeira sessão em outubro próximo, após as caminhadas diocesana, nacional e continental – que seja incluída a proclamação dos versículos 11 a 19, que, agora, só ocorre na terça-feira da Oitava, com um número de frequentadores da Eucaristia muito menor.

Nesses versículos é que sobressai o papel de Maria Madalena: os discípulos tinham voltado para casa, mas, segundo o relato evangélico, e ela ficou junto ao túmulo a chorar, quando lhe aparece Jesus que a incumbe de levar a boa nova aos discípulos. Por isso, aquele movimento partilha a ideia de que qualquer discussão sobre o papel das mulheres na Igreja deve começar com estes dois factos, sublinhados pelo padre jesuíta James Martin, consultor do Dicastério para a Comunicação, da Santa Sé: “Foi a uma mulher, e não a um homem, que Cristo ressuscitado escolheu aparecer pela primeira vez; e foi uma mulher que, durante algum tempo, foi a única recetora, portadora e proclamadora da boa nova da Ressurreição.”

Assim, na linha de ação que Francisco tem vindo a impulsionar, no sentido de criar uma presença mais incisiva das mulheres na Igreja, o Future Church sustenta que “é tempo de contar a História completa do testemunho apostólico” de Maria Madalena, em cada Páscoa, para que “todos os católicos possam ser inspirados pela Boa Nova da sua fé, coragem e ministério”.

A oportunidade do abaixo-assinado tem a ver com o próximo Sínodo dos Bispos, já que o Instrumentum Laboris (IL), orientador os trabalhos dos participantes, aborda a necessidade de maior inclusão das mulheres na vida, no ministério e no governo da Igreja.

Aquele movimento norte-americano desenvolveu preparativos para a festa de Santa Maria Madalena, neste ano, sob a égide da sinodalidade praticada pelo próprio Jesus, “através do exemplo […], ensinando com parábolas, procurando as periferias, cujas vozes tinham sido ignoradas ou silenciadas, pondo cada pessoa que encontrava no seu caminho no centro do seu ministério”. E, sobre a omissão da tarefa da apóstola, sustenta que pode ter sido uma lacuna na História da sinodalidade o facto de os outros apóstolos “terem ignorado o testemunho de Maria Madalena”. “Ainda hoje vivemos com a ferida dessa lacuna na Igreja”, observa o movimento, que apela a maior igualdade para as mulheres na Igreja a fim de que se possa “Alargar o Espaço da Nossa Tenda”, onde caibam “tantas mulheres ignoradas e desacreditadas”.

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Em suma, pede-se que seja proclamado, no domingo de Páscoa, João 20,1-18, ou seja, o relato completo da Ressurreição, incluindo a aparição de Cristo Ressuscitado a Maria Madalena e a missão dela para proclamar a Ressurreição aos outros discípulos.

Tal petição é feita às competentes instâncias, quando a Igreja Católica está a acelerar em direção à primeira Assembleia global do Sínodo da Sinodalidade, que acontecerá de 4 a 29 de outubro de 2023. O processo sinodal foi amplo e, em grande parte, inclusivo de católicos que haviam sido marginalizados. O IL que orientará as discussões do Sínodo aborda a necessidade de maior inclusão das mulheres na vida, ministério e governo da Igreja, mencionando o apelo unânime das Assembleias Continentais para abordar a experiência, o status e o papel das mulheres (B 2.3, a) e exorta a “reflexão mais profunda sobre as falhas relacionais eclesiais, que são também falhas estruturais que afetam a vida das mulheres na Igreja” (B 2.3,b).

E, enquanto a Igreja se prepara para essa reflexão mais profunda, concorda-se com a avaliação do padre James Martin, SJ, consultor do Dicastério para a Comunicação da Santa Sé, já referida, ao dizer: “Qualquer discussão sobre o papel da mulher da Igreja deve começar com estes dois factos: “Foi a uma mulher, e não a um homem, que o Cristo ressuscitado escolheu para aparecer pela primeira vez; e foi uma mulher que, durante algum tempo, foi a única recetora, portadora e proclamadora da boa nova da Ressurreição.” Contar a verdadeira história de Maria Madalena pode não apenas reivindicar a sua memória, mas também ajudar a recuperar o papel legítimo das mulheres na Igreja. 

Durante séculos, Maria Madalena foi mal interpretada como prostituta arrependida que, depois de encontrar Jesus, se arrependeu, passando o resto da vida em oração e penitência, lesando-se e diminuindo-se o seu papel como uma das primeiras e importantes líderes da Igreja. É uma calúnia secular que tem sido prejudicial às mulheres e à Igreja – isto sem falar de relatos mais caluniosos assumidos em literatura de ficção e mesmo em relatos pseudo-históricos.

Segundo a renomada teóloga Elisabeth Johnson, CSJ, “torná-la uma prostituta permitiu que o seu papel de liderança entre os discípulos fosse geralmente esquecido”; e, mesmo agora, “para os que preferem uma Igreja com uma hierarquia exclusivamente masculina, é mais fácil lidar com ela como pecadora arrependida do que como mulher apostólica que teve voz e a usou”. Aliás, foi o que um clericalismo patriarcal induziu toda a hierarquia da Igreja até aos nossos dias, que o argumento do “non possumus” (renúncia à autoridade) não consegue britar.  

Ao invés de não haver evidência bíblica ou histórica de que Maria Madalena era prostituta, a irmã Sandra Schneiders, aponta que ela é apresentada, nas Escrituras, como “a principal discípula de Jesus”. Os quatro Evangelhos apontam, explicitamente, que Maria Madalena estava presente no túmulo na manhã de Páscoa e, no relato de João, ela sozinha é a primeira a encontrar e a ser enviada a proclamar o Cristo Ressuscitado. Para os primeiros cristãos, era impossível contar a História da Páscoa, sem incluir o testemunho de Maria Madalena, o que levou os primeiros padres da Igreja e a Tomás de Aquino a chamá-la de “apóstola dos apóstolos”.

A Páscoa é o mais sagrado e importante de todos os domingos do ano eclesial. No entanto, quando os crentes católicos se reúnem para a missa no domingo de Páscoa, não ouvem a História completa da ressurreição, mormente a História inspiradora do testemunho de Maria Madalena sobre o Cristo ressuscitado ou a missão de Cristo a Maria Madalena para proclamar a Ressurreição aos outros discípulos. E, embora o Papa Francisco tenha elevado a sua memória a dia de festa, em 2016, e afirmado o seu papel como Apóstola dos Apóstolos, omite-se a sua história no dia mais sagrado do ano. Apenas se proclama João 20,1-9. O resto, ou seja, João 20,11-18, é proclamado na terça-feira da Oitava Páscoa, quando só poucos, ouvindo-o, podem ser enriquecidos e inspirados pela fé e coragem da apóstola. João 20,10, omitido tanto no domingo de Páscoa como naquela terça-feira de Páscoa, evidencia que só Maria Madalena permaneceu no túmulo vazio.

Estudiosos respeitáveis, como a Dra. Eileen Schuler, OSU, professora emérita do Departamento de Estudos Religiosos da McMaster University em Hamilton, Ontário, no Canadá, sabem o valor da inclusão do testemunho e da proclamação da Páscoa de Maria Madalena, pois, como o Lecionário canadense permite a leitura mais longa de João 20,1-18 na Páscoa, diminuiu as representações negativas de Maria Madalena [como prostituta arrependida] e influiu muito na construção de uma imagem autêntica e positiva de Maria Madalena.

No seu pontificado, Francisco procurou criar uma presença mais incisiva para as mulheres na Igreja. Com o seu reconhecimento do papel de Maria Madalena como “Apóstola dos Apóstolos”, é hora de contar todo testemunho apostólico de Maria sobre a Ressurreição a cada Páscoa, para que os crentes se inspirem nas Boas Novas da sua fé, da sua coragem e do seu ministério. 

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Em total acordo com a petição, devo dizer que é preciso tirar, na prática, todas as consequências da exaltação da apóstola dos apóstolos e reparar a lacuna desta omissão histórica e, como já defendi, em tempos, deve discutir-se, em Igreja, a possibilidade real da extensão da abertura, pelo menos, da ordenação diaconal e da ordenação presbiteral às mulheres e, além disso, alargar mais o acesso das mulheres a tarefas explícitas de evangelização e de governação eclesial.

A carta apostólica Ordinatio Sacerdotalis, de São João Paulo II, que de rejeita, em definitivo, a conferição do sacramento da ordem a mulheres, não é património do magistério infalível do Papa, nem dos Concílios, pelo que a matéria merece investigação doutrinária e histórica e a conveniente discussão. E resolver o problema da omissão, cultuando Maria Madalena, com outra categoria, é positivo, mas pouco.

2023.07.26 – Louro de Carvalho

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