terça-feira, 4 de julho de 2023

Morte de Nahel Merzouk, contextos, circunstâncias e consequências

 

A 27 de junho, pelas 9h15, em Nanterre, França, faleceu, alvejado pela polícia, Nahel Merzouk, jovem francês de 17 anos de idade, de ascendência argelina e marroquina. O incidente ocorreu, quando o jovem, condutor de viatura sem documentos e em faixa de transporte público de passageiros (corredor BUS), se recusou a parar, à ordem da polícia.

Cerca das 7h55, dois oficiais da prefeitura de Polícia de Paris avistam, no corredor BUS, no Boulevard Jacques-Germain-Soufflot em Hauts-de-Seime, Île-de-France, um Mercedes-AMG polaco em alta velocidade, em direção à estação ferroviária de Nanterre-Université. Os polícias mandam parar o motorista, Merzouk, que tenta fugir, após ser ameaçado com uma bala na cabeça por um deles, às 8h16. Os dois passageiros fogem às 8h19. E o funeral de Merzouk, declarado às 9H15, foi celebrado a 1 de julho, não sem ter ocorrido uma vigília de protesto, a 29 de junho.

A polícia invoca legítima defesa, mas um vídeo divulgado nas redes sociais mostra os polícias ao lado do carro conduzido por Merzouk e um deles a disparar à queima-roupa, quando este arrancou. E Florian M., o responsável pelo tiroteio fatal, indiciado por homicídio doloso ficou em prisão preventiva desde o dia 29.

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Em consequência, vasta onda de distúrbios civis vem assolando o país: protestos, saques e motins em que são atacados símbolos do Estado, como câmaras municipais, escolas, bibliotecas e esquadras, assim como outros edifícios (restaurantes e supermercados). E foram incendiados carros e caixotes do lixo.

Em Nanterre, logo no dia do incidente, os moradores iniciaram um protesto frente à sede da polícia, que se tornou em tumulto, quando incendiaram carros e lixeiras, destruíram pontos de paragem de autocarro, dispararam projéteis e fogos-de-artifício contra a polícia e atearam fogo perto dos trilhos da ferrovia. O tumulto durou até à manhã do dia 28 e estendeu-se a outras áreas em Île-de-France, em Colmar e em Roubaix. No final do dia, havia, pelo menos, 24 polícias feridos, 10 viaturas danificadas e 31 presos. Foram mobilizados 2 000 polícias e gendarmes, para lidar com a violência. Em Viry-Châtillon, no Sul de Paris, jovens incendiaram um autocarro. Mantes-la-Jolie, a 40 quilómetros a Noroeste de Paris, foi bombardeada e incendiada a prefeitura, na noite do dia 27. Os confrontos continuaram durante a noite, em toda a França, incluindo Toulouse, Lille, Asnières, Colombes, Suresnes, Aubervilliers e Clichy-sous-Bois.

A 28 de junho, houve tumultos em Amiens, em Dijon, em Lyon, em Lille, em Saint-Étienne, em Clermont-Ferrand e em Estrasburgo. Os media relataram incidentes na região da Grande Paris. Houve fogos-de-artifício direcionados para a Prefeitura de Montreuil, no extremo Leste de Paris, bem como para a prisão de Fresnes. Em Toulouse, incêndios criminosos e confrontos entre 100 manifestantes e polícias no distrito de Reynerie resultaram em 13 prisões e 20 veículos queimados. Houve ataques a 27 delegações de polícia nacional (sete, por incêndio criminoso), a quatro quartéis da gendarmaria, a 14 delegações municipais de polícia (10, por incêndio criminoso), a oito prefeituras, a seis escolas e a seis edifícios públicos. Continuaram os confrontos e a queima de veículos em Nanterre; foram atacadas delegações de polícia em Suresnes, em Bois-Colombes e em Gennevilliers, e delegações municipais de Meudon; foram ateados incêndios em bibliotecas de media, numa máquina de construção, em Clichy-sous-Bois, numa escola, em Puteaux, e num elétrico, em Clamart. Houve saques, em Colombes, e foram atacadas prefeituras, em Meudon e em Châtenay-Malabry. No total, foram atacados mais de 90 edifícios públicos. Em Paris, eclodiram confrontos nos 18.º e 19.º bairros e foram ateados incêndios no 15.º bairro. Em todo o país, pelo menos 150 pessoas foram presas, 170 polícias ficaram feridos e danificados 609 veículos e 109 edifícios.    

No dia 29, mais de 6200 pessoas participaram numa marcha de apoio à família de Merzouk, em Nanterre. À noite, as tensões explodiram. Autocarros e elétricos pararam de circular à noite, para evitar danos, e várias comunas como Clamart, Compiègne e Savigny-le-Temple decretaram o toque de recolher (Savigny-le-Temple só para menores. Manifestantes em Marselha lançaram fogos-de-artifício contra a polícia. Em Nanterre, manifestantes vandalizaram o Memorial aos Mártires da Deportação, que homenageia as vítimas do Holocausto de Vichy, na França, Em Nantes, um carro colidiu com uma loja Lidl, que foi vandalizada e saqueada. A prefeitura de Clichy-sous-Bois foi incendiada. Houve 875 prisões em todo o país, ficaram feridos 24 polícias e foram incendiados  40 carros. E fez-se uma marcha de vigília, em Nanterre, em memória de Merzouk. Temendo agitação maior, Gérald Darmanin, Ministro do Interior, destacou 1.200 policiais e gendarmes dentro e ao redor de Paris, a que adicionou, depois, mais dois mil. E anunciou que o Governo enviaria 40 mil oficiais para todo o país.

No dia 30, manifestantes em Marselha atacaram a Bibliothèque l’Alcazar, a maior biblioteca pública da cidade. O sistema de segurança impediu a entrada dos manifestantes, mas o edifício teve janelas quebradas e danos causados pelo fogo. O ministro do Interior instruiu as prefeituras do país a ordenar que autocarros e os elétricos parassem o serviço às 21h e a proibir a venda e o transporte de morteiros, de fogos-de-artifício, de latas de gasolina e de outras substâncias perigosas. O presidente Emmanuel Macron, criticado por assistir a um show durante a crise, cancelou uma viagem à Alemanha, para tratar do assunto. 

Tumultos e protestos eclodiram em Caiena, capital da Guiana Francesa, a partir de 29 de junho, seguindo-se aos da França metropolitana. Os manifestantes incendiaram vários bairros da cidade e os distritos de Cité Brutus, Mango, Novaparc e Village Chinois. Um funcionário do governo de 54 anos foi morto por uma bala perdida, enquanto estava na varanda de casa, no distrito de Mont-Lucas, em Caiena. Polícias franceses baseados em Kourou usaram gás lacrimogéneo para fazer dispersar a multidão que incendiou um autocarro e atacou um supermercado no distrito de Soula, na comuna de Macouria. O prefeito, Thierry Queffelec, condenou a violência e anunciou o encerramento antecipado do sistema de transporte público de Caiena, a 30 de junho, e a proibição temporária da venda e de transporte de gasolina, à noite.

Noutras partes do Caribe francês, como Guadalupe e Martinica houve pequenas manifestações. Martinicanos incendiaram latas de lixo e carros, em For-de-France, em Le Carbet e em Le Robert, e jogaram objetos contra os bombeiros, que responderam. Não houve violência em Guadalupe. Nos departamentos ultramarinos e na região de Reunião, foram vandalizados prédios e carros e foram jogados objetos contra a polícia, a partir do dia 28. Mais de 70 incêndios foram iniciados em toda a ilha, na noite de 1 de julho, uma queda em relação às noites anteriores. Foram ateados incêndios na capital de Saint-Denis e nas comunas de La Plaine-de-Palmistes, Le Port, La Possession, Le Tampon, Saint-Benoît, Saint-Louis e Saint-Paul.  

No discurso em que denunciou as ações policiais, Macron pediu que os manifestantes fossem pacíficos e que os pais que exerçam influência sobre os filhos. Criticou os media sociais que promovem vídeos do conflito urbano e reclamou da violência nos videogames que intoxicaram alguns adolescentes. O Ministério do Interior pediu calma após o primeiro dia de agitação. O prefeito de Nanterre, Patrick Jarry, expressando choque com o vídeo, declarou, em conferência de imprensa, a 28 de junho, que a prefeitura passara por “um dos piores dias de sua história”, instou os cidadãos a “parar esta espiral destrutiva” e disse: “Queremos justiça para Merzouk; iremos obtê-la por meio de mobilização pacífica.” 

Os tumultos alastraram a Bruxelas, capital da Bélgica, onde houve dezenas de prisões, e a Lausanne, na Suíça. E continuaram, mesmo depois do funeral de Nahel Merzouk. Morreu um bombeiro e a polícia continua nas ruas a “manter a ordem” na desordem instalada.

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A brutalidade policial e os protestos/motins andam a par, em França desde 2005 e, sob a legalidade (?), desse 2017. Os motins de 2005 surgiram em reação à morte de dois adolescentes muçulmanos, eletrocutados, quando se escondiam da polícia numa subestação elétrica. O então primeiro-ministro, Dominique de Villepin, e o ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, sugeriram que eram ladrões, o que não ajudou a acalmar a situação. E o presidente Jacques Chirac declarou o estado de emergência, os protestos duraram três semanas e mais de 4000 pessoas foram presas. 

Em outubro de 2016, pelas 15h00, dois carros da polícia observavam um cruzamento em Viry-Châtilon. Cerca de 20 jovens, menores, atacaram os veículos com barras de ferro e com pedras e, depois, lançaram cocktails Molotov para os ocupantes. Uma polícia e um assistente de segurança ficaram gravemente queimados. Também em 2016, gerou protestos a morte de Adama Traoré. E a sua irmã, Assa Traoré, tornou-se a alma-mater do movimento  Black Lives Matter, na França, e a campanha faria eco, na França, dos protestos pela morte de George Floyd, em 2020.  

Os protestos dos coletes amarelos, em 2018, e os excessos da polícia (usou uma brigada de motocicletas para conter saques e ações violentas no quadro dos protestos contra a reforma de previdência) levaram a maior perceção pública da brutalidade policial. Em 2020, a opinião pública ficou chocada com o vídeo da violência policial perpetrada contra um produtor musical negro, por não usar máscara. E, em abril de 2023, mais de 260 mil pessoas assinaram uma petição malsucedida no site da Assembleia Nacional para a dissolução da brigada, a famosa BRI. 

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O uso de perfis raciais em operações STOP e em verificações de identidade é problema recorrente. Em 2016, o Tribunal de Cassação condenou o Estado por uso perfis raciais para verificações de identidade, declarando que a prática é discriminatória. Com base nisso, em outubro de 2020, um tribunal civil parisiense concedeu 58500 euros a 11 demandantes que processaram o Estado por violência policial, por verificação de identidade injustificada e por prisão indevida. 

Em 2017, na sequência do incidente de 2016, com a polícia, foi aprovada a Lei 435-1, a permitir que a polícia atire a veículo cujos condutores não obedeçam à ordem de parar e sejam suscetíveis de, na fuga, atentarem contra a vida ou integridade física da polícia ou de terceiros. Daí resultaram 13 mortes por recusa de paragem, em 2022, mais seis do que em 2021.

Segundo a BBC, as 13 mortes conexas com a recusa em submeter-se às paragens de trânsito em 2022, com os efeitos amplificadores dos media, fizeram da memória dos distúrbios de 2005 uma das razões pelas quais Macron e o establishment político francês reagiram rapidamente a coisas calmas. Na sua presidência, já houve violência urbana significativa à margem dos protestos dos coletes amarelos e dos decorrentes das reformas do sistema de previdência.

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), em declaração de 30 de junho, instou a França a abordar seriamente as “questões profundamente enraizadas de racismo e discriminação racial” nas suas agências de aplicação da lei, e até 2 de julho, os Estados Unidos da América (EUA), a Turquia e vários países europeus, incluindo o Reino Unido e a Noruega, pediram cautela aos seus cidadãos na França e alertaram os turistas para ficarem longe das áreas dos protestos. De facto, a França, nomeadamente a polícia, não tem atuação desprendida da precipitação, da brutalidade e da marca racista. O país teima em não perceber os sinais da sociedade, crivada de deserdados da sorte (Nahel vivia com a mãe e não conhecia o pai). Há trabalho escravo de gente a viver nos arredores (em bidonvilles: bairros de lata).  

O movimento reivindicativo social e sindical é ultrapassado por movimentos inorgânicos, assaz violentos, instrumentalizados e instrumentalizadores. A França, em vez de insistir na proibição do véu e da burka islâmicos e de símbolos religiosos e de outras culturas, deveria integrar, respeitando as culturas. Mas parece não ter feito a redenção do colonialismo. O racismo estrutural mostra os tentáculos e o antirracismo não é meigo. A classe média vive mal. Macron quer lei para a recuperação de património danificado. É a vida!

2023.07.04 – Louro de Carvalho

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