segunda-feira, 10 de julho de 2023

Convite à alegria suscita corações sinceros e gratos

 

Situado na sociedade de Israel após o exílio e sob influência da cultura helénica, o livro do profeta Zacarias apela fortemente à espiritualidade messiânica. O Messias é apresentado sob diferentes formas: rei, pastor e servo do Senhor. 

O oráculo tomado como 1.ª leitura da Liturgia da Palavra do 14.º domingo do Tempo Comum no Ano A (Zc 9,9-10), convida a Filha de Sião ao júbilo pela vinda do Messias, a qual significa a intervenção definitiva de Deus em favor do seu Povo. A cidade jubilosa por acolher o cortejo de retorno do seu rei vitorioso sabe que se trata de um cortejo de vitória, mas sem a pompa e a exibição das cortes imperiais. Ao invés, a entrada do rei na cidade é singela, humilde e pacífica. O cavalo de guerra, que simboliza força, poder e violência e que deveria ser usado como montada para o rei, cede o lugar ao jumentinho, que simboliza mansidão, serviço, humildade. Este rei pacífico e dócil, que não usa as forças da agressividade, porá fim às guerras, destruindo os seus instrumentos de morte, e iniciará a paz universal, que se estenderá até aos confins do universo.

A História da Salvação revelou, inúmeras vezes, ao longo das eras, que é através dos pequenos, dos humildes, dos pobres, dos insignificantes que Deus realiza a sua vontade salvífica – tema a retomar no Evangelho desta dominga. As primeiras comunidades cristãs viram no cortejo deste rei o anúncio da entrada de Jesus Cristo em Jerusalém. No Evangelho, Jesus põe de lado a rigidez da lei e convida a Humanidade, que sufoca sob o peso do pecado, a viver a simplicidade do amor.

O Livro de Zacarias é um livro profético em 14 capítulos. Os biblistas são unânimes em reconhecer que, entre os oito primeiros capítulos e os restantes, há uma diferença tão grande em contextos, estilo, vocabulário e temática, que se fala de dois livros num e de dois autores diferentes. E, porque não se conhece a identidade do autor do segundo livro (capítulos 9-14), chama-se-lhe Déutero-Zacarias, cujos oráculos são situados, pela maioria dos comentadores, no final do século IV ou nos princípios do século III a.C.. O contexto parece revelar a época posterior às vitórias de Alexandre da Macedónia, com o Povo de Deus integrado no império helénico.

O livro está marcado por forte acento messiânico. Na primeira parte (cf Zc 9,1-11,7), o profeta anuncia a intervenção definitiva de Deus em favor do seu Povo, na figura do Messias; na segunda (cf Zc 12,1-14,21), os oráculos descrevem a salvação e a glória futura de Jerusalém.

O Déutero-Zacarias descreve, no texto em apreço, o regresso do rei vitorioso. A cidade é convidada a alegrar-se e regozijar-se pois o rei, “justo e salvador”, chegou humilde e pacífico, a contrastar com as exibições de força, de poder, de agressividade dos grandes do mundo. Porém, dispõe da força suficiente para destruir a guerra: aniquilará os instrumentos de morte – carros de combate, cavalos de guerra, arcos de guerra – e proclamará a paz universal. O seu reino irá “de um mar ao outro mar” e do “rio” (Eufrates) “até aos confins da terra”: abarcará todo o mundo.

O Déutero-Zacarias deixa clara a preocupação de Deus com a salvação do seu Povo. Na fase em que o profeta leva a cabo a sua missão, o Povo de Deus conhece relativa tranquilidade, mas é um Povo subjugado, manipulado, impedido de escolher livremente o seu destino e de construir o seu futuro. É neste contexto que o profeta anuncia o rei justo e salvador, que vem ao encontro do Povo, para o libertar e para lhe oferecer a paz, ou seja, a harmonia, o bem-estar, a felicidade.

Deus não perdeu qualidades, nem mudou a sua essência. O Deus que assim atuou ontem é o Deus que assim atua hoje e que assim atuará sempre. Ao longo da nossa caminhada de todos os dias, experienciamos, frequentemente, o desencanto, a frustração, a privação de liberdade. Todavia, somos convidados a redescobrir o Deus que vem ao nosso encontro, que nos restaura a esperança e nos oferece a paz.

Uma visão “americanizada” da vida e do mundo sustenta a necessidade de forças armadas temíveis, do largo investimento em instrumentos de morte cada vez mais sofisticados (incluindo as armas de fragmentação e as armas nucleares), para impor, pela força e pelo medo, a paz e a segurança do mundo. O Déutero-Zacarias diz-nos que a lógica de Deus é outra: Ele chega desarmado, pacífico, humilde, sem arrogância, sendo, dessa forma, que salva e liberta os homens.  

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No Evangelho (Mt 11,25-30), depois de completar a catequese formativa no “discurso da Missão” e de enviar os discípulos para pôr em prática os valores do Reino, anunciando a Boa Nova, Mateus coloca-nos diante de Jesus, a ouvir as partilhas dos discípulos que retornam da missão com as impressões e reações dos que ouviram o anúncio. O Mestre percebe que os habitantes das grandes regiões e cidades estão cheios das próprias verdades e se negam a abrir o coração à verdade salvífica do Reino dos Céus. O Evangelho foi anunciado e rejeitado. As sementes foram lançadas, mas os diferentes tipos de terreno não permitiram que elas nascessem e crescessem.

O trecho em referência revela que Jesus sabe que o Evangelho é rejeitado pelos poderosos, egocêntricos e autossuficientes, mas será acolhido pelos pequenos e considerados invisíveis e insignificantes; a semente, lançada em terra fecunda, dará fruto em abundância.

A catequese desta dominga distribui-se por três momentos. No primeiro, Jesus dá graças ao Pai por esconder a sua sabedoria dos que pensam já serem sábios e inteligentes e, portanto, pensarem que não necessitam de nada nem de ninguém. No segundo, complementar do primeiro, repete a ação de graças por Deus não Se esquecer dos pequenos e desamparados, que são solícitos aos apelos divinos. Estes “sábios e inteligentes” mencionados por Jesus são, possivelmente, os fariseus, os escribas e os mestres da lei, que, ao fecharem-se na observação escrupulosa e obcecada da doutrina, tornam a Lei fonte única e absoluta da salvação. Já os pequenos são, primeiramente, os próprios discípulos, vindos da simplicidade, e os excluídos (publicanos, prostitutas, doentes, órfãos, viúvas, etc.), os que Jesus encontrava pelos caminhos tortuosos e empoeirados da Galileia e que eram considerados amaldiçoados pelos “sábios e inteligentes”, por não conhecerem a Lei na sua vastidão e na sua complexidade.

Nestas asserções, Jesus esclarece que a sabedoria do Reino não é mero acúmulo de conhecimento intelectual que adentra pelos olhos, alcança a razão, mas não penetra e nem transforma o coração. A sabedoria elogiada por Jesus é fruto da experiência de intimidade com Deus. Assim como alguns cristãos extremistas de hoje, os mestres da lei, fariseus, escribas viam o conhecimento da lei como sinónimo de conhecimento da vontade de Deus. Achavam que, por a conhecerem, já tinham livre acesso a salvação e eram os donos do projeto de Deus. Por isso, não abriram o coração para acolher o Verbo de Deus; e, fechando-se às propostas do Evangelho, negaram-se a acolher Jesus e não aprenderam a viver em comunhão com Deus e com o seu projeto salvífico.

A Lei tomada como norma absoluta da vida dificultava imenso a vivência da fé para o povo simples. Se, para alguém com conhecimento académico, era difícil decorar e viver os 613 mandamentos, tal seria causador de angústia e desolação para alguém que nem conhecia o Decálogo. Era um jugo escravizador, uma carga pesadíssima. 

Assim, a última asserção de Jesus apresenta a novidade singular do Evangelho: a salvação como dom gratuito e incondicional para todos os que aceitarem viver o projeto que Deus Pai apresenta por meio do Filho. Se o Reino é semente lançada, todos devem recebê-la; não cabe ao semeador decidir quem deve ou pode recebê-la; ele lança a semente confiando no mistério da Graça que trabalha dia e noite para que a semente cresça. A proposta do Reino é para todos, sem exceção: para os que pensam já ser sábios e entendidos e para os que sabem que não são. Aos que têm consciência da própria fragilidade e das feridas que o pecado impôs nas suas vidas e querem a misericórdia para lhes curar as feridas e lhes oferecer uma vida nova, a única exigência para ter acesso a este Reino é viver segundo o Espírito Santo. É a isto que vem o convite do Senhor: quem se sente cansado, venha até Ele, que Ele o aliviará. O seu jugo é suave e a sua carga é leve.

Nos versículos anteriores ao texto evangélico desta dominga, Jesus havia dirigido veemente crítica aos habitantes de algumas cidades situadas à volta do lago de Tiberíades (Corozaim, Betsaida, Cafarnaum), que foram testemunhas da sua proposta de salvação e se mantiveram indiferentes. Demasiado cheios de si próprios, instalados nas suas certezas e calcificados nos seus preconceitos, não aceitavam questionar-se, a fim de abrir o coração à novidade de Deus. Agora, Jesus manifesta-Se convicto de que a proposta rejeitada pelos habitantes das cidades do lago encontrará acolhimento entre os pobres e marginalizados, desiludidos da religião oficial e que anseiam pela libertação que Deus tem para lhes oferecer. Acolhendo a proposta de Jesus e seguindo-O, os pobres e oprimidos encontrarão o Pai, tornar-se-ão “filhos de Deus” e descobrirão a vida plena, a salvação, a felicidade.

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Na 2.ª leitura (Rm 8,9.11-13), continuamos a acompanhar a catequese do apóstolo Paulo que, na sua maturidade missionária, tenta despertar os cristãos vindos do judaísmo e do paganismo para viverem sob o senhorio de Cristo e sem as divisões culturais. A salvação, que é dom divino e gratuito oferecido a toda a humanidade, chega até nós através de Jesus Cristo e atua em nossa vida pelo Espírito Santo. Cabe a cada um aceitar livremente viver esta realidade salvífica. Aqui, são Paulo faz novamente uso das suas famosas analogias de oposição: o Espírito e a Carne. Viver segundo a carne é viver afastado de Deus e fechado à sua Graça, construindo projetos de egoísmo e distantes dos valores do Reino. Ora, insistir em tais projetos produzirá morte e destruição. Porém, viver segundo o Espírito é viver em permanente atitude de escuta da Palavra, na abertura e na obediência ao desígnio divino e na doação da própria vida, como ensinou e viveu Jesus. Ou seja, é ter o coração decidido a fazer parte da comunidade dos discípulos e acolher a proposta do Reino do Pai na pessoa de Jesus Cristo.

Acolhendo a pessoa de Jesus e fazendo-se seus discípulos, todos passarão a ter como lei absoluta o Amor, porque conhecerão a verdade do coração de Deus. Muitos presumirão ser por demais arriscado ter como instância normativa da vida o amor, já que vivemos numa sociedade que perdeu o sentido de tão sublime palavra. Todavia, é preciso estar atento: o parâmetro de que falamos não é mera afetividade interesseira que, muitas vezes, se disfarça, pretensiosamente, de pura gratuidade; a norma essencial para ser discípulo e verdadeiramente humano é o Amor que Se doou por nós na Cruz.

E quem ama como Jesus conhece perfeitamente a norma moral porque o amor é a plenitude da Lei (Rm 13,10). Com efeito, “o sentido último de toda a norma moral é a caridade; toda a norma moral não exprime senão uma exigência da verdade do amor” (São João Paulo II). É aqui que o fardo pesado se torna um jugo suave e leve, porque todo aquele que acolhe o Reino e se torna discípulo de Cristo tem a certeza de que está a ser olhado por um coração manso e humilde (Mc 10,21), o mesmo coração que nos contemplará no fim dos tempos, pois, no “entardecer de nossa vida, seremos julgados pelo Amor” (São João da Cruz).

Os corações sinceros e agradecidos acolhem o Reino e testemunham-no.

2023.07.09 – Louro de Carvalho

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