sábado, 15 de julho de 2023

Dicastério para a Doutrina da Fé sem os laivos do Santo Ofício

 

A 1 de julho, o Papa Francisco agradeceu ao cardeal Luis Francisco Ladaria Ferrer – em fim de mandato – o trabalho como prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé (DDF) e de presidente da Pontifícia Comissão Bíblica e da Comissão Teológica Internacional, e chamou a suceder-lhe, nos mesmos cargos, Monsenhor Víctor Manuel Fernández, até agora arcebispo de La Plata, na Argentina (Argentina), que tomará posse em setembro.

Aquando da nomeação, Francisco, citando a exortação apostólica “Evangelii gaudium”, o documento programático do seu pontificado, declarou, em carta, que lhe confiava “uma tarefa muito valiosa”, a de “guardar o ensinamento que brota da fé”, para dar razão à nossa esperança, mas não como inimigos que apontam e condenam”.

O Pontífice, frisando que o dicastério a que Fernández vai presidir, em outros tempos, usou métodos imorais, pois em vez de se promover o conhecimento teológico, se perseguiam possíveis erros doutrinais, diz esperar que o prefeito faça “algo muito diferente”.

Enfatizou que Fernández, antigo reitor da Faculdade de Teologia de Buenos Aires, presidente da Sociedade Argentina de Teologia e presidente da Comissão de Fé e Cultura do Episcopado Argentino, em todos os cargos votado pelos pares, teve, assim, valorizada a sua Teologia e o seu carisma. Como reitor da Pontifícia Universidade Católica Argentina, incentivou a saudável integração do conhecimento. Como pároco de “Santa Teresita” e como arcebispo de La Plata, soube pôr o conhecimento teológico em diálogo com a vida do Povo de Deus.

Considerando que, para as questões disciplinares – conexas especialmente com o abuso de menores – foi criada uma secção específica com profissionais competentes, Francisco pede ao prefeito que dedique o seu empenho pessoal mais diretamente ao objetivo principal do DDF: “manter a fé”. E sustenta que, para não limitar o sentido desta tarefa, se deve esclarecer que se trata de “aumentar a inteligência e a transmissão da fé ao serviço da evangelização, para que a sua luz seja critério de compreensão do sentido da vida, sobretudo face às questões suscitadas pelo progresso da ciência e pelo desenvolvimento da sociedade”, questões que, acolhidas em renovado anúncio da mensagem evangélica, se tornam instrumentos de evangelização, pois facultam o diálogo com “o contexto atual no que é inédito na História da Humanidade”.

Além disso, a Igreja “tem necessidade de crescer na interpretação da Palavra revelada e na compreensão da verdade”, sem que tal implique impor uma única forma de o expressar. E, se “as diversas linhas de pensamento filosófico, teológico e pastoral, se deixarem harmonizar pelo Espírito no respeito e no amor, podem fazer crescer a Igreja”, num crescimento harmonioso que preservará a doutrina com mais eficácia do que qualquer mecanismo de controlo. É, pois, bom que a lição de Fernández expresse que a Igreja estimula o carisma dos teólogos e o seu esforço de pesquisa teológica”, desde que “não se contentem com uma teologia de gabinete, com “uma lógica fria e dura que pretende dominar tudo”, pois a realidade é superior à ideia. Nesse sentido, deve a Teologia estar atenta a um critério fundamental: considerar inadequada toda a conceção teológica que, em última instância, questione a omnipotência de Deus e, sobretudo, a sua misericórdia”. É necessário um pensamento que saiba apresentar, de forma convincente, o Deus que ama, que perdoa, que salva, que liberta, que promove as pessoas e as chama ao serviço fraterno. E isso ocorre, se “o anúncio se foca no essencial, que é o mais belo, o maior, o mais atrativo e, ao mesmo tempo, o mais necessário”. Há, de facto, uma ordem harmónica entre as verdades da mensagem; e o maior perigo ocorre se as questões secundárias ofuscam as centrais.

Ora, tendo em conta esta riqueza, a tarefa do prefeito implicará particular cuidado em verificar que os documentos do DDF e de outros tenham adequado suporte teológico, sejam coerentes com o rico húmus do perene ensinamento da Igreja e aceitem o Magistério recente.

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Até à entrada em vigor da Constituição Apostólica “Prædicate Evangelium”, que põe todos os departamentos da Cúria Romana a focar-se na Evangelização e agir sob este foco, a Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) era a mais antiga das nove então existentes e era a sucessora do Tribunal da Inquisição ou Santo Ofício, instituição que perseguia os hereges – em muitos casos, condenando-os à morte – e que durou até ao século XIX.

“É mais correto falar de ex-Santo Ofício”, sustenta a vaticanista Mirticeli Medeiros, pesquisadora de História do catolicismo na Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG), em Roma. “É um herdeiro ‘direto’, digamos assim, mas a linha de ação é diferente. Não temos mais a prática inquisitorial, não temos mais um índice de livros proibidos, como naquele período.”

Não obstante, a CDF era um pouco a continuação do Santo Ofício, porque tinha essa raiz e a ligação com o passado. E “a Igreja não o nega isso”, diz o vaticanista Filipe Domingues, doutor pela PUG. “Mas não é a mesma coisa mais. Não é justa essa constante comparação da CDF, como ela é hoje, com aquela instituição do passado”, sustenta, esclarecendo: “Serve para garantir a unidade da Igreja em torno das mesmas crenças, da mesma doutrina, da mesma fé. A todos os temas de moral e de fé, que são os principais temas pelos quais a Igreja precisa de orientação, conforme se apresentam novos desafios, a Congregação dá as respostas.”

Domingues ressalta que, se o órgão, no passado, tinha o papal de apontar e de condenar heresias, no contexto das disputas teológicas, “hoje tem uma missão diferente”, a de ajudar o Papa a esclarecer como reinterpretar a nossa fé, conforme mudam os tempos.

O teólogo e filósofo Fernando Altemeyer Junior, professor da Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP), vê mais semelhanças com o Santo Ofício, pois “continua com procedimentos inquisitórios medievais”, sem transparência e sem regras democráticas e detém o caráter persecutório e de imposição, ainda que Paulo VI e João Paulo II quisessem rejuvenescer e mudar a CDF, mas não o conseguiram, por via da inércia de um poder concentrado. E Francisco ou realiza esta reforma ou será engolido pela máquina.

As decisões são tomadas a partir de questões dogmáticas e de moral, após consulta e estudos de peritos e a escrita de minutas e de processos judiciais. Os inquiridos têm pouca chance de defesa. “Em geral, são condenados ou entram para uma lista da Cúria e passam a ser ostracizados” – diz o professor da PUC-SP. – “Atualmente, é uma comissão que está acima da evangelização e da prática da caridade pastoral. Uma mudança nevrálgica seria pô-la ao serviço do povo de Deus e das igrejas no mundo, e não da burocracia eclesiástica e de sua leitura eurocentrada.”

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A Igreja adotou prática inquisitória já no século XIII, na França. Não era procedimento unificado: a perseguição aos dissidentes fazia-se de forma e com intensidade diferente conforme a região.

O Santo Ofício surgiu na Idade Média, entre os séculos XII e XIII, para combater os cátaros e os valdenses, considerados hereges e apóstatas. A primeira versão da Inquisição, instituída pelo papa Inocêncio III, voltava-se contra os cátaros, porque “acreditavam em dois deuses, tal como os gnósticos do cristianismo primitivo: o bom e o mau, hostis um ao outro desde o princípio da Humanidade. Para os cátaros, a matéria era essencialmente má, e o homem, um alienado e condenado a viver no reino da perdição. O objetivo do ser humano era ir ao encontro da perfeição e participar da comunhão do mundo espiritual. Criam na redenção dos espíritos e na reencarnação, na transmigração das almas do homem para o homem e do homem para os animais.

Considerada Inquisição Moderna, a estrutura da Santa Sé que padronizou esse tipo de ação foi criada no século XVI, pelo papa Paulo III, a 21 de julho de 1542, estabelecendo uma comissão de seis cardeais com a tarefa de supervisionar questões de fé.

A criação dessa comissão surge na tentativa de restaurar uma estrutura, a dos tribunais da Santa Inquisição, caída praticamente em desuso, em meados do século XIV. Refundada no contexto de Reforma Protestante e estruturada num novo modelo de Inquisição, mais rigoroso e minucioso, a comissão, denominada Santa Inquisição Romana e Universal, tinha, a princípio, o caráter exclusivo de Tribunal para as causas da heresia e de cisma. O papa Paulo IV, a partir de 1555, ampliou-lhe a esfera de ação, tornando-a competente para julgar também questões morais de diferentes tipos. Em 1571, o papa Pio V criou a Congregação para a Reforma do Índice de Livros Proibidos. Em 1588, o papa Sisto V promoveu uma reforma na Cúria Romana, ampliando as atividades da Inquisição “a tudo que pudesse direta ou indiretamente dizer respeito à fé e à moral”.

Segundo o sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP, a prática inquisitória tem raízes no modo que a Igreja Católica entendia como necessário para defender o cristianismo. “A Igreja Católica e as igrejas protestantes representam dois modelos opostos de manter o cristianismo vivo na História”, diz. “O protestantismo carateriza-se pela flexibilidade doutrinal e pela subjetividade, que leva – em última análise – à fragmentação, mas garante adaptação mais fácil às demandas da mentalidade dominante, em dado contexto. O catolicismo busca estabilidade, universalidade e objetividade, o que lhe garante unidade e universalidade, mas dificulta a adaptação a momentos específicos.”

Embora a doutrina não seja estática, o seu dinamismo joga-se entre o permanente e universal, e o contingente e particular, que se realiza nas pastorais de fronteira e nas missões em terras não cristãs. É uma tensão que não se resolve na posição de equilíbrio entre os dois polos, mas no domínio alternado entre eles. Ora, inquirir é investigar. E era o que fazia o Tribunal da Inquisição, como faz a Justiça hoje nos pleitos, havendo quem sustente que a Igreja, segundo os documentos, sempre permitiu ao acusado o direito de defesa, e o número de condenados é bem menor em relação ao número de acusados, ou seja, a maioria foi declarada inocente.

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Todavia, a CDF, com a sua organização até à “Praedicate Evangelium”, é fruto de reestruturações ocorridas ao longo do século XX. O papa Pio X reorganizou o órgão e rebatizou-o de Sagrada Congregação do Santo Ofício, em 1908. Na sequência da reforma do Concílio Vaticano II, em 1965, o papa Paulo VI mudou-lhe o nome para Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé. Os métodos foram atualizados e o caráter punitivo da condenação foi substituído pelo caráter positivo da correção dos erros, juntamente com a custódia, preservação e promoção da fé. E o Índex dos livros proibidos foi abolido.

No documento “Integrae Servandae”, de 1965, Paulo VI enfatiza que o objetivo desse ministério da Santa Sé “é tutelar a doutrina e os costumes em todo o mundo católico”, promovendo e corrigindo, em vez de condenar e de punir. Contudo, no pontificado de João Paulo II, iniciado em 1978, grupos progressistas da Igreja, como os da Teologia da Libertação, estiveram na mira da CDF. Entre os brasileiros investigados e punidos, contam-se os teólogos Leonardo Boff e Ivone Gebara, a quem foi imposto o “silêncio obsequioso”. O pontificado de João Paulo II é considerado muito conservador, em que as certezas da fé, os dogmas da fé e a moral cristã tradicional foram defendidos e difundidos. De 1981 a 2005, foi prefeito da CDF o cardeal alemão Joseph Ratzinger, que sucedeu João Paulo II na chefia da Igreja, com o nome de Bento XVI. O cargo e sua atuação renderam a Ratzinger o apelido de “rottweiler de Deus”.

Francisco segue por outra via, mística e intelectual, e com outro princípio articulador: compaixão e verdade, construídas em diálogo poliédrico. Superação da linha vertical, de cima para baixo, por uma circulação dialógica e complexa do pensamento e das palavras. Dogma ligado à história viva e não mumificado em tumbas e em sarcófagos de peritos murados.

Trabalhar nesse dicastério deu visibilidade a Ratzinger no Mundo romano”. Pela sua trajetória académica, Ratzinger imprimir uma marca à CDF que nenhum outro prefeito lhe imprimira. Entretanto, João Paulo II fez mais uma reforma na antiga Inquisição. Em 1988, na reorganização da Cúria Romana, especificou o funcionamento da CDF, frisando que a sua tarefa é “promover e salvaguardar a doutrina sobre fé e moral em todo o Mundo católico”. Em 1997, novo documento ressaltou o caráter de tribunal da congregação, a quem compete “julgar os crimes contra a fé e os crimes mais graves cometidos tanto contra a moral como na celebração dos sacramentos”. João Paulo II, em 2001, deu normas sobre como diversos processos deveriam tramitar na CDF, normas que Bento XVI atualizou, em 2010.

Com a reforma de João Paulo II, o dicastério ficou dividido em quatro setores: o doutrinal, ou seja, da redação de documentos que tratam da doutrina católica e de consultoria doutrinal em relação a outros textos produzidos na Santa Sé; o disciplinar, que examina, por exemplo, desvios de moral por parte de sacerdotes, aparições atribuídas à Virgem Maria, delitos de sacrilégios, excomunhões, etc.; o matrimonial, que avalia casos de dispensa do matrimónio bastante peculiares; e o que cuida dos institutos tradicionalistas que não aceitam o Concílio Vaticano II, mas se mantêm em comunhão com o papa. Todos os assuntos são discutidos pelo colégio, que delibera, votando as questões. E todos os pontos são submetidos ao papa para aprovação.

Analisam se a pessoa tem uma função de ensinamento na Igreja, ou por exemplo, se um padre, um bispo, um catequista que tem a função de promover a fé e a moral católica, mas não segue em conformidade. Aí, o dicastério pode tirar o direito de a pessoa falar em nome da Igreja.

Até ao pontificado de Francisco, a CDF era o ministério número um na Cúria Romana. Com a reforma que ele vem fazendo, o organismo, em termos de hierarquia e importância, deu lugar à ao Dicastério para a Evangelização. A ideia de Francisco é demonstrar que a promoção da experiência com Cristo vem antes do ensinamento, da doutrina. É uma correspondência ao modelo de evangelização adotado pela Igreja, na modernidade, que Francisco quer promover.

Posicionamentos recentes da própria CDF revelaram-se progressistas. Por exemplo, foi sob a égide de Francisco que, em 2018, por exemplo, a Santa Sé passou a considerar a pena de morte inadmissível, qualquer que seja a situação. E, face a questões suscitadas sobretudo por grupos conservadores extremistas na Igreja, questionando a legitimidade do uso de vacinas produzidas mediante pesquisas com linhagens celulares a partir do tecido de embriões, o dicastério publicou um documento segundo o qual “é moralmente aceitável utilizar as vacinas anticovid-19 que tenham utilizado linhas celulares de fetos abortados no seu processo de investigação e produção”.

Houve exemplos dramáticos de erros de condenação de Joana D’Arc, de Galileu Galilei, de Teilhard de Chardin, de Häring e, sobretudo, do dominicano queimado vivo Giordano Bruno. E, recentemente, mais de 200 teólogos e teólogas foram silenciados no pontificado de João Paulo II, entre os quais Boff, Gebara, Drewermann, Tissa Balasuriya, Congar, Schillebeeckx, Hans Küng, etc. Porém, Francisco tem, com sinais e símbolos, avançado anos-luz mais do que a CDF, pois assume as questões vitais e não ilusões de palavras e de discursos autofágicos. Ao tocar, falar, viver como bispo de Roma, sensível ao que ocorre no mundo, vem construindo uma nova Doutrina da Fé, sem anátemas nem condenações e aberta ao povo.

Agora, o DDF tem a secção doutrinal e a disciplinar. E, sem esquecer nenhuma delas, o prefeito privilegiará a tarefa doutrinal, fomentando o diálogo e procurando a Teologia com raiz no Povo. Importa que fulja, acima de tudo a misericórdia e a ternura de Deus e que, na Igreja, a referência seja Jesus Cristo, o rosto misericordioso do Pai, e o dinamismo seja o da sinodalidade, do serviço e do amor fraterno, na perspetiva da Igreja em saída, preferindo os pobres.

2023.07.15 – Louro de Carvalho

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