sexta-feira, 21 de julho de 2023

O que pensa o novo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé

 

O Papa nomeou Víctor Manuel Fernández prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé (DDF).

Tucho, como é chamado o até agora arcebispo de La Plata, na Argentina, é tido como “teólogo do Papa Francisco” e o “ghost writer” por trás de vários escritos papais.

Formado em Teologia, com especialização bíblica, pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e doutorado em Teologia pela Faculdade de Teologia de Buenos Aires, foi professor de seminário, diretor de ecumenismo e diretor de catecismo. Em 2007, participou da V Conferência do Episcopado Latino-Americano (CELAM), em Aparecida, como representante da Argentina e, depois, como membro do grupo de redação do documento final.

Em novembro de 2014, após do Sínodo sobre a Família, celebrado em outubro, em entrevista à revista Vida Nueva, respondendo à pergunta sobre a sua opinião quanto à asserção do cardeal americano Raymond Burke de que o Sínodo teria sido manipulado, exortou a não ser “rígido” e a aceitar o que Deus quer trazer à Igreja por Francisco. Ou seja, em vez da fé no carisma do sucessor de Pedro e da fidelidade ao Espírito que age na Igreja, há a defesa violenta de uma ideologia filosófica. Se o Papa tem essa ideologia, converte-se num “latino-americano ignorante e perigoso que é preciso tentar limitar”, sustentou.

Fernández também opinou sobre como se dá o desenvolvimento da doutrina católica, cuja ortodoxia, em todo o Mundo, estará sob a sua vigilância, a partir de 15 de setembro. Disse, por exemplo, que a Igreja pode sempre “aprofundar a sua doutrina”, ao invés, ainda aprovaria a escravidão ou a pena de morte, recomendaria a monarquia ou rejeitaria que um não católico pudesse ser salvo ou seguir a sua consciência. Ao dizer-se que a doutrina é imutável, deve dizer-se que a compreensão que a Igreja tem dela não é imutável, mas “cresce e amadurece”.

Falou sobre a comunhão para divorciados em nova união, debate aberto, algum tempo depois, com a exortação apostólica pós-sinodal Amoris laetitia, de 2016. Segunda união de anos, de que há filhos e que reconhece o mal objetivo do ocorrido e vive na fidelidade e na generosidade cristã a união que não pode ser rompida, sem gerar novas culpas, deve ter a responsabilidade e a culpa mitigadas, o que abre para um discernimento pastoral que leve à Eucaristia.

Em 25 de maio de 2016, o vaticanista italiano Sandro Magister trouxe à tona um artigo segundo o qual o texto “tem um autor nas sombras”: Víctor Manuel Fernández. Magister diz que algumas formulações da exortação têm pré-história argentina, copiadas de alguns artigos de Fernández, de 2005 e 2006, já então um dos principais pensadores de Francisco e escritor-sombra dos seus principais textos. Tais artigos foram a causa de a Congregação para a Educação Católica bloquear a candidatura de Fernández como reitor da Universidade Católica Argentina, para se curvar, em 2009, ao então arcebispo de Buenos Aires Jorge Mario Bergoglio, que fez o impossível para obter o nihil obstat para promover Fernández. Os artigos eram reação a um congresso da universidade, em 2004, sobre a encíclica Veritatis splendor, em que São João Paulo II defende a verdade do Evangelho e a existência do mal moral, incluindo ações intrinsecamente más que nunca podem ser boas.

Um dos exemplos tem a ver com o número 305 da exortação e a sua nota 351, a passagem mais polémica desde a sua publicação. O vaticanista encontrou grandes semelhanças, quando se fala da “situação objetiva do pecado”, entre a Amoris laetitia e um texto, escrito 10 anos antes, pelo prefeito do DDF, intitulado “A dimensão trinitária da moral. Aprofundamento do aspeto ético à luz de Deus caritas est”. Tanto a Amoris laetitia como Fernández sustentam que há situações em que a pessoa “não é subjetivamente culpada”.

O número 301 da Amoris laetitia vinca: “Os limites não dependem simplesmente dum eventual desconhecimento da norma. Uma pessoa, mesmo conhecendo bem a norma, pode ter grande dificuldade em compreender ‘os valores inerentes à norma’ ou pode encontrar-se em condições concretas que não lhe permitem agir de maneira diferente e tomar outras decisões sem uma nova culpa.” E Fernández, em 2006, diz que, “quando o sujeito histórico não está em condição subjetiva de agir de outra forma ou de entender ‘os valores inerentes à norma’ (cf Familiaris Consortio 33c), ou quando ‘um sincero compromisso com uma regra particular pode não levar imediatamente ao cumprimento bem-sucedido de tal regra’...”.

Em outubro de 2019, antes do “Encontro Nacional de Mulheres Autoconvocadas”, em La Plata, que, regra geral, termina com feministas a atacar a Igreja católica, Fernández pediu aos católicos que evitem “ações que, com a desculpa de proteger as igrejas, podem ser interpretadas como ‘resistência’ cristã. No artigo “Encontro Nacional de Mulheres”, aduziu que muitos veem o evento feminista, caraterizado pela violência contra a propriedade pública e privada, “como se uma horda sedenta de vingança e destruição estivesse a chegar”, mas “são mulheres, de várias cores, com diferentes formas de defender os seus direitos e com diferenças entre si”. “O sonho da verdadeira igualdade une-as, e a raiva é compreendida, quando é lembrada a história, séculos de opressão, humilhação, dominação machista, violência”, vincou. “A raiva concentra-se contra a Igreja, que precisa de uma autocrítica sobre esse assunto”, disse Fernández, que tenta fazer, com exemplos, uma síntese histórica das posições em que a Igreja errou e precisa de ser corrigida.

Um mês depois, questionou o presidente Alberto Fernández por um projeto de legalização do aborto. “Se eu pudesse falar com Alberto”, perguntar-lhe-ia se vale a pena começar o seu mandato com um tema que tanto divide os argentinos e tem causado tanta tensão.” E, em novembro de 2020, publicou, no Infobae, a coluna “Aborto: quem é mais medieval?” Nele, frisou que a proteção da vida é uma “defesa até o fundo dos grandes direitos humanos”. “A mera suspeita de que o embrião é um ser humano, embora em estágio de desenvolvimento, já seria suficiente para a sua defesa. De facto, a Convenção sobre os direitos da criança entende por criança ‘todo o ser humano desde o momento da conceção.”

A 1 de julho de 2023, ao saber da sua nomeação, Fernández escreveu, no Facebook, que, em várias ocasiões, recusou o cargo no DDF, porque, entre outras coisas, a tarefa inclui a questão dos abusos de menores e não se sente preparado para tal. Porém, quando o Papa estava no hospital, pediu-lhe o mesmo, mas explicou-lhe que os abusos estão numa seção autónoma, “com profissionais que sabem muito sobre o tema e trabalham com muita seriedade”. Por isso, a sua missão será outra coisa com que Francisco está muito preocupado: “incentivar a reflexão sobre a fé e sobre o aprofundamento da Teologia, promover um pensamento que saiba dialogar com o que as pessoas vivem, encorajar um pensamento cristão livre, criativo e com profundidade”.

Por isso aceitou, com alegria, este desafio maravilhoso, embora haja muitos contras: “há pessoas que preferem um pensamento mais rígido, estruturado, em guerra com o Mundo”. Depois de dizer que, agora, se dá maior importância ao Dicastério para a Evangelização, sustentou que outrora o DDF se chamava Santo Ofício e perseguia os hereges, que incorriam em erros doutrinais, e o Papa reconhece que usou métodos imorais como a tortura. Agora, o Papa está a pedir “algo muito diferente, porque os erros não se corrigem perseguindo ou controlando, mas fazendo crescer a fé e a sabedoria. Essa é a melhor forma de preservar a doutrina”, concluiu.

No DDF, está a Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores, presidida pelo arcebispo de Boston, cardeal Seàn O'Malley, que não depende formalmente do Dicastério. Fernández presidirá também à Pontifícia Comissão Bíblica e da Comissão Teológica Internacional, organismo que ajuda a Santa Sé na análise dos temas doutrinais de maior importância e atualidade.

O arcebispo assumirá o cargo em que Joseph Ratzinger (Bento XVI) serviu por 25 anos no pontificado de são João Paulo II, bem como os cardeais William Joseph Levada (EUA), Gerhardt Müller (Alemanha) e Luis Ladaria (Espanha).

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O grupo americano BishopAccountability.org, que mantém um banco de dados online de abusos cometidos por membros da Igreja Católica, denunciou, em comunicado, que o bispo Fernández, em 2019, se recusou a acreditar nas supostas vítimas do padre Eduardo Lorenzo, da arquidiocese de La Plata. Francisco “tomou uma decisão desconcertante e preocupante”, disse o grupo. “Na sua resposta às acusações, apoiou veementemente o padre acusado e recusou-se a acreditar nas vítimas”, acrescentou, sustentando que Fernández “deveria ter sido investigado, não promovido a um dos cargos mais altos da Igreja”. A Associated Press diz que o arcebispo argentino permitiu que o padre continuasse a trabalhar, embora tenha sido demitido por “motivos de saúde”. O padre cometeu suicídio a 16 de dezembro de 2019, depois um juiz emitir um mandado de prisão, acusado de abuso sexual. “Nada no seu desempenho sugere que esteja apto para liderar a batalha do papa contra o abuso e o acobertamento”, aponta o referido site.

Pouco depois de iniciar o seu pontificado, em março de 2013, Francisco nomeou Víctor Fernández arcebispo, em 13 de maio, sem lhe atribuir uma jurisdição responsável. Até então, já atuava, desde 2011, como reitor da Pontifícia Universidade Católica Argentina Santa Maria de Buenos Aires (UCA). E, a 2 de junho de 2018, foi nomeado arcebispo de La Plata, sucedendo a Héctor Aguer, que havia completado, a 24 de maio, 75 anos, idade de resignação.

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Em 1995, quando tinha cerca de 10 anos de sacerdote, o padre Fernández publicou na, Argentina, com a editora Lumen, o livro “Cura-me com a tua Boca: a Arte de Beijar”, ​​que não consta na lista de obras que a Santa Sé divulgou, ao anunciar a nomeação como prefeito do DDF.

Na apresentação, o padre esclareceu que o livro não é escrito tanto a partir da sua existência, mas da vida das pessoas que se beijam, e manifestou o desejo de que as páginas do texto “ajudem a beijar melhor, que motivem a liberar o melhor de si num beijo”.

O livro, que tem várias imagens sugestivas, fala do que dizem sobre o tema as pessoas na rua, poetas e santos. Por exemplo, na página 21, lê-se: “Um casal com muito sexo, muita satisfação sexual, mas poucos beijos como pessoas, ou com beijos que não dizem nada, está a cavar, a cada união sexual, a sepultura do amor, está a criar rotina, cansaço e tédio, até que um dos dois encontre algo mais humano.” E a página 51 reza: “Os beijos e a mística têm muito a ver. Aliás, se o beijo perde o seu fundo místico, a profundidade que está por trás dos lábios, torna-se apenas um jogo chato ou um costume que deve ser cumprido.”

Sob o subtítulo “O beijo supermístico”, diz que “o beijo é muito mais do que um desejo da carne, porque o beijo dos lábios é a expressão sensível de um ‘beijo espiritual’, de uma união muito íntima dos dois, que por um instante sentem como se todas as barreiras que há entre eles tivessem caído”. “Por isso, também podemos beijar a Deus. E, quando Ele nos beija, esse beijo atinge o mais profundo do nosso ser. Os grandes místicos chamavam isso de ‘casamento espiritual’.”

Já na página 41, o arcebispo convida a ler algumas estrofes “onde parece que o beijo é fonte de dor”: “Quando se sente que um beijo não é o reflexo de um amor forte, sincero, respeitoso e saudável, quando o outro se apodera de nós sem piedade. Então o beijo se torna um martírio oculto ou a pior mentira. Por isso, mesmo que seja vivido como uma necessidade, ou como uma descarga psicológica, não é uma verdadeira satisfação afetiva.” Na página 55, diz que “muitas prostitutas se prestam a todo tipo de jogo sexual, mas não se deixam beijar por qualquer um”. E alerta que “muitos casais se separam, porque sempre buscaram diretamente o ato sexual, sem dedicarem um bom tempo a cultivar a arte sublime que sustenta o amor: o beijo”. Na página 70, escreve: “Quem beija bem experimenta que, a cada beijo, a sua vida se salva, como se entrasse em cada beijo num âmbito santo, de vida pura, de graça redentora. Só é plenamente feliz o que goza, mas sentindo que algo definitivo e eterno está a ser construído nesse beijo.” E, na página 77, refere-se aos “beijos sagrados” na mitologia pagã, relevando que, “embora existam pouquíssimas referências a relações sexuais entre os deuses, encontramos muitos textos que falam dos deuses a beijar-se, para produzir algo maravilhoso…”.

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Em carta publicada a de julho, a comissão executiva do episcopado argentino manifestou a sua alegria pela nomeação e destacou algumas qualidades do prefeito. “Valorizamos a sua sabedoria, os seus dons, a sua experiência pastoral e confiamos que, com a ajuda do Espírito Santo, poderá, como o próprio Santo Padre expressou, ‘apresentar, de forma convincente, um Deus que ama, que perdoa, que salva, que liberta, que promove as pessoas e as chama ao serviço fraterno’.”

Os bispos da presidência do CELAM disseram que, com a experiência de Fernández “a Igreja poderá contar com um guia seguro para abrir caminhos de diálogo e reflexão, a fim de que o depósito da fé seja uma fonte da qual Povo de Deus se nutra para continuar a anunciar Cristo com alegria e entusiasmo”.

Numa publicação de 3 de julho, no Facebook, Fernández escreveu que há grupos adversos a Francisco, enfurecidos, que chegam a usar meios pouco éticos “para me prejudicar”. Por exemplo, referem-se a um livrinho meu que não existe mais, que falava sobre o beijo”. “Eu era muito jovem, era pároco e procurava chegar aos jovens. Então, ocorreu-me escrever uma catequese para adolescentes, a partir do que significa o beijo. Escrevi esta catequese com a participação de um grupo de jovens que contribuiu com ideias, frases, poemas, etc.) E vincou: “O que esses grupos extremistas fazem é dizer: ‘Vejam a baixa qualidade desse teólogo, vejam os disparates que escreveu, vejam o nível baixo que tem. Há anos me humilham com citações desse livro.”.

“Mas uma catequese para adolescentes não é um livro de Teologia, há uma grande diferença de género literário. Não se pode pedir que a catequese de pároco para adolescentes seja um manual de teologia”, disse Fernández, “orgulhoso de ter sido aquele jovem pároco que se preocupava em chegar a todos com as mais diversas linguagens”, vincando que, para o Papa, “é importante que um teólogo se meta na lama e tente usar uma linguagem simples que chegue a todos”.

“Pior ainda, como esses ataques vêm de católicos dos Estados Unidos, que não sabem Espanhol, traduzem mal um dos poemas do livro. Traduzem a palavra ‘bruja’ (bruxa) como ‘prostituta’. Mas o livro diz ‘bruxa’. Não têm o direito de mudar as minhas palavras. Parece que, para isso, não têm ética. E não é a primeira vez que me fazem isso comigo.” E, a concluir, disse que não escreveu a publicação para se defender, mas para que “não pretendam prejudicar Francisco”.

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É tudo tempestade em copo de água, não aceitando que a pessoa mude e confundindo catequese com Teologia ou criando problemas onde não existem. Faz-me lembrar o episódio da década de 1960, em que, em solene Missa de Pontifical, o pregador começou o sermão, identificando-se: “Sou o padre N. Formei-me em Teologia na Universidade de Lovaina. E vou falar do amor”. Porém, o bispo alçou-se e entoou: “Credo in unum Deum…” Falar de amor era tabu!

2023.07.21 – Louro de Carvalho

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