domingo, 23 de julho de 2023

O Reino dos Céus é o campo da paciência, da espera, da tolerância

 

A Liturgia da Palavra do 16.º domingo do Tempo Comum no Ano A mostra-nos o Deus paciente e cheio de misericórdia – clemente e compassivo – que não quer a marginalização do pecador, mas a sua integração na comunidade do Reino, o que nos postula a interiorização da lógica de Deus, que será a craveira com que entenderemos o Mundo e os homens.

O Evangelho (Mt 13,24-43) garante a presença irreversível do Reino de Deus no Mundo, Reino que não é uma agremiação exclusiva de “bons” e de “santos”, mas o espaço onde todos – bons e maus – encontram lugar e adquirem a possibilidade de crescer, de amadurecer e de consolidar as suas escolhas, de serem tocados pela graça, até ao momento da opção final.

No quadro das parábolas do Reino, mediante linguagem concreta, rica, expressiva e questionante, são-nos apresentadas três parábolas: a do trigo e do joio, que só aparece em Mateus, além de figurar numa antiga coleção de “ditos” do Senhor, conhecida como “Evangelho de Tomé”; e a do grão de mostarda e a do fermento, que procedem da tradição sinótica.

Também agora se percebe – quer nas parábolas, quer nas explicações – o afã pastoral de Mateus, procurando exortar, animar, ensinar e fortalecer na fé a comunidade a que dirige o Evangelho.

A primeira parábola em referência é a parábola do trigo e do joio (vv. 24-30), que se funda num cenário da vida quotidiana: um senhor semeia boa semente no seu campo, um inimigo semeia o joio (erva gramínea que nasce entre o trigo e o danifica) e servos dedicados, preocupados com o futuro da colheita. Normal parece a reação dos servos, que denunciam o caso ao amo e se prontificam a arrancar o joio. E anormal parece a reação do Senhor, que dá ordens para que deixem crescer trigo e joio lado a lado, de modo que só na altura da ceifa seja feita a seleção do que é para queimar e do que é para guardar nos celeiros.

Porém, esta anormalidade é a lógica do ministério de Jesus, que acolhe os pecadores, os marginais, os que levam vidas moralmente condenáveis. Sentou-se à mesa com gente desclassificada, deixou-se tocar por pecadoras públicas, convidou um publicano e pescadores a integrarem o grupo dos discípulos. Com essa atitude escandalosa, diz a todos, nomeadamente a quem a religião oficial exclui, que Deus os ama e que os convida a fazer parte da sua família, a integrar a comunidade da salvação, a serem membros de pleno direito da comunidade do Reino, que é o espaço da tolerância, da espera de que as pessoas se regenerem e da sabedoria da paciência.  

A atitude de Jesus é inaceitável para os fariseus, pois, segundo eles, quem não cumpria a Lei tinha de ser excluído do Povo de Deus, por não ter o direito de integrar do campo de Deus.

A lógica farisaica não condiz com a lógica de Deus. Por isso, a parábola do homem que semeia o trigo no seu campo constitui, para nós, a lição da lógica de Deus, não de excesso de zelo, de exclusão, de destruição, de segregação e de fechamento, mas de amor, de misericórdia, de tolerância. O Deus de Nosso Jesus Cristo é um Deus paciente e misericordioso, lento para a ira e rico de misericórdia, que dá ao homem, sempre e em toda a parte, todas as oportunidades para refazer a existência e para integrar plenamente a comunidade do Reino. O seu plano de salvação e de graça é oferta gratuita a todos os homens, bons e maus; depois, em devido tempo, se verá quem são os maus e quem são os bons. E não é fácil separar o bom e o mau, porque as duas realidades coexistem em todos os campos, em todos os corações.

O senhor da parábola é o Deus paciente, que dá ao homem todas as oportunidades, pois não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva. Os servos com excesso de zelo são os crentes do campo do senhor, rígidos e intolerantes, incapazes de olhar o Mundo e o coração do homem com a bondade, a serenidade e a paciência de Deus. E o campo é o mundo e a História, onde coexistem o trigo (sinais de esperança, de vida, de amor que tornam este mundo mais belo e mais feliz) e o joio (sinais de morte, responsáveis pelo sofrimento, pela opressão, pela escravidão), bem como o coração de cada um, capaz de opções de vida ou de opções de morte.

Jesus garante: o método de Deus não passa pelo castigo imediato, pela intolerância face às opções do homem, pela incompreensão dos erros dos seus filhos, mas por deixar os homens crescer em liberdade, integrando a comunidade dos filhos de Deus.

Nos vv. 36-43, Mateus aplica a parábola à vida da comunidade. Nesta aplicação, o eixo central da parábola original passa a ser outro. A problema já não é se o trigo e o joio podem crescer juntos, mas o juízo que espera bons e maus. Mateus insiste que, no dia da colheita (que, nos profetas, se identifica com o dia do juízo de Deus sobre os homens), os bons receberão a recompensa e os maus o castigo.

Na década de 80, já tinha passado o primeiro entusiasmo; a vida das comunidades cristãs era marcada pela monotonia, pela falta de entusiasmo e de empenho, pela mediocridade, pelo laxismo. Para despertar, de novo, nos crentes o entusiasmo inicial, Mateus usa os métodos dos pregadores coevos. Recorrendo à linguagem e aos símbolos da literatura apocalíptica, lembra o juízo futuro de Deus. Os símbolos utilizados (joio queimado no fogo, fornalha ardente, choro e ranger de dentes) impressionam os crentes e levam-nos a infletir os seus modos de vida e a voltar à fidelidade ao Evangelho. Não se trata da descrição do fim do Mundo, mas do convite urgente e emocionado à conversão, ao aprofundamento do compromisso com Jesus e com o Evangelho.

O Evangelho apresenta-nos mais duas parábolas: a do grão de mostarda (vv. 31-32) e a do fermento (v. 33), semelhantes, quer no conteúdo, quer na forma. Em ambas, o quadro é o mesmo: sublinha-se a desproporção entre o início e o resultado final. O grão de mostarda é uma semente pequeníssima, que dá, no entanto, origem a arbusto de razoáveis dimensões; o fermento representa um aspeto insignificante, mas tem a capacidade de levedar uma grande quantidade de massa, aliás toda a massa disponível.

Estas duas parábolas visualizam o dinamismo do Reino. Comparável ao grão de mostarda e ao fermento, parece insignificante, com início modesto e humilde, mas contém potencialidades para encher o Mundo, para o transformar e para o renovar. Trata-se de um dinamismo de vida nova que surge como a pequena semente lançada à terra numa província obscura e insignificante do império romano, mas que lança as suas raízes, invade a História dos homens e potencia o aparecimento de um mundo novo. Assim, Jesus responde à objeção dos que não creem que da mensagem do carpinteiro de Nazaré, surja algo capaz de fermentar o Mundo e a História. E garante que o Reino é realidade irreversível, que veio para ficar e para transformar o Mundo. Estas parábolas constituem a injeção de ânimo capaz de levar ao sério compromisso com o Reino.

A 1.ª leitura (Sb 12,13.16-19) fala-nos do Deus que, apesar da sua força e omnipotência, é indulgente e misericordioso, mesmo quando o homem pratica o mal. Agindo dessa forma, Deus convida os seus filhos a serem humanos, ou seja, a terem um coração tão misericordioso e tão indulgente como o coração do próprio Deus.

O Livro da Sabedoria é o mais recente dos livros do Antigo Testamento (surge na primeira metade do século I a.C.). O autor, judeu de língua grega, talvez nascido e educado na Diáspora – exprimindo-se em termos e conceções do helenismo, elogia a sabedoria israelita, traça o quadro da sorte que espera o justo e o ímpio no mais-além e descreve (com exemplos tirados da história do Êxodo) as sortes diversas que tiveram os pagãos (idólatras) e os hebreus (fiéis a Javé). Aos compatriotas judeus, mergulhados no paganismo, na idolatria, na imoralidade, convida-os a redescobrirem a fé dos pais e os valores judaicos; e aos pagãos, convida-os a verificar o absurdo da idolatria e a aderir a Javé, o verdadeiro e único Deus, pois só Ele é o garante da verdadeira sabedoria e da verdadeira felicidade.

O texto em apreço pertence à terceira parte do livro (Sb 10,1-19,22). Recorrendo, sobretudo, à técnica do midrash, o autor compara os castigos de Deus aos ímpios (pagãos) e a salvação reservada aos justos (o Povo de Deus). Começa por mostrar como a sabedoria de Deus se manifestou na História de Israel. E, em contraste, descreve como Deus tratou os egípcios e os idólatras cananeus. Os cananeus eram, na ótica dos israelitas, raça maldita e perversa. Cometiam crimes hediondos, praticavam obras detestáveis, observavam ritos ímpios e eram cruéis assassinos dos seus filhos. Deus podia tê-los eliminado rapidamente, mas retardou, o mais possível, o castigo, dando-lhes várias oportunidades de se arrependerem e de mudarem de vida.

Assim, Javé deu provas de imensa moderação e manifestou a sua bondade, misericórdia, e justiça. Não tinha de provar nada a ninguém, pois ninguém Lhe podia pedir contas, mas se agiu desse equilibrado e moderado, é porque é um Deus justo. A justiça não é, no Antigo Testamento, a estrita aplicação da lei, mas a fidelidade à própria essência de Deus, que é amor, bondade e misericórdia. Por isso, ser justo equivale, para Deus, a revelar amor, benevolência e bondade na sua atitude para com os homens. E o mais significativo é que a justiça de Deus não se exerce sobre o Povo de Deus, mas sobre um povo de má estirpe e de maldade congénita. É, assim, sugerida a universalidade da salvação.

Por outro lado, o hagiógrafo vê, neste comportamento justo de Deus, uma lição para Israel. Em primeiro lugar, ensina-se que Deus não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva. Por isso, fecha os olhos ante o pecado do homem, a fim de o convidar ao arrependimento; em segundo lugar, ensina que “o justo deve ser amigo dos homens”, pois, se a lógica de Deus é a lógica do perdão e do misericórdia, o Povo de Deus deve assumir a mesma lógica e tomar atitudes de bondade, de amor, de misericórdia, de tolerância, nas relações comunitárias. E a bondade e a compreensão não devem ser reservadas só aos “bons”, mas também abertas aos que fazem o mal.

A 2.ª leitura (Rm 8,26-27) sublinha, de outro modo, a bondade e a misericórdia de Deus: o Espírito Santo, dom de Deus, vem em auxílio da nossa fraqueza, guiando-nos na rota para a vida.

É, efetivamente, Deus que nos dá a força de viver “segundo o Espírito”. No entanto, devemos pedir, continuamente, a Deus, nosso Pai, essa graça. Na verdade, nem sempre sabemos o que devemos pedir, pois nem sempre discernimos entre a vida “segundo a carne” e a vida “segundo o Espírito”. No entanto, o próprio Espírito Santo “vem em auxílio da nossa fraqueza”.

Sobre o modo como Ele o faz e como Paulo entende a intervenção do Espírito a este propósito, o texto permite duas interpretações: por lado, temos dificuldade em articular devidamente os nossos desejos e necessidades e é o Espírito que se encarrega de os formular em nosso nome; por outro, o Espírito junta a sua intercessão inefável aos nossos gemidos, fazendo chegue até Deus a nossa oração. Em todo o caso, o Espírito é mediador eficaz no nosso diálogo com Deus. É nosso intérprete e intercessor, elevando-nos ao Deus que conhece o coração. E a oração, que o Espírito dirige em nossa vez ou apoia, é sempre acolhida por Deus, pois está conforme o plano de Deus.

Enfim, compete-nos crer e rezar segundo aquilo em que dizemos crer e espelhar em obras aquilo que rezamos e em que dizemos crer.

2023.07.23 – Louro de Carvalho

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