segunda-feira, 17 de julho de 2023

O combate à obesidade infantil deve começar ainda antes da gravidez

 

O estudo COSI (Childhood Obesity Surveillance Initiative) da Organização Mundial da Saúde (OMS)/Europa, ou sistema de vigilância nutricional infantil integrado, coordenado pelo Instituto Ricardo Jorge (INSA) e apresentado a 27 de junho, revela que, ao fim de quase 15 anos, Portugal logrou atingir a média europeia, em relação à nutrição das crianças até aos 6 e 8 anos.

Segundo os dados recolhidos e tratados pelo INSA, 31,9% das crianças portuguesas registavam, em 2022, excesso de peso e 13,5% tinham obesidade. Não obstante, estes números revelam uma inversão na tendência que se registava desde 2008, ano em que se realizou o primeiro estudo sobre esta matéria. Assim, em 2022, Portugal já estava a par da média europeia.

O 5.º relatório, entre 2008 e 2019, revelava que Portugal apresentava, consistentemente, uma tendência invertida da prevalência de excesso de peso e de obesidade infantil. Em 2022, (6.º relatório), a tendência não se confirma, registando-se um aumento de 1,6%, ou seja de 11,9% para 13,5%, na prevalência de obesidade infantil, e de 2,2%, ou seja de 29,7% para 31,9%, na prevalência de excesso de peso infantil. De acordo com estes resultados, Portugal situa-se a par da média europeia (29%), com um terço das crianças a apresentar excesso de peso.

Há diferenças regionais na matéria. A região dos Açores foi a que apresentou maior prevalência de excesso de peso – 35,9%, em 2019, e 43,0%, em 2022 – e o Algarve foi a região com menor prevalência de excesso de peso: 21,8%, em 2019, e 27,7%, em 2022.

Nos termos do mesmo estudo, as avaliações anteriores e a realizada em 2021/2022 permitem concluir que a prevalência de excesso de peso, incluindo a obesidade, aumenta com a idade. Ou seja, 35,3% das crianças de 8 anos apresentam excesso de peso, comparativamente com 29,8% das crianças de 6 anos.

Além destes dados, o estudo COSI tem vindo a analisar fatores relacionados com o primeiro ano de vida, que se relacionam com o aumento de peso na infância, tal como o estado nutricional da mãe, o peso à nascença e o aleitamento materno.

Em relação à taxa de aleitamento materno, o estudo revela que 90,1% das mães amamenta os filhos. Em 2019 a taxa foi semelhante: 90,3% e superior, comparativamente a 2008 (84,9%). Mais uma vez a região dos Açores se destaca pela negativa, por ter apresentado menor taxa de aleitamento materno (73,8%), e o Algarve, pela positiva, reportando maior taxa (92,7%).

No atinente a hábitos alimentares das crianças, entre 2019 e 2022, verifica-se que o consumo diário de fruta aumentou de 63,1% para 71,2% e o consumo de até três vezes por semana de refrigerantes açucarados diminuiu de 71,3% para 69,1%. Na mesma frequência, o consumo de cereais de pequeno-almoço aumentou de 41,5% para 45,8%, tendo igualmente aumentado o consumo diário destes cereais, de 19,3%, em 2019, para 23,7%, em 2022.

Sobre a atividade física e comportamentos sedentários, de 2019 para 2022, todos os parâmetros estudados relativamente às atividades sedentárias aumentaram de 2,2% a 9,3%, com o maior aumento verificado no uso de computadores para jogos eletrónicos (dias da semana), pelo menos duas horas por dia, de 18,1% para 27,4%, entre os dois anos de referência.

Na avaliação de 2021/2022, os pais/encarregados de educação reportaram que a maioria das crianças (69,2%) ia de automóvel para a escola e 20,3% se deslocava a pé. Analisado o ambiente escolar, em comparação com a avaliação de 2019, verificou-se a diminuição de disponibilidade de alimentos como snacks doces e salgados (de 11,1% para 5,7%), refrigerantes açucarados, sumos de fruta e bebidas com gás açucaradas no recinto escolar (de 4% para 1%).

Ao invés, verificou-se um aumento da disponibilidade de legumes (de 32,4% para 43,9%) e de fruta fresca (de 62,2% para 72,2%). Para lá da monitorização da prevalência de excesso de peso e de obesidade infantil, esta última avaliação do estudo COSI incluiu, excecionalmente, um estudo (COSI/covid-19) de avaliação do impacto da pandemia por SARS-CoV2 no estado nutricional e nos comportamentos associados ao estilo de vida de crianças em idade escolar.

O COSI abrangeu um universo de 43 mil famílias de 13 países da Europa, sob a liderança científica do INSA, em colaboração com o Gabinete Europeu da OMS para a Prevenção e Controlo de Doenças Crónicas Não-Transmissíveis, com o objetivo de conhecer e de compreender o impacto da pandemia nas rotinas diárias, no bem-estar, nos hábitos alimentares, na atividade física, nos comportamentos sedentários, na saúde mental, no estatuto socioeconómico das famílias e na perceção do estado nutricional das crianças.

No caso de Portugal, participaram 226 escolas na avaliação de 2022 e foram avaliadas 6205 crianças – um estudo feito em articulação com as Administrações Regionais de Saúde (Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo, Algarve) e com as Direções Regionais de Saúde dos Açores e da Madeira, constituindo-se como rede sistemática de recolha, de análise, de interpretação e de divulgação de informação descritiva sobre o estado nutricional infantil de crianças portuguesas em idade escolar do 1.º Ciclo do Ensino Básico, dos 6 aos 8 anos.

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Em todo o caso, a obesidade é um grave problema de saúde pública no Mundo, problema intensificado pela guerra, pela fome, pela míngua local de recursos, pela deslocação forçada. Em alguns países, o problema é o do excessivo sedentarismo e dos maus hábitos alimentares.

Em Portugal, a obesidade é cada vez mais precoce; e, aos dois ou três anos, a incidência de excesso de peso é de 30%. Por isso, a pediatra Carla Rego sustenta que a prevenção deve começar nos cuidados primários de saúde e até antes da gravidez: “Ou se trabalha a pensar nos próximos dez anos ou não vamos conseguir cortar o ciclo”, vincava a 16 de outubro de 2021, Dia Mundial da Alimentação.  

Com efeito, essa efeméride, instituída em 1981, assinala-se a 16 de outubro, data da fundação da Food and Agriculture Organization (FAO), agência da Organização das Nações Unidas (ONU), para alertar e consciencializar o mundo para os problemas conexos com a alimentação, nomeadamente a erradicação da fome e o combate ao desperdício alimentar, mas passa também pelas preocupações crescentes com a sustentabilidade dos sistemas alimentares e com o aumento da obesidade no mundo. Segundo dados da ONU, enquanto 820 milhões de pessoas não têm acesso a alimentos suficientes, mais de dois mil milhões de seres humanos têm problemas de excesso de peso e de obesidade.

A OMS refere que a obesidade mundial triplicou desde 1975 e, segundo dados de 2016, cerca de 650 milhões de adultos eram obesos, ou seja, quase 13% dos maiores de 18 anos, no Mundo. A maioria da população mundial vive em países onde os problemas associados ao excesso de peso matam mais do que a falta de alimentos. Porém, a obesidade infantil não é menos preocupante: em 2020, cerca de 39 milhões de crianças com menos de 5 anos estavam com excesso de peso e mais de 340 milhões entre os 5 e os 19 anos tinham peso a mais e obesidade.

A obesidade é, pois, um problema grave de saúde pública. Contudo, pode ser prevenida. Este é o grande desafio do século XXI e deve ser considerado uma prioridade pelos governos, que têm um papel importante na criação de um ambiente favorável à adoção das melhores práticas.

Segundo dados da Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade (SPEO), Portugal apresentava, em 2021, uma taxa de excesso de peso infantil de 29,6%, sendo que 12% destas situações constituem já um quadro de obesidade. Por seu lado, a Associação Portuguesa contra a Obesidade Infantil (APCOI) estimava ter havido um aumento médio de peso de 10% em crianças, no confinamento. Os cálculos realizados mostram que, se cada criança tiver ingerido por dia, em média, cerca de 200-300 calorias extra, sem ter aumentado, na mesma proporção, o seu gasto energético pela atividade física, isso quer dizer que, nos últimos dois meses de confinamento, terão sido acumuladas 12 mil a 18 mil quilocalorias a mais, o que corresponde a um aumento de peso de, pelo menos, dois quilogramas.

O relatório Health at a Glance, de 2019, realizado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) coloca Portugal na nona posição no ranking mundial de obesidade infantil, com a prevalência de 37,1% nas crianças entre os 5 e os 9 anos. Este ranking é liderado pelos Estados Unidos da América (EUA), com a incidência de 43% nesta faixa etária. Também no respeitante aos adultos e aos adolescentes maiores de 15 anos, Portugal fica mal posicionado: 67,6% da população portuguesa a partir desta idade tem excesso de peso, o que indicia uma aproximação cada vez maior ao grau de obesidade. Convém esclarecer, de uma forma simplista, que o peso a mais se revela pelo cálculo da relação entre peso, altura e género, resultando daí o índice de massa corporal (IMC), o qual, acima dos 25%, é excesso de peso, dos 30% aos 40%, é obesidade e, acima disso, é obesidade mórbida.

Carla Rego, pediatra do Centro da Criança e do Adolescente do Hospital CUF Porto, membro do Conselho Científico da Plataforma contra a Obesidade da Direção-Geral da Saúde e vice-presidente da SPEO, foi responsável pela criação e a implementação da primeira consulta de obesidade pediátrica, em 1998, no Serviço de Pediatria do Hospital de São João. “Verificámos, na altura, que a quantidade de crianças obesas na consulta de pediatria era crescente. Estas crianças eram tratadas na endocrinologia pediátrica, a meu ver, de forma errada, porque quase 98% da obesidade é causada por fatores comportamentais. Por isso, a consulta de obesidade infantil é multidisciplinar, envolvendo pediatra, nutricionista e psicólogo.

O problema da obesidade é que esta é o reflexo dos comportamentos de há 10 ou 12 anos. E o primeiro fator identificado é a falta de responsabilidade da parte dos decisores e dos educadores. Porém, em situação de obesidade, a tendência é apontar o dedo à criança, que só é obesa devido à sua trajetória pediátrica. Portanto, os decisores têm de perceber que as mudanças têm de existir no ambiente global, seja escolar, seja familiar, mas, sobretudo, a nível dos cuidados primários da saúde, para se intervir precocemente no ciclo da vida. Para reverter o aumento da prevalência da obesidade, o primeiro ponto onde atuar é o ambiente inicial, antes mesmo da gravidez, porque é aí que se trava a progressão da obesidade no ciclo de vida.

Assim, os cuidados primários de saúde deviam ser apetrechados de ferramentas e de equipas multidisciplinares, para sensibilizarem as futuras mães na adoção de um estilo de vida saudável, a não aumentarem muito o peso e a vigiarem o crescimento do lactante nos primeiros meses, sobretudo quando nasce em famílias de maior suscetibilidade. Com efeito, o primeiro ano de vida é a janela de oportunidades para moldar comportamentos alimentares. Quando a criança aumenta progressivamente o IMC até aos 5 ou 6 anos, acima do expectável, faz aumentar o número de células gordas, número que nunca mais perderá, pois a célula gorda não morre.

Essa criança só tem 50% de hipóteses de ser um adulto adequadamente nutrido. Se entrar nos 12 ou 13 anos e continuar com excesso de peso e obesidade, só terá 10% a 15% de ser um adulto adequadamente nutrido. Se for mulher e se tornar gestante obesa, transmitirá a suscetibilidade genética e, assim, perpetuará o ciclo da obesidade.

Para Carla Rego, uma campanha de dissuasão de aumento de peso, deve ser mais pedagógica do que restritiva. “A pior coisa que nos podem fazer é colocar restrições à frente. Por isso, tem de ser uma educação construtiva e baseada na corresponsabilização de escolhas saudáveis.”

E penso que as campanhas devem ser coerentes. Estabelecimentos escolares e de saúde não deviam disponibilizar comidas plásticas e gulodices. O recurso ao telemóvel e ao tablet deveria ser desincentivado no tempo livre e em família e procrastinado em ambiente escolar, reservando-o para os momentos mais exigentes e necessários. E, por exemplo, incentivar a frequência do ginásio e levar para lá, como para a escola, os miúdos de carro por umas centenas de metros revela grande incoerência. É preciso investir mais em atitudes do que em programas!

2023.07.17 – Louro de Carvalho

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