terça-feira, 18 de julho de 2023

Ex-secretário de Bento XVI não terá liderança pastoral na Alemanha

 

Logo que Bento XVI, o Papa emérito, foi sepultado na cripta da Basílica de São Pedro, uma editora italiana lançou os primeiros exemplares do livro Nothing but the Truth: My Life Beside Benedict XVI (“Nada mais do que a verdade: a minha vida ao lado de Bento XVI”), pleno de afeto e de admiração por Bento como pessoa, como teólogo e como papa.

O livro reitera insistência em como Bento XVI renunciou, em fevereiro de 2013, por vontade própria e plenamente consciente do que estava a fazer, e aborda, uma por uma, algumas das que chama de teorias “absurdas”, que lançam dúvidas sobre a validade da renúncia.

Apesar de Georg  Gänswein deixar claro o total reconhecimento de Bento XVI ao Papa Francisco como o Pontífice reinante e a verdadeira afeição e admiração de Francisco por Bento XVI, admite que Bento e Francisco não tiveram relacionamento tão amigável como o que se tem propalado.

Estava previsto o lançamento do livro, em Língua Italiana, para 12 de janeiro, pela Piemme, editora que faz parte da empresa Mondadori, mas o texto foi divulgado aos repórteres no final de 5 de janeiro, após o funeral de Bento XVI.

Gänswein escreveu que Bento ficava triste com as tentativas de o retratar a ele e a Francisco como oponentes, “especialmente quando a observação vinha de dentro do Vaticano”.

É certo que eram evidentes as diferenças entre os dois, no estilo e na abordagem teológica, mas o problema era, “não tanto a existência de dois papas, um reinante e outro emérito, como o nascimento e desenvolvimento de duas secções de apoio, cada um afirmando que o seu papa estava certo e o outro errado.

Gänswein repete informações sobre o escândalo “VatiLeaks” de que o mordomo de Bento XVI, Paolo Gabriele, saiu condenado por roubar e por entregar a um repórter cartas e documentos papais particulares – caso que descreve como “diabólico” – e aflora pormenores  sobre o que chama “bomba” do papa emérito, dado como coautor do livro em defesa do celibato sacerdotal do cardeal Robert Sarah, prefeito da Congregação para o Culto Divino e os Sacramentos.

O livro de Sarah foi publicado em janeiro de 2020, quando Francisco terminava a sua exortação (então ainda não publicada) em resposta ao Sínodo dos Bispos para a Amazónia, que lançara a ideia de permitir a ordenação de homens casados ​​para comunidades remotas da região, o que foi percebido uma condicionante da decisão papal.

Logo após o desaire das relações públicas por Sarah ter dado Bento como coautor, sem a permissão de Bento, Francisco disse a Gänswein que deveria dedicar-se, a tempo inteiro, a ajudar Bento, não precisando mais de cumprir as suas responsabilidades como prefeito da casa papal.

O arcebispo contou-o ao Papa emérito, que respondeu, “meio a sério, de forma irónica”: “Parece que o Papa Francisco não confia mais em mim e quer que sejas meu guardião.”

Contudo, Francisco não o desligou, oficialmente, do cargo de prefeito da casa papal, para o qual fora designado, em 2003, por São João Paulo II. Apenas o dispensou do exercício efetivo das suas funções no Vaticano. Não obstante, Gänswein escreveu que, às vezes, se sentia como “o servo de dois senhores”, sendo o secretário de Bento XVI, ao mesmo tempo em que servia Francisco como prefeito da casa papal. “A esperança de Bento de que eu fosse o elo entre ele e o seu sucessor era um tanto ingénua, porque, já depois de alguns meses (nos dois cargos), tive a impressão de que entre mim e o novo Papa não havia sido criado um clima de confiança”, escreveu o arcebispo.

Bento XVI leu, no jornal do Vaticano L’Osservatore Romano, a decisão de Francisco, em 2021, de restringir as celebrações da missa pré-Vaticano II (em Latim, segundo o missal de São Pio V, reformado por São João XXIII), condicionando uma permissão de Bento XVI, em 2007.

Gänswein escreveu que perguntou ao Papa emérito o que pensava da decisão de Francisco. E ele respondeu: “O papa reinante tem a responsabilidade de tomar decisões como esta e deve agir de acordo com o que acredita ser o bem da Igreja.” Todavia, a nível pessoal, viu isso como “uma mudança definitiva de rumo” e entendeu que era “um erro”.

Vaticano não reagiu, oficialmente, às críticas ao Papa argentino, amplamente divulgadas na imprensa internacional, mas, a 9 de janeiro, o ex-secretário foi convocado para uma audiência a portas fechadas com Francisco. O conteúdo da conversa não foi divulgado, mas, segundo fontes fidedignas, o Pontífice estaria desapontado e pediu discrição a Gänswein.

Neste sentido se entende que, em vésperas do lançamento do livro, Francisco tenha advertido – aquando da recitação do Angelus (oração que se recita em recordação do Mistério perene da Encarnação, três vezes ao dia), que o Papa reza aos domingos e em outros dias especiais – que “a intriga é uma arma letal que mata; mata o amor, a sociedade e a fraternidade”.

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A especulação sobre o futuro de Gaenswein aumentou após a morte de Bento XVI, a 31 de dezembro e aprofundou-se, uma semana depois, com a publicação das memórias do arcebispo, Nothing But the Truth: My Life Beside Pope Benedict XVI, em que relata a sua vida ao serviço de Bento XVI e no desempenho do cargo de prefeito da casa papal, sob o Papa Francisco, revelando intrigas palacianas, ajustando contas e lançando Francisco sob uma luz desfavorável, britando a ideia, alegadamente construída, de que a relação entre Francisco, ativo, e Bento, emérito, havia sido feliz. Contrariava, assim, o histórico de visitas, algumas com ofertas, de Francisco ao Papa emérito e os convites para algumas cerimónias, como alguns momentos do Ano Jubilar da Misericórdia, a canonização de São João XXIII e de São João Paulo II e, pelo menos, um consistório de criação de novos cardeais.   

Gaenswein parou de trabalhar ativamente como prefeito da casa papal em 2020, após a publicação do livro do cardeal Sarah, que o colocou em apuros com Francisco, embora tenha permanecido oficialmente no cargo até 28 de fevereiro. Entretanto, após a morte de Bento XVI, deixou o Mosteiro Mater Ecclesiae, nos jardins do Vaticano, onde viveu com Ratzinger até à sua morte (no último dia de 2022), para se mudar para um apartamento no Vaticano.

O seu futuro era uma incógnita, com alguns rumores a apontarem para uma espécie de exílio diplomático na Costa Rica.

O livro mais recente relata o afastamento de Gaenswein por Francisco, no Vaticano, e descreve o Pontífice como insincero, ilógico e sarcástico, ao decidir-lhe o destino. 

Por conseguinte, o Vaticano determinou, em junho, o regresso de Georg Gänswein, atualmente com 66 anos de idade, à sua diocese de origem no sudoeste da Alemanha, a diocese de Friburgo, regresso que se concretizou a 1 de julho. A decisão foi tomada pelo Papa Francisco e anunciada, em comunicado do Vaticano, divulgado no portal de notícias Vatican News.

De acordo com a Associated Press, a diocese de Freiburg confirmou que Georg Gänswein deixaria Roma na primeira semana de julho e que se fixaria naquela cidade alemã. Além disso, afirmou que, atualmente, nenhuma “outra função” lhe fora atribuída.

A Associated Press explica que, por norma, todos os secretários papais regressam às suas dioceses de origem, após a morte do Papa que serviram. Mesmo assim, a agência de notícias nota que o anúncio do Vaticano poderá mostrar que a relação entre Georg Gänswein e o Papa Francisco é marcada por alguma tensão, uma vez que nenhuma nova missão foi atribuída ao arcebispo alemão, que ainda é demasiado novo para se tornar um prelado emérito, embora não para se reformar como funcionário do Vaticano.

O arcebispo de Friburgo, Stephan Burger, teve uma reunião com Georg Gaenswein, após o seu retorno à Alemanha, disse a arquidiocese de Burger, em breve comunicado publicado no seu site, em 17 de julho.

Segundo o arcebispo Burger, é possível que Georg Gaenswein assuma tarefas não de liderança pastoral, como crismas ou missas comemorativas locais. No entanto, conduzirá “regularmente” serviços na catedral de Freiburg, como cónego honorário, a partir deste outono.

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É natural que a relação entre dois papas, o reinante e o emérito, seja humanamente impecável e tensa em termos da orientação disciplinar e até na definição das prioridades em relação às matérias doutrinais a abordar aqui e agora (não se conhecem divergências doutrinais). O mal está na tentativa de instrumentalizar um contra o outro. O cardeal Sarah não tinha que fazer de Bento XVI coautor do seu livro, nem devia ter publicado, no rescaldo do Sínodo sobre a Amazónia, nada sobre a disciplina do celibato sacerdotal, tal como o arcebispo Gaenswein bem poderia deixar de sublinhar o aspeto pessoal de Bento XVI sobre uma determinada medida tomada por Francisco. Obviamente, ninguém é de ferro para aplaudir medida que venha contrariar outra que nós hajamos tomado. Porém, Bento XVI reagiu como devia: Francisco tem o dever de decidir segundo o que julga melhor para a Igreja.

Por isso, não admira que a Georg Gaenswein, de momento, não tenha uma liderança pastoral autónoma, como o pastoreio de uma diocese. Mostrou que não sabe ser discreto, quando necessário, e não se lhe reconhece ação de vulto para lá do múnus protocolar.

2023.07.18 – Louro de Carvalho

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