quinta-feira, 13 de julho de 2023

Em nome da independência e do respeito, mas também do escrutínio

 

O ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, em entrevista à TSF e o ao Jornal de Notícias (JN), deixou críticas à atuação dos deputados na comissão parlamentar de inquérito (CPI) à Transportes Aéreos Portugueses (TAP), o que mereceu resposta contundente do próprio presidente da CPI, o deputado socialista António Lacerda Sales, no que foi secundado pelas deputadas socialistas, Alexandra Leitão e Isabel Moreira e por deputados do Chega e do Bloco de Esquerda (BE).

“Acho que a transformação destas inquirições em noites de inquirição sem paragem, em saber se falou ao telefone às 10 ou 10h05, em que os deputados são uma espécie de procuradores do cinema americano de série B da década de 80, e que, depois tudo isto, se transforma e é prolongada numa telenovela ou naquele género de comentário, como se comenta os ‘reality shows’ nos canais noticiosos à noite, se isso não contribui igualmente para a degradação da imagem das instituições e da democracia”, disse o governante, que também criticou políticos, comentadores e jornalistas, pois “não percebem o mal que fazem ao, por um lado, alimentar[em] o discurso apocalíptico sobre o funcionamento das instituições” e por terem “uma leitura da realidade política como se houvesse sempre um ciclo de apocalipse de 24 horas, que, depois, é substituído por outro ciclo de apocalipse nas 24 horas seguintes”.

Apesar de entender que as CPI “têm desempenhado um papel importante na valorização do Parlamento”, sustenta que devem ser ainda mais valorizadas num cenário de maioria, pelo que há uma reflexão a fazer sobre a relação desta comissão de inquérito, a dinâmica comunicacional em torno do Parlamento e o papel dos deputados”. E denuncia “as inquirições prolongadíssimas pela noite dentro, sem pausa, o tom inquisitório das perguntas [e] o tipo de preocupação com um tom telenovelesco que alimenta um ciclo interminável de comentário”.

A isto o presidente da CPI reagiu, em declarações à Lusa: “Isto parece-me uma falta de respeito pelo trabalho dos senhores deputados, da comissão e do próprio Parlamento. Relembro que o Governo responde ao Parlamento. Nenhum político está isento de respeitar as instituições, por maioria de razão o Parlamento, especialmente os ministros.”

Lacerda Sales, depois de frisar que os deputados fizeram um “esforço de muitas horas e de muitos dias” – “mais de 187 horas de trabalho, mais de 40 audições, muitos requerimentos e muita documentação” – e de referir que, enquanto presidente da CPI à TAP, lhe cabe defender a “comissão e a instituição Parlamento” e disse aguardar o ministro “se retrate destas declarações”.

Porém, Pedro Adão e Silva, longe de se retratar, reafirma tudo e dispõe-se a elaborar mais.

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Alguns acusam o ministro da Cultura de ter faltado ao respeito ao Parlamento, de infringir o princípio da separação dos poderes e de ignorar o funcionamento do das CPI e do próprio Parlamento, tal como tentam colá-lo ao núcleo político do Governo. E o governante, sabendo que o Governo emana e depende do Parlamento, considera que em nenhum lugar está escrito que os membros do Governo perdem o direito cidadão de escrutínio e de crítica.

Penso que o Ministro tem razão na crítica que dirige a alguma atuação dos deputados, por exemplo, quando branqueiam a responsabilidade da presidente da comissão executiva da TAP; quando esmiúçam pormenores irrelevantes para o apuramento da verdade e só da verdade; quando insistem em condenar a intervenção dos serviços de informação e segurança (SIS), que responderam na comissão dos Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias; quando tentaram transformar o ex-adjunto do ministro das infraestruturas num quase-herói; ou quando tentaram transformar uma responsabilidade política em responsabilidade criminal, cuja alçada não é da CPI.

Contudo, a Pedro Adão e Silva, que não terá ficado sensibilizado por todos os itens de crítica aqui apontados, não parece ter ficado incomodado com a indisponibilidade dos deputados do Partido Socialista (PS) para discutirem factos relevantes da TAP conexos com o objeto da CPI, mas que não ocorreram no horizonte temporal definido pela CPI (por exemplo, eventuais indemnizações a antigos administradores, reuniões preparatórias autorizadas pelo ministro das Infraestruturas da presidente da TAP com o grupo parlamentar do PS, etc.). E não criticou a lenta e ambígua cooperação de vários ministros com a CPI, bem como o PS por não querer explicar a intenção da reprivatização da TAP, contrariada em carta de cidadãos bem fundamentada.   

Por último, o ministro, em meu entender, excedeu-se nos termos da crítica, por exemplo, ao chamar aos deputados “uma espécie de procuradores do cinema americano de série B da década de 80”, ao assemelhar às “reality shows” alguns comentários na CPI ou ao falar de “tom telenovelesco” ou de “discurso apocalíptico”.

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Criticar os comentários do ministro com base na separação dos poderes ou na independência dos órgãos de soberania não passa de um exagero. O sistema de contrapesos implica a moderação da tentativa de hegemonia de algum dos órgãos do poder político, bem como a não ingerência de uns nos processos de atuação dos outros. Porém, não prejudica a cooperação e a interdependência – antes as postula –, bem como o escrutínio e a crítica. Ora, se Pedro Adão e Silva tivesse produzido tais comentários antes de os trabalhos da CPI terem chegado ao fim, teria desrespeitado a CPI e a Assembleia da República (AR); e, se falasse, então, em nome do núcleo político do Governo, incorreria em ingerência. Assim, o desrespeito consiste apenas na evitável utilização de alguns termos e expressões.

Muitas vezes, os operadores do judiciário alijam para “os políticos” a responsabilidade por aquilo que funciona menos bem na Justiça, invocando a falta de meios (e os juízes aliam o sindicalismo laboral à soberania do órgão que integram); e, escudados na norma constitucional de que “as decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades” (artigo 205.º, n.º 2, da CRP – Constituição da República Portuguesa), não gostam das críticas dos demais órgãos, nem das dos cidadãos, que são perfeitamente legítimas, como são as das partes, mesmo na fase processual (que têm direito a reclamação, a recurso e a aclaração).

Embora o Governo seja responsável perante o Presidente da República (PR) e perante a AR (ver CRP, artigo 190.º) e o primeiro-ministro (PM) seja responsável perante o PR e, no âmbito da responsabilidade política do Governo, perante a AR (ver CRP, artigo 191.º, n.º 1) – tal como os ministros são responsáveis perante o PM e, no âmbito da responsabilidade política do Governo, perante a AR (ver CRP, artigo 191.º, n.º 2) – é deprimente como os deputados destratam, às vezes, o PM e os ministros. É óbvio que não ficam sem a respetiva réplica. Porém, não havia necessidade.

Por outro lado, embora os membros do Governo devam comparecer na AR, para responderem a perguntas e a pedidos de esclarecimento dos deputados (ver CRP, artigo 177.º, n.º 2) e a comparecer nas comissões, quando tal seja requerido (ver CRP, artigo 177.º, n.º 3), os deputados usam e abusam desta janela constitucional, às vezes, solicitando explicações que nada adiantam. 

É claro que um governo de maioria tenta-se a impor as suas propostas à AR, mas também a AR tem legislado contra governos de minoria, com o aval do PR, mesmo contrariando a lei-travão, constante do artigo 167.º, n.º 2, da CRP, que inibe os deputados de proporem referendo, lei ou alteração de lei que envolva, no ano económico em curso, aumento de despesas ou diminuição de receitas do Estado previstas no Orçamento. Só o Governo pode tomar essa iniciativa legislativa, que a AR aprovará ou não.

O PR tem sido useiro e vezeiro no condicionamento do Governo, muitas vezes, em público, como, embora, menos vezes, se tem pronunciado publicamente sobre temas em processo legislativo. E até acenou com a dissolução parlamentar, caso os deputados não aprovassem o Orçamento do Estado para 2022, em momento em que a AR discutia a proposta de lei do Governo.

Recentemente, o Ministério Público (MP) e o Conselho Superior da Magistratura (CSM) pronunciaram-se publicamente sobre inconstitucionalidades da proposta de lei de perdão e de amnistia em discussão na AR.

O ministro João Galamba foi apontado como não tendo respeitado a independência da comissão técnica independente (CTI) para estudo da localização do novo aeroporto, por ter dito que Santarém fica longe de Lisboa. Ora, a CTI não ficou menos independente por isso. E o ministro não pode deixar de fazer aviso à navegação, quando necessário. A CTI não é órgão de soberania.

Enfim, parece que os argumentos do respeito e da separação de poderes são invocados por quem está interessado em arremessá-los como arma política. De resto, políticos que nunca feriram a separação de poderes, não tiveram em conta a interdependência ou não respeitaram os órgãos de soberania, atirem a primeira pedra!

Todavia, é preciso assentar em que a não ingerência durante os processos de atuação não impede, “a posteriori[u1] ”, o necessário escrutínio e a crítica, embora com o normal comedimento nos termos.

A rejeição do escrutínio faz-me lembrar o caso do comerciante que, vendo que um frade estava com relutância em pagar a importância estabelecida, vociferou: “O irmão paga e não bufa!” Porém, o frade retorquiu: “Eu pago, mas bufo!”

2023.07.13 – Louro de Carvalho


 [u1]

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