segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Reescrita da história dos dados estatísticos do INE

De acordo com informação veiculada pela agência Lusa, o INE (Instituto Nacional de Estatística) confirmou hoje, dia 30 de novembro, o facto de uma variação nula do PIB (Produto Interno Bruto) no terceiro trimestre do ano corrente face ao trimestre anterior e um aumento de 1,4% em termos homólogos.
O mesmo INE refere que a estimativa provisória da taxa de desemprego para o passado mês de outubro se situa em 12,4%, mantendo-se inalterada face à estimativa definitiva obtida para o passado mês de setembro. Já a estimativa provisória da população desempregada para o mês de outubro é de 632,7 mil pessoas, o que significa um decréscimo de 0,3% em relação ao valor definitivo obtido para o mês anterior (menos 1,7 mil pessoas). Por outro lado, a estimativa da população empregada para o mês de outubro é de 4474 mil pessoas, menos 1,9 mil pessoas que no mês de setembro, o que representa uma variação quase nula.
Esclarece o INE que estas estimativas consideraram a população dos 15 aos 74 anos, tendo o complexo dos valores sido previamente ajustado de sazonalidade.
Noutra ocasião, em finais de outubro, soube-se que o número de desempregados inscritos nos Centros de Emprego do IEFP (Instituto de Emprego e Formação Profissional) subira em cadeia pelo segundo mês consecutivo, cifrando-se na taxa dos 12,4%, embora continuasse abaixo do período homólogo. As novas inscrições subiram 40% (mais 74,4 mil pessoas).
Em setembro, havia 631 mil pessoas registadas como desempregadas nos centros de emprego, o que representava um aumento de 0,4% em relação ao mês de agosto mas uma quebra de 12,6% em relativamente ao tempo homólogo do ano anterior. Trata-se, entretanto, do valor e do crescimento mais elevado no período de um ano, apesar de estar abaixo do que foi registado em setembro de 2014.
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As percentagens e os números acima referidos levaram PS, PCP e BE, em declarações separadas, a acusar o anterior Governo de ter dado uma imagem errada e fictícia da economia portuguesa e da situação social do país.
O deputado João Galamba, pelo PS, entende que estes dados, que apontam para uma estagnação da economia portuguesa, demonstram a falsidade da “narrativa vendida” antes das eleições legislativas por PSD e CDS sobre a “retoma económica”.
Por seu turno, o PCP, pela voz do deputado António Filipe, foi mais longe e condenou os partidos da direita por terem promovido um “grande embuste” sobre a situação da economia portuguesa.
Também Mariana Mortágua, do BE, afirmou à agência Lusa que estes dados, que revelam uma estagnação da economia, mostram que “foi criada uma imagem fictícia da recuperação económica” pelo Governo PSD/CDS.
Obviamente que o PSD e o CDS tinham de contestar. Assim, o PSD acusou os “partidos das esquerdas” de fazerem uma “tentativa não séria de reescrever a história” sobre os dados do INE, insistindo na tendência da economia de 2015, que é de crescimento, segundo o entendimento da coligação, havendo apenas variações entre os diversos trimestres do ano de 2015. Mais: na ótica do partido socialdemocrata, a economia portuguesa está a crescer com relação ao ano de 2014.
A este respeito, António Amaro Leitão Amaro, vice-presidente da bancada parlamentar do PSD, assegurando que a avaliação do estado de uma economia tem de considerar “a trajetória” e “a tendência” declarou à Lusa:
“Nós ouvimos já hoje vários partidos das esquerdas a pronunciarem-se e acho que é evidente para todos, perante estes números, que temos aqui uma tentativa não séria de reescrever a história ao dizer que não estamos a crescer. A economia portuguesa face a 2014 está a crescer. A tendência do ano 2015 é uma tendência de crescimento”.
O mencionado deputado socialdemocrata concede que “é verdade que há variações entre os trimestres”, mas trata-se de uma realidade já verificada o ano passado. Segundo o político, quando a economia portuguesa começou a entrar numa dinâmica de crescimento, teve o ano a crescer e uns trimestres com um crescimento mais forte do que noutros.
Porém, insiste em declarar que “a trajetória não se inverteu, o país não está a decrescer, o país estava a crescer no final do terceiro trimestre de 2015”, sustentando que este é um “crescimento assinalável” para o passado recente de Portugal. E sintetizou:
“Temos a economia a crescer 1,4% face a 2014, temos o desemprego que continua a cair, temos a produção industrial que teve mais um bom momento, as exportações que continuam a subir e também o investimento, sendo que dentro de um ano há trimestres que são mais fortes do que outros”.
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Ora, do meu ponto de vista, não vale a pena anatematizar a governação de quase quatro anos e meio. Foram tempos difíceis, porque o país estava como estava. E os sacrifícios pesaram brutalmente sobre muitos, por via dos cortes cegos no rendimento que estivesse à vista e da excessiva oneração fiscal e contributiva – isto além da troika. Porém, das eleições legislativas resultaram dois elencos governativos – um que a Assembleia da República rejeitou e outro que a mesma Assembleia da República legitimou. O primeiro, apesar de breve, lançou para o espectro sociopolítico atoardas e atitudes pouco plausíveis. Recordo, a título de exemplo, as afirmações erráticas do meteórico Ministro da Administração Interna no Algarve, a propósito das inundações e do papel de Deus ou da relação das seguradoras com os sinistros e a ultimação apressada da venda da TAP, sem a salvaguarda de garantias em prol do Estado.
Quanto aos detentores da maioria parlamentar e aos titulares do Governo que dela emanou, a ver vamos o que poderão e ousarão fazer, se as circunstâncias se tornam mais propícias ou mais adversas e como se comportará o terrífico vigilante da governação – aquele que detém todos os poderes constitucionais, menos um.    
É natural que as esquerdas, olhando para os números do INE, julguem desconfortável a situação económica e social do país. Exageram? É a vida, mas a descida do desemprego de ano para ano é ténue e a tendência dos trimestres do corrente ano não está nada almofadada. Algo parecido se deve dizer da economia e do PIB. Os números até permitem concluir como o faz a esquerda ou como o faz a direita. Tudo cresce pouco, apesar de a troika já cá não estar (?!).
Acresce dizer que nem sempre os dados do INE e do IEFP são coincidentes. Mais: quem não se lembra da indisposição do ex-Primeiro-Ministro em relação ao INE? Ademais, não sei se quem escondeu dados relevantes durante o período pré-eleitoral ou adiou a sua divulgação para o período pós-eleitoral tem muita autoridade moral e política para criticar as esquerdas. Investimento, travagem dos despedimentos e exportação em grande – onde está isso?
Talvez devamos todos puxar pela liberalidade da paciência e da tolerância democráticas!

2015.11.30 – Louro de Carvalho

Promoção de todos os homens e do homem todo


O Papa está, em 29 e 30 de novembro, na República Centro-Africana, que vem experimentando fortes momentos de tensão: ainda recentemente, rebeldes sequestraram, queimaram e enterraram vivas “bruxas” em cerimónias públicas, explorando superstições largamente disseminadas para conseguirem impor o seu controlo em áreas territoriais daquele país devastado pela guerra.
Um relatório elaborado por funcionários da ONU no âmbito dos direitos humanos, visto exclusivamente pela Thomson Reuters Foundation, vem ilustrado por imagens chocantes de algumas vítimas amarradas a estacas de madeira a ser conduzidas ao fogo, bem como torsos carbonizados de pessoas submetidas ao ritual imolatório. A tortura ocorreu entre dezembro de 2014 e o início de 2015 à ordem de líderes da milícia cristã anti-Balaka, que combate, há mais de dois anos, rebeldes Seleka em todo o território.
O país, quando rebeldes muçulmanos tomaram momentaneamente o controlo do país, de maioria cristã, em março de 2013, mergulhou num mar de violência sectária, cuja escalada em ambos os lados semeou o descontrolo em todo o interior do país.
De momento, a República está confiada politicamente a um governo de transição, sob a égide de uma Chefe de Estado de Transição, incumbido de, após sucessivos adiamentos, preparar eleições parlamentares e presidenciais, a ocorrer a 27 de dezembro, com apoio e vigilância da comunidade internacional. No entanto, é generalizada a existência de preocupações quanto a mais derramamento de sangue por ocasião da campanha eleitoral.
Os investigadores da ONU, embora reconheçam que a crença em feitiçaria é um flagelo recorrente em toda a África, constatam que aparentemente os rebeldes socorreram-se de tais superstições para a intimidação, a extorsão de dinheiro e o exercício de autoridade sobre áreas territoriais sem lei – chegando a declarar:
“A feitiçaria está firmemente entrincheirada [na República Centro-Africana] e a ausência de autoridade estatal cria um terreno fértil para uma espécie de justiça popular distorcida pelos antibalakas para seu benefício” (cf http://noticias.r7.com, 26 de novembro).
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É neste contexto geral de insegurança e temor – mas na rota esperançosa da normalização da vida sociopolítica – que Francisco se apresenta como “peregrino de paz e “apóstolo da esperança”, na convicção confiante de que o país empreenderá “serenamente uma nova fase da sua história”.
Assim, no encontro com a classe dirigente e o corpo diplomático, a 29, glosou o lema trilógico da  República Centro-Africana, que reflete a esperança dos pioneiros e o sonho dos pais fundadores – Unidade, Dignidade, Trabalho – e, a seguir, elogiou o “testemunho tão humano e tão cristão” da Chefe de Estado da Transição e enalteceu a ação dos membros do Corpo Diplomático e dos representantes das Organizações Internacionais, “cujo trabalho nos recorda o ideal de solidariedade e cooperação que deve ser cultivado entre os povos e as nações”.
Entende que hoje, mais do que nunca, a trilogia “Unidade, Dignidade, Trabalho” exprime “as aspirações de cada centro-africano e constitui, consequentemente, uma bússola segura para as Autoridades, que têm o dever de guiar os destinos do país”. Segundo o Bispo de Roma, cada uma destas palavras representa “um canteiro de obras”, “um programa nunca concluído” e “um compromisso a executar constantemente”.
A Unidade, constituindo “um valor fulcral para a harmonia dos povos”, permite viver e construir comunidade “a partir da maravilhosa diversidade do mundo circundante, evitando a tentação do medo do outro”, que “não nos é familiar” ou “não pertence ao nosso grupo étnico, às nossas opções políticas ou à nossa confissão religiosa”. A unidade postula, assim, a criação e a promoção da “síntese das riquezas que cada um traz consigo”. Deste modo, diz sabiamente o Papa, “a unidade na diversidade é um desafio constante, que requer criatividade, generosidade, abnegação e respeito pelo outro”.
Já a Dignidade, enquanto “valor moral” que significa “honestidade, lealdade, garbo e honra”, constitui o perfil dos “homens e mulheres conscientes tanto dos seus direitos como dos seus deveres” e condu-los “ao respeito mútuo”. Neste sentido, é necessário que “tudo se faça para tutelar a condição e a dignidade da pessoa humana”. Depois, a dignidade implica que todos aqueles e aquelas que efetivamente dispõem dos meios “para levar uma vida decente”, ao invés da preocupação com os privilégios, devem apostar na ajuda aos “mais pobres” de modo que também eles acedam “a condições de vida respeitadoras da dignidade humana”, sobretudo através do “desenvolvimento do seu potencial humano, cultural, económico e social”.
É a atualização do desígnio desenvolvimentista – “a promoção de todos os homens e do homem todo” – de Paulo VI na famosa encíclica Populorum Progressio, n.º 14:
“O desenvolvimento não se reduz a um simples crescimento económico. Para ser autêntico, deve ser integral, quer dizer, promover todos os homens e o homem todo, como justa e vincadamente sublinhou um eminente especialista: ‘não aceitamos que o económico se separe do humano; nem o desenvolvimento, das civilizações em que ele se incluiu. O que conta para nós é o homem, cada homem, cada grupo de homens, até se chegar à humanidade inteira’.”.

No atinente ao trabalho, o Papa assegura que é pelo trabalho que se pode melhorar a vida das famílias. Se, como ensina São Paulo, “não compete aos filhos entesourar para os pais, mas sim aos pais para os filhos” (2 Cor 12,14) e se “o esforço dos pais exprime o seu amor pelos filhos”, então há que tirar partido da excecional riqueza do país resultante da biodiversidade e explorar de forma sensata “os seus abundantes recursos”, de modo que a pobreza seja erradicada.
E, retomando algumas formulações da encíclica Laudato Si’, Francisco chama “a atenção de todos cidadãos, responsáveis do país, parceiros internacionais e sociedades multinacionais – para a grave responsabilidade que vos cabe na exploração dos recursos ambientais nas opções e projetos de desenvolvimento” que “afetam a terra inteira”. Por outro lado, assegura que “o trabalho de construção duma sociedade próspera deve ser uma obra solidária”.
Ademais, a história da evangelização e a história sociopolítica do país dão, segundo o Pontífice, “testemunho do compromisso da Igreja na linha destes valores da unidade, da dignidade e do trabalho” – o que resultou na formação da “pátria dum povo profundamente religioso, com um rico património natural e cultural”.
Por consequência, o líder da Igreja Católica renova com os bispos, ora responsáveis pela evangelização do país, “a disponibilidade da Igreja presente nesta nação a contribuir cada vez mais para a promoção do bem comum, nomeadamente através da busca da paz e reconciliação” – tarefa de todos (povo, dirigentes e parceiros) com vista à consecução e manutenção crescente da unidade, da dignidade humana e da paz fundada na justiça.
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No encontro com as comunidades evangélicas na FATEB (Faculdade de Teologia Evangélica de Bangui), também a 29, Francisco sublinhou o facto de todos estarem ali “ao serviço do mesmo Senhor ressuscitado”, e de, por força do “Batismo comum que recebemos, serem convidados a anunciar a alegria do Evangelho aos homens e mulheres” deste país da África Central.
E a situação que o povo vive, de há bastantes anos, “atingido pelas provações e pela violência que causam tantos sofrimentos”, constitui-se em mais um motivo para a urgência do anúncio do Evangelho. Esclarece o Papa, lamentando:
“É a carne do próprio Cristo que sofre, que sofre nos seus membros prediletos: os pobres do seu povo, os doentes, os idosos e os abandonados, as crianças que já não têm os pais ou estão abandonadas a si mesmas, sem guia nem educação. E são também todos aqueles que a violência e o ódio feriram na alma ou no corpo; aqueles que a guerra privou de tudo: do trabalho, da casa, das pessoas queridas.”.

Depois, na certeza de que “Deus não faz diferença entre aqueles que sofrem”, Francisco aduz a explicação do que chama o ecumenismo do sangue: “todas as nossas comunidades, sem distinção, sofrem com a injustiça e o ódio cego que o diabo desencadeia”.
E os últimos acontecimentos de saque e incêndio à casa do Pastor Nicolas e à sede da sua comunidade motivaram uma verificação papal da relevância da providência divina, a que fica acoplada uma interrogação existencial:   
“Neste contexto difícil, o Senhor não cessa de nos enviar para manifestar toda a sua ternura, a sua compaixão e a sua misericórdia. Este sofrimento comum e esta missão comum são uma oportunidade providencial para nos fazer avançar juntos pelo caminho da unidade, sendo, para isso mesmo, um meio espiritual indispensável. Como poderia o Pai recusar a graça da unidade, embora ainda imperfeita, aos seus filhos que sofrem juntos e que, nas mais diversas circunstâncias, se dedicam juntos ao serviço dos irmãos?”.

A seguir, apontou o dedo ao escândalo da divisão dos cristãos por contrariar a vontade do Senhor e configurar um sinal de contradição face a tantas contradições que levantam ao Evangelho de Cristo as inúmeras e pungentes situações de ódio e de violência que dilaceram a humanidade. Não obstante e por isso, o Bispo de Roma deixa, com “apreço pelo espírito de respeito mútuo e colaboração que existe entre os cristãos” do país, uma clara palavra de encorajamento ecuménico “a avançar por este caminho num serviço comum da caridade”, como “testemunho prestado a Cristo, que constrói a unidade”. E, por fim, um desejo e uma postura de solidariedade espiritual:
“Possais vós, em medida sempre maior e com coragem, juntar à perseverança e à caridade o serviço da oração e da reflexão em comum, procurando um melhor conhecimento recíproco, uma maior confiança e amizade rumo à plena comunhão de que conservamos a firme esperança.
Asseguro-vos que a minha oração vos acompanha neste caminho fraterno de serviço, reconciliação e misericórdia, um caminho longo mas cheio de alegria e esperança.”.

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Depois, na catedral de Bangui, antes da abertura da Porta Santa, proclamou para hoje esta cidade como “a capital espiritual do mundo”, explicitando que “o Ano Santo da Misericórdia chega adiantado a esta terra”, que “sofre, há diversos anos, a guerra e o ódio, a incompreensão, a falta de paz”. Porém, considerou “simbolizados nesta terra sofredora” todos os países do mundo inteiro que estão a passar pela cruz da guerra. Por isso, Bangui torna-se também “a capital espiritual da súplica pela misericórdia do Pai”. E acentua o começo do Ano Santo, “hoje, aqui nesta capital espiritual do mundo com a oração pela paz”, que se transcreve:
Todos nós pedimos paz, misericórdia, reconciliação, perdão, amor… para Bangui, para toda a República Centro-Africana, para o mundo inteiro. Para os países que sofrem a guerra, peçamos a paz; todos juntos, peçamos amor e paz. Todos juntos (em língua sango): «Doyé Siriri!» [todos repetem: «Doyé Siriri!»].

E, na homilia da Missa do I domingo do Advento, comentou a palavra do profeta, do apóstolo e de Cristo – que, retratando um ambiente parecido com o da República Centro-africana, aninha, acalenta e proclama a esperança certa de melhores dias de expressão prática da verdadeira justiça como valor supremo do direito por um mundo mais humano e fraterno. É a hora de levantar a cabeça e seguir clamando por reconciliação, perdão, amor e paz.

2015.11.29 – Louro de Carvalho

domingo, 29 de novembro de 2015

Abertura antecipada da Porta Santa

Decididamente o Papa Francisco está apostado no testemunho e no apostolado da misericórdia. Além de o tema da misericórdia e da ternura de Deus ser recorrente nas suas intervenções, o Papa lançou a Igreja no Jubileu Extraordinário da Misericórdia, a que acoplou a iniciativa de espalhar pelo mundo os missionários da misericórdia e deu à XXXI Jornada Mundial da Juventude (JMJ) o tema da misericórdia em torno da V bem-aventurança do Sermão da Montanha: Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia (Mt 5,7).
Na sua prévia mensagem por vídeo à viagem apostólica ao Quénia, Uganda e República Centro-Africana, o Papa diz aos quenianos e ugandeses que vai até ao meio deles como “ministro do Evangelho para proclamar o amor de Jesus Cristo e a sua mensagem de reconciliação, perdão e paz”. Este amor de Cristo é misericórdia expressa na mensagem de reconciliação e perdão rumo à paz, dom de Deus e produto do esforço dos homens.
Mais adiante, afirma o seu objetivo de “confirmar a comunidade católica no seu culto a Deus e no seu testemunho do Evangelho”. Ora, sem o testemunho claro e empenhado dos crentes, a misericórdia de Deus ficaria obnubilada e o mundo, não a conhecendo, não tiraria qualquer benefício dela. É certo que Deus pode mudar, por Si próprio, o coração dos homens, contudo, o tornar necessária a mediação de homens junto dos homens e junto de Deus é uma outra forma de expressão da misericórdia divina.
Entretanto, o testemunho da misericórdia não se circunscreve a uma exposição de motivos da fé, por maior que seja o pode da palavra, ou a um exemplo de vida bondosa e orante, por mais necessário que seja para a edificação da Igreja. Implica necessariamente o ensino teórico-prático da “dignidade de cada homem e de cada mulher” e a exigência de abertura do nosso “coração aos outros, especialmente aos pobres e necessitados”.
Depois, o Bispo de Roma, na sua primeira visita a terras de África pretende “oferecer uma palavra de encorajamento” ao diálogo ecuménico e inter-religioso, convicto de que “vivemos uma época em que os fiéis das religiões e as pessoas de boa vontade em toda a parte são chamados a promover a compreensão e o respeito recíprocos e a ajudar-se uns aos outros como membros da nossa única família humana”. Ou seja, na firme crença de que todos somos filhos do único Deus misericordioso, Francisco prega a fraternidade universal e quer que todos embarquem nesta onda da ternura de Deus, o Pai comum. E, na esteira da paternidade divina, o paizinho da Igreja (papa, papá ou papai), tal como acaricia uma criança, também quer puxar pela juventude em qualquer lugar por onde passe – também no Quénia e Uganda – porque os jovens “são o vosso maior recurso e a nossa esperança mais promissora para um futuro de solidariedade, paz e progresso”. É a abertura do coração e do olhar a todos com a caridade evangélica e a justiça bíblica, como resposta à dicotomia aspiração-conflituosidade do mundo, sem discriminar ninguém, mas a começar pelos que mais precisam.
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Em mensagem similar, o Papa, apresentando-se como “mensageiro da paz, dirige-se aos habitantes da República Centro-Africana. E o seu propósito é também o testemunho explícito da misericórdia. Verificando a continuada e nefasta situação de “violência e insegurança” por que vem passando o país, causando “inúmeras vítimas inocentes”, tem em vista levar, “em nome de Jesus, o alívio da consolação e da esperança” e “contribuir, de um modo ou de outro, para curar as vossas feridas e abrir um futuro mais sereno para a África Central e para todos os seus habitantes”. Como os profetas, os evangelistas e os apóstolos, no meio da miséria, da fome, da guerra e da iniquidade puderam anunciar a esperança e a salvação, também Francisco no meio dos povos, que reconhece como de Deus e seus, conforta, testemunha e faz esperar.  
A seguir, revela ao povo centro-africano o tema da sua viagem: passemos para a outra margem (Mc 4,35). A simbólica do Evangelho de passar de uma para a outra margem do lago sugere o convite, o apelo a deixar a situação de insegurança e de violência, que, no caso vertente, não são provocadas pelos elementos tempestuosos da natureza, como em Marcos ou hoje em muitas partes do Globo, mas pela ambição desmedida de riqueza e poder de alguns e pela impaciência de uns e submissão de outros. Porém, o Senhor que acalma o mar tem capacidade para, longe de anular a liberdade e a vontade dos homens, encorajar a mudança e a conversão.
Assim, Francisco apela às “comunidades cristãs” para que olhem “em frente com decisão” e a “cada um” para que renove “a sua relação com Deus e com os irmãos para edificar um mundo mais justo e fraterno”. Ao mesmo tempo, reitera o propósito de “fomentar o diálogo inter-religioso para encorajar a convivência pacífica” no país, afirmando “que isto é possível, em razão da fraternidade universal face à filiação comum em relação ao mesmo Deus.
E, para selar simbolicamente este apelo e testemunhar eloquentemente esta possibilidade de abertura ao “perdão genuíno”, à atitude de “dar” e “receber” e à “renovação no amor”, o Papa anunciou que iria abrir, por antecipação, em Bangui, o Ano Jubilar da Misericórdia, que vai ser inaugurado para toda a Igreja a 8 de dezembro.
Com efeito, a 29 de novembro, início do novo ano litúrgico e I Domingo do Advento, que significa o começo da caminhada de Deus ao encontro misericordioso com os homens por meio de Jesus Cristo, o romano Pontífice, no início da celebração eucarística na catedral de Bangui, depois do Ato Penitencial, procederá ao rito da Abertura da Porta da Misericórdia, rezando:
Senhor Deus, Pai de misericórdia, Vós concedeis à vossa Igreja este tempo de penitência e de perdão para que ela tenha a alegria de se renovar interiormente por obra do Espírito Santo e andar cada vez mais fielmente nos vossos caminhos, permanecendo no meio do mundo como sinal de salvação e de redenção; dignai-vos responder às nossas súplicas, abri-nos completamente a porta da vossa misericórdia, para se nos abrirem um dia as portas da vossa morada no céu, onde está Jesus, o primeiro da estirpe dos homens que nos precederam, para podermos todos em conjunto cantar-vos eternamente. Por Cristo Nosso Senhor. Ámen.

Depois, aproxima-se da Porta da Misericórdia e, enquanto bate à porta, estabelece diálogo orante:
Abri-me as portas da Justiça
R/ E entrarei e darei graças ao Senhor.
Esta é porta do senhor,
R/ Que entrem os justos
Eu entro na vossa casa, Senhor
R/ Voltado para o vosso templo, eu me prostrarei.
A seguir, o Santo Padre apoiado na Porta da Misericórdia reza em silêncio, após o que entra seguido pelos demais.
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Embora pudesse ter maior impacto a abertura oficial do Ano Santo este rito de misericórdia desenvolvido num dos países de África esperançosa para o futuro da Igreja e da Humanidade, porém, de momento, uma das periferias existenciais, todavia este gesto simbólico de Francisco não deixa de ter um enorme significado. Prega-se e reza-se a misericórdia onde é necessário, independentemente do lugar ou do momento, sendo apenas necessário que os homens sintam que precisam dela e acreditem nela. E as ações eclesiais valem por si mesmas quer sejam lançadas em Roma e a partir de Roma quer em e a partir de qualquer outra parte do mundo. Não estamos perante um fenómeno de descentralização ou desconcentração política ou económica, mas do pulsar da Igreja sob o impulso do Espírito com Pedro e com os demais membros da família universal.
Pelos vistos, Francisco deseja que em todo o mundo – e não só em Roma – se abram as portas santas da misericórdia. Ele próprio pensa passar pela Porta da Misericórdia por ocasião da Jornada Mundial da Juventude 2016. Com efeito, segundo informação do cardeal Stanislaw Rylko, será instalada a simbólica Porta Santa no Campus Misericordiae, onde decorrerá a vigília e a missa de encerramento da JMJ – ambas sob a presidência do Papa.
O purpurado afirmou que o Santo Padre, seguido de alguns jovens, passará pela Porta Santa logo no início da vigília de oração, a 30 de julho. E, no dia 31, último domingo de julho após a celebração da eucaristia, “entregará a cinco casais de jovens, vindos dos cinco continentes, lâmpadas acesas, símbolo do fogo que trouxe a misericórdia de Cristo, além de enviar os jovens de todo o mundo como testemunhas e missionários da Divina Misericórdia”.
É de recordar que a JMJ Cracóvia 2016 decorrerá em pleno Jubileu Extraordinário, sendo que os temas de ambos os eventos se interpenetram, segundo o cardeal, “de modo muito oportuno”. Tanto assim é que, tornando-se a JMJ de 2016 um verdadeiro Jubileu dos jovens a nível mundial, o seu epicentro espiritual será o Santuário da Divina Misericórdia e de Santa Faustina Kowalska – conhecida como a ‘Apóstola da Misericórdia’ – inaugurado em 2002 pelo insigne promotor deste intenso testemunho orante e missionário: São João Paulo II, o Papa polaco.
Os participantes na JMJ de Cracóvia poderão visitar aquele santuário e integrar-se no desenvolvimento de um programa especial, que inclui a meditação das parábolas do Evangelho da Misericórdia Divina (sobretudo o cap. 15 de Lucas) e do Rosário da Divina Misericórdia, podendo, no final, passar pela Porta Santa do Jubileu e ganhar a indulgência jubilar. Para o efeito, será instalado, neste lugar, o grande “Centro da Misericórdia”, que disponibilizará muitos confessionários para que os jovens se aproximem do Sacramento da Reconciliação.
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O Papa Francisco prega incessantemente a misericórdia, mas não se refugia nela como que num cantinho abrigado. Ao invés, segue Urbi et Orbi as consequências desta bem-aventurança: desde logo, a limpidez de coração para olhar para o homem e para o mundo; depois e ao mesmo tempo, a construção da paz, para podemos ser chamados filhos de Deus e, como corolário imperativo, a luta oportuna e importuna pela justiça (cf Mt 5,8-10; Lc 6,20-26).
Francisco não se cingiu à leitura dos livros teológicos, mas passou ao múnus de pastor. E foi, não na leitura dos escritos de Rousseau ou de Marx e fãs, mas no Evangelho, lido e meditado, no âmbito de todo o contexto bíblico e a olhar o mundo de opressão e repressão, que aprendeu a força da razão dos pobres, dos explorados, dos enjeitados. E aí ganhou ânimo para clamar:
Levantai a cabeça, porque a vossa redenção está próxima (Lc 21,28)!

2015.11.28 – Louro de Carvalho

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Degenerescências da democracia

Todos sabemos que a democracia se entende como o regime político em que o poder reside no povo. Com efeito, o termo português “democracia” é transposição indireta do vocábulo grego δημοκρατία (dêmocratía) pelo vocábulo latino democratia. O referido termo grego formou-se por composição a partir do nome δημος (dêmos) – que significa povo, assembleia, país, região – e do verbo κρατέω (kratéo), que deriva do nome κράτος (krátos – poder, poderio, império, força, solidez, robustez, vigor, vitória). Por seu turno, o verbo κρατέω significará “ser senhor”, “mandar”, “dominar”, … Nestes termos, consensualizou-se que a democracia é a consagração do poder pelo povo, com o povo e para o povo. Porém, o problema não está tanto no conceito, mas sobretudo no exercício desse poder.
Alguns fazem consistir o exercício da democracia na decisão tomada pelo povo em assembleia de todos ou assembleias setoriais. É a democracia direta, viável em pequenas comunidades. Parece que funcionou bem na comunidade socrática grega, razoavelmente na cidade de Atenas e funciona regularmente em muitos dos institutos religiosos.
Da democracia direta, por expansão, derivou a chamada democracia popular, que, supostamente a partir de tomadas de decisão de nível local, passando por assembleias de nível intermédio, chega à tomada de decisões de nível central. É assumida pelos regimes de partido único, que deixam inúmeros cidadãos fora dos mecanismos de participação decisória. Por outro lado, a dificuldade de fazer com que todos respeitem o ideário leva a que as decisões principais sejam tomadas num órgão de cúpula e transmitidas de cima para baixo. Muitas vezes, as diferentes secções funcionam em regime celular, de modo que o centro político sabe das missões de cada indivíduo e/ou grupo, mas estes não conhecem as missões dos indivíduos e/ou grupos congéneres.
Por sua vez, a democracia representativa, reinventada pelo liberalismo, no pressuposto ideológico de que o poder político reside no povo, mas não pode o seu exercício caber ao povo para não se cair no pântano político e social, estabeleceu o sistema de sufrágio, através do qual o povo escolhe os seus representantes para a assembleia do povo (ou: assembleia nacional, cortes, parlamento, câmara de representantes…), por um período de tempo – o mandato – definido na Lei Fundamental ou Constituição Política. Estes representantes são escolhidos através das propostas feitas ao povo pelos diversos partidos políticos ou grupos de cidadãos mobilizados em torno de diferentes ideias de governança que, em princípio, espelham diferentes conceções de sociedade.
A assembleia de representantes pode ter apenas poderes constituintes, pelo que lhe é confiado o encargo de elaborar e aprovar a Constituição (em alguns sistemas, a constituição ou carta constitucional é elaborada por um grupo de peritos e os titulares do poder em exercício sujeitam-na a plebiscito ou referendo). Habitualmente, a assembleia de representantes detém o poder legislativo e o papel fiscalizador do executivo e periodicamente (extraordinariamente) assume poderes constituintes de que resulte revisão ou alteração da Constituição. Da assembleia de representantes emana o governo, que normalmente é de nomeação do Chefe de Estado, que também lhe dá posse. O governo executa e regulamenta as leis do parlamento, que são da iniciativa deste ou de proposta do governo, e habitualmente também legisla através de decreto-lei, passível de apreciação parlamentar, ou por decreto-lei com base em autorização do parlamento. Ao Chefe de Estado cabe promulgar as leis e diplomas com similar força normativa e representar superiormente o Estado. Já o poder judicial, administra a justiça em nome do povo, mas tem a sua organização própria, com base mais no mérito científico e técnico que nos mecanismos eleitorais.
Uma das faces da democracia representativa é precisamente a separação e interdependência dos poderes: legislativo, executivo e judicial.
Modernamente, entende-se que a democracia exercida através dos representantes do povo não se esgota na eleição dos deputados, mas implica a audição prévia dos interessados através das suas estruturas representativas de ordem social, económica, cultural ou profissional, através da colocação de algumas matérias em discussão pública e através do referendo sobre alguns temas – bem como reconhecendo aos cidadãos a possibilidade de intervirem criticamente através de diversos meios e instrumentos.  
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Talvez seja conveniente, para se compreender melhor o alcance da democracia e suas contrafações, fazer um excursus ideo-etimológico.
Assim, do verbo κρατέω + ’άριστος (áristos) – excelente, o melhor – servindo de superlativo a ’αγαθός (bom) e correspondentes nomes e adjetivos gregos, formou-se a palavra “aristocracia” (o poder exercido pelos melhores – normalmente, clérigos, nobres ou sábios); de κρατέω + πλοϋτος (ploûtos) – rico, riqueza – e correspondentes nomes e adjetivos gregos, formou-se a palavra “plutocracia” (o poder exercido pelos ricos); de κρατέω + αυτός (autós) – ele mesmo, o próprio – e correspondentes nomes e adjetivos gregos, formou-se a palavra “autocracia” (o poder exercido segundo a visão e/ou o capricho do próprio titular do poder); e de κρατέω + κλέπτης (kléptes) – ladrão, embusteiro – e correspondentes nomes e adjetivos gregos, formou-se a palavra “cleptocracia” (o poder exercido por políticos que roubam o Estado, os corruptos, os que favorecem os amigos).
Por outro lado, do verbo ’αρκέω (arkéo)1 – que significa “apartar”, “repelir”, “resistir”, “bastar ser suficiente”, “estar satisfeito” – e do verbo ’αρχέω ou ’άρχω (archéo ou árcho)2 – a significar “mandar”, “reinar sobre” – bem como dos correspondentes nomes e adjetivos gregos (’αρχέ – mando, poder, império, autoridade) formaram-se palavras como: ’ολιγαρκής (com ’όλιγός – pouco), em português, seria “oligarcia” (o contentamento com pouco) e ’ολιγαρχία, em português, “oligarquia” (governo de poucos); αυτάρκης (de αυτός – ele próprio), em português “autárcico” (que se basta a si mesmo, que subsiste por si próprio), αυτάρκεια, em português, autarcia (estado de quem se basta a si próprio) e αυταρχία, em português, “autarquia” (governo por si próprio: o poder local); μοναρχία (de μόνος – um só único), em português, “monarquia” (mando de um só, comando supremo: rei, imperador ou caudilho); e ainda ‘ιεραχία (de ‘ιερεύς, iereus – sacerdote, ministro), em português “hierarquia” (mando dos sacerdotes). Usualmente, o termo é utilizado para designar a escala de postos eclesiásticos, militares, sociais, políticos e administrativos – da base ao topo, passando por vários postos intermédios, sendo que, à medida que mais se sobe na escala, menos titulares se encontram.
Temos também palavras como “república”, “tirania”, “despotismo” e “ditadura”.
“República”, que significava “coisa pública”, a pátria e o aparato do Estado, tornou-se um regime posterior e contraposto ao da monarquia, dos quatro reis latinos e sabinos e os três de origem etrusca. No topo da governação estavam os dois cônsules, eleitos anualmente pelo senado e aconselhados por este, que produzia os seus acórdãos, muitas vezes, com base nos comitia ou assembleias. Na Grécia antiga, república e democracia confundiam-se. Sobretudo em Atenas, o regime de governo democrático, que atingiu o seu apogeu no século V a.C., era um regime em que o “povo” se manifestava diretamente, reunindo-se e votando em assembleias, para tomar as decisões a respeito da vida da sua cidade. Representava a alternativa à tirania e assentava na βουλή (bulé ), um conselho com 500 membros (incluía camponeses, mas excluía as mulheres), que se constituía no pilar do regime. Todo o cidadão (πολίτης – em latim, civis) do sexo masculino era livre de assistir às assembleias, que debatiam e ratificavam as questões civis, usualmente quatro vezes por mês. Daqui, resulta a “política” ou a “cidadania” (no grego, πολιτεία; no latim, civitas e civilitas). 
“Tirania”, de τυραννίς (de τύραννος, tirano, soberano) – a significar “tirania”, “poder absoluto” – a princípio, era sinónimo de realeza ou monarquia. Depois, como o tirano, concentrando em si todos os poderes militar e civil (legislativo, executivo e judicial), deixando de ouvir as assembleias e a sua cúria, foi abusando, muitas vezes cruel e criminosamente, do poder. Daí, “tirania” e “tirano” passaram a significar, respetivamente, o regime de poder monárquico repressor e opressor e o respetivo titular – termos equivalentes a despotismo (no grego, δεσποτεία) e déspota (no grego, δεσπότης), respetivamente, e com a mesma evolução semântica.
Também se dava o nome de tirano, mas não o de déspota, àquele que usurpava o poder estabelecido e que se legitimava através do exercício do poder e se tornava aceite e plausível, do ponto de vista ético, se o exercesse com moderação e granjeando o respeito dos súbditos. Por outro lado, o século XVIII europeu passou por um sistema de exercício do poder real absoluto, a que se deu a designação de despotismo iluminado ou despotismo esclarecido, mesmo que o poder real absoluto fosse exercido por um ministro em nome do monarca.
A “ditadura” e “ditador” – respetivamente, de δικτατορία (em latim, dictatura) e δικτάτωρ (em latim, dictator) – significam, respetivamente, ditadura ou dignidade de ditador e ditador ou magistrado principal com autoridade absoluta. O senado romano, em tempo de crise no regime republicano, instituía o ditador, conferindo poder absoluto a um dos magistrados prestigiados, mas com um limite temporal, de meio ano e com a respetiva avaliação de desempenho.
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Se, em tempos, os povos tiveram usurpadores do poder que, depois, o exerciam de forma moderada, nos tempos que correm, como em períodos relativamente longos do século passado, verificamos que titulares do poder que ascenderam a ele pela via democrática eleitoral e depois o exercem de forma ditatorial e autocrática, se eternizam no poder, embora se legitimem nele marcando eleições suficientemente controladas. Por outro lado, as ditaduras, que entre os romanos, tinham uma duração limitada e previamente definida e não eram necessariamente cruéis (pelo menos, não mais que no tempo dos cônsules, dos reis ou dos imperadores), hoje tornam-se despóticas, tirânicas; e, impostas em virtude da degradação social e política, assumem uma dinâmica repressora e opressora, impondo, pela via da censura e dos sistemas educativo e comunicacional, a lógica do pensamento único.
Também o princípio de que “a cada cabeça corresponde um voto” com facilidade se desrespeita. Assim, muitas democracias quiseram estabelecer o voto censitário, em função dos haveres de cada cidadão ou agregado familiar. Neste sentido, só teriam direito a voto aqueles cujo rendimento chegasse a um determinado montante ou o excedesse. Era na base a categoria da plutocracia, não no exercício do poder, mas na legitimidade originária do seu exercício. De modo similar, se comportam os decisores que, na consideração de que nem todos estão preparados para pensar politicamente, limitam o voto aos chefes de família, aos alfabetizados ou, ainda aos que detenham determinado grau de escolaridade. Está subjacente a ideia aristocrática na legitimação originária do exercício do poder. E, quando o centro do poder – ou as matérias essenciais – é confiado a grupo de sábios, peritos ou técnicos (bons, mas poucos), temos uma forma de aristocracia e também oligarquia. E, se prevalece a visão tecnicista do poder, chamamos a este fenómeno “tecnocracia” (do acima referido verbo κρατέω + o nome τέχνη).
Quanto à cleptocracia, concretizada na corrupção e tráfico de influências, no favorecimento a amigos, no desaparecimento de bens públicos patrimoniais, no abusivo aproveitamento dos recursos do Estado para benefício próprio ou de familiares e compadres, é o que mais há por aí.
Ademais, tanto nas autarquias locais como nos escalões do poder central se verifica o frequente e obsessivo olhar do titular do exercício do poder para si próprio e o exercício do poder prevalentemente segundo a ótica, o capricho e os interesses do seu titular. Como refere Malala, “eles são escolhidos pelo povo, mas não ouvem o povo” ou “têm medo de livros e canetas”.
Porém, a própria organização eleitoral é viciada em termos democráticos. A organização das listas de candidatura dos diversos partidos tem um peso demasiado do líder e do aparelho partidário; escolhem-se líderes medíocres, deputados medíocres e governantes medíocres; e o parlamento não é suficientemente democrático. Quanto ao parlamento, é de estranhar que haja demasiado recurso à disciplina partidária nos diversos grupos parlamentares (que deveria ficar reservada a temas atinentes à governabilidade, como o programa de governo, o orçamento e as moções de censura e de confiança), quando devia prevalecer o princípio da valorização do voto de cada um; é censurável que o deputado precise de autorização e visto prévio do seu líder de bancada para intervir; e, sobretudo, é intolerável que as leis propostas pelo governo ou resultantes da iniciativa dos deputados tenham origem em trabalho elaborado por sociedades de advogados e de economistas. Quem não tem capacidade para definir políticas públicas não pode ser deputado, muito menos membro do governo. Munam-se os grupos parlamentares e os diversos ministérios de mais assessores e reduzam-se à expressão mais simples as encomendas legislativas. O povo, no âmbito do poder de que é titular, paga a deputados e governantes, a magistrados e a Chefe de Estado, mas não pode ter o dever de pagar a privados.
Por fim, deve abandonar-se a ideia de que a democracia implica necessariamente o regime republicano. Hoje as monarquias constitucionais (as outras ou revestem a capa de democracias populares, de impérios, de ditaduras ou de governo de talibãs) apenas se diferenciam da república pela chefatura do Estado. O rei é provido no trono por via hereditária e por aclamação, dispondo do trono, em princípio por toda a vida, a menos que abdique em prol de um dos sucessores naturais. Por outro lado, as leis são promulgadas e a justiça é administrada em nome de Sua Majestade. Ora, os regimes republicanos dispõem de dois modos de eleição do Chefe de Estado: a via parlamentar; ou o sufrágio direto e universal. Porém, os poderes são idênticos no essencial.

 O importante é o bem comum, preferencialmente obtido por via seriamente democrática!  

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Sobre a capciosa escolha de palavras…

Referi-me há dias à diferença entre os verbos “indigitar” e “indicar” e verberei a diferenciação da escolha de um e de outro em relação a duas personalidades políticas adversárias com vista ao preenchimento do cargo de primeiro-ministro.
Agora que, na cerimónia da tomada de posse do Governo, o discurso de Cavaco Silva utiliza a palavra “poderes” e o de Costa utiliza a palavra “competências”, fiquei com “dúvidas”, que desejei que se dissipassem, ou colocaram-se-me (levantaram-se-me) “questões”, para as quais deveria encontrar resposta satisfatória. Face a esta situação, lembrei-me de consultar a Constituição, que, para lá de constituir a nossa Lei Fundamental, também serve de tira-teimas quando surgem divergências no modo de entender a coisa pública.
Sobre as palavras “poder” e “poderes”, a Constituição, na sua Parte III, estabelece a “organização do poder político” e o artigo 108.º estipula, no âmbito da “Titularidade e exercício do poder”, que “o poder político pertence ao povo e é exercido nos termos da Constituição”. Depois, o n.º 2 do art.º 111.º faz referência a órgãos de “poder local”, como a outros órgãos, e o Título VIII da Parte III define a matéria referente ao “poder local”.
Estas disposições deixam-nos a ideia de que há dois tipos de poder: o poder soberano e o poder local. Da caraterização das regiões autónomas resulta, neste contexto, uma certa indefinição, já que não se trata de órgãos de soberania – pois o n.º 3 do art.º 225.º estabelece que “a autonomia político-administrativa regional não afeta a integridade da soberania do Estado e exerce-se no quadro da Constituição” – mas o art.º 227.º estabelece os poderes das regiões autónomas.
Também, no quadro do poder local, que, nos temos constitucionais, compreende a existência de autarquias locais (vd art.º 235.º/1) – no continente, freguesias, municípios e regiões administrativas (vd art.º 236.º/1); e nas regiões autónomas, freguesias e municípios (vd art.º 236.º/2) – se prevê que “a organização das autarquias locais compreende uma assembleia eleita dotada de poderes deliberativos e um órgão executivo colegial perante ela responsável” (vd art.º 240.º/1).
Curiosamente a nossa Constituição não fala de “separação e interdependência dos poderes”, mas de separação e interdependência dos órgãos de soberania (vd art.º 111.º/1), que são: “o Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo e os Tribunais” (vd art.º 110/1). Estes são órgãos do poder – poder soberano ou exercido a partir do topo do Estado – e são dotados de poderes, mas que não se esgotam nos poderes nem configuram todos os poderes. Assim, o n.º 2 do art.º 111.º estipula que “nenhum órgão de soberania, de região autónoma ou de poder local pode delegar os seus poderes noutros órgãos, a não ser nos casos e nos termos expressamente previstos na Constituição e na Lei”.
Também são, então, poderes os das regiões autónomas e os das autarquias locais. Todos estes poderes constituem o poder político – soberano e de outro teor – e é todo o poder político (e só o poder político e não outros como o religioso, o parental, científico, técnico…) que “pertence ao povo e é exercido nos termos da Constituição” (vd art.º 108.º).
A Constituição fala explicitamente de poderes dos deputados (vd art.º 156.º) e de poderes das regiões autónomas (vd art.º 227.º). Porém, mesmo quando se refere aos órgãos de soberania, tal como a outros órgãos do Estado, a Lei Fundamental utiliza a designação de “competências”.
As competências, por um lado, lado configuram as formas de exercício do poder, mas, por outro, implicam direitos, a que não se deve renunciar, e deveres, a que não se pode escapar. Assim consideradas, as competências são o poder em ação emoldurado pelas categorias de dever e direito e podem configurar a prática de atos próprios ou em relação com outros órgãos ou com outros agentes.
Assim, por exemplo, o Presidente tem itens de competência quanto a outros órgãos (vd art.º 133.º), de competência para a prática de atos próprios (vd art.º 134.º) e de competência nas relações internacionais (vd art.º 135.º). E, de modo semelhante se referem “competência” e “competências” no respeitante aos outros órgãos do poder soberano, regional ou local. Até o Conselho de Estado, que não é um órgão de poder, mas “o órgão político de consulta do Presidente da República” (vd art.º 141.º), vê consagrado um conjunto de itens atinentes à sua competência (vd art.º 145.º).
A Constituição, além disso, utiliza o verbo “poder”, quando admite a possibilidade da prática de um ato, como a promulgação ou veto (vd art.º 136.º) e o mesmo verbo na forma negativa quando determina a impossibilidade ou a limitação da prática de um ato, como o caso da dissolução da Assembleia da República (vd art.º 172.º) em determinados momentos.
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Considerando o exposto, há que perguntar quem tem razão na escolha dos vocábulos no discurso da posse do XXI Governo Constitucional: Cavaco ou Costa?
Por mais estranho que pareça, devo dizer que ambos têm a sua razão. É certo que a relação Cavaco-Costa tem sido bastante crispada, com a mostra de desconfianças mútuas, embora com maior visibilidade e insistência da parte do Presidente. No entanto, o Presidente, que sempre ancorou o seu discurso na lógica do poder (até à sua ascensão ao cargo de primeiro-ministro o poder era encarado como prerrogativa de todos os órgãos de soberania, ao passo que a sua linguagem passou a fazer crer que chegar ao poder era chegar ao governo), fala da situação de intangibilidade dos seus poderes, com exceção temporária do poder de dissolução do Parlamento. É excrescente esta referência à não existência temporal desta prerrogativa, que, pela sua recorrência nos últimos tempos, dá a entender, que, a ser possível neste momento, seria utilizada, nitidamente contra o Parlamento, quiçá contra o Governo ora empossado.
Por outro lado, a referência aos poderes presidenciais poderia ter sido feita num contexto mais plausível da afirmação da lealdade institucional para com o Governo e na cooperação para a solução dos problemas que advenham. E, quando mais adiante porfia que tudo fará para lograr um conjunto de linhas circunscreventes da crise, é caso para perguntar o que é que pode fazer em concreto, além do poder de veto e de submissão ao Tribunal Constitucional da apreciação da constitucionalidade de algumas normas oriundas quer do Parlamento quer do Governo, bem como da magistratura de influência.
Por seu turno, António Costa, utiliza a palavra “competências”, quer referindo-se ao Presidente, quer ao Governo, à Assembleia da República e aos Tribunais. O Governante, que acabou de ser empossado, utilizou um vocabulário mais próximo da letra da Constituição, pois, ainda está na fase de lançamento da governação e praticamente ainda não no seu exercício pleno. Por outro lado, tentou esclarecer publicamente as dúvidas surgidas no documento emitido pela Presidência da República no passado dia 23, sobretudo no atinente ao papel do Conselho de Concertação Social, à disciplina orçamental e aos compromisso internacionais, bem como na convicção da reunião de condições de estabilidade. De moções de confiança e orçamentos, nada tinha a dizer.
Se Cavaco, foi impertinente na reiteração das linhas vermelhas ou na porfia da vigilância sobre o Governo, também Costa foi curto ao referir que o Governo é responsável politicamente perante a Assembleia da República, esquecendo que, segundo o teor do art.º 190.º, “o Governo é responsável perante o Presidente da República e a Assembleia da República”. É certo que o n.º 1 do art.º 191.º, quando define a responsabilidade do Primeiro-Ministro, aporta o segmento discursivo da responsabilidade política do Governo: “o Primeiro-Ministro é responsável perante o Presidente da República e, no âmbito da responsabilidade política do Governo, perante a Assembleia da República” (sic). Porém, não me parece que fique diminuída a responsabilidade do Governo perante o Presidente, mediante a personalidade do Primeiro-Ministro.
Não se distingue explicitamente de que tipo é a responsabilidade do art.º 190.º. Mas certamente que é política e institucional. A forma de perceber esta responsabilidade é que será diferente: a iniciativa da formação constitucional do Governo é do Presidente, tendo em conta as condições plasmadas no art.º 187.º; e à Assembleia da República cabe deixar passar ou rejeitar o programa do Governo. A demissão do Governo tem origem no Parlamento pela aprovação da moção de rejeição do seu programa ou de uma moção de censura ou pela não provação de uma moção de confiança. Tem, excecionalmente, origem na apresentação ao Presidente da República do pedido de demissão do Primeiro-Ministro ou, mais excecionalmente ainda, por iniciativa do Presidente para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas (vd art.º 195.º).
Ademais, no âmbito da responsabilidade do Primeiro-Ministro perante o Presidente da República, cabe ao Primeiro-Ministro informar o Presidente “acerca dos assuntos respeitantes à condução da política externa e interna do país” (vd alínea c do n.º 1 do art.º 201.º).
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Já agora, a referência a duas palavras utilizadas pelo Chefe de Estado: “questões” e “dissipar”. Diz o Presidente a determinado passo, sobre os acordos relativos à governação:
“Os referidos documentos são omissos quanto a alguns pontos essenciais à estabilidade política e à durabilidade do Governo, suscitando questões que, apesar dos esforços desenvolvidos, não foram totalmente dissipadas”.

Ora, o Presidente, que nunca tinha dúvidas, resolveu ver questões suscitadas. Porém, as questões não se dissipam, têm (ou não têm) resposta adequada ou satisfatória. O que se dissipam são efetivamente as dúvidas, que foi o que o Presidente teve ou quis ter e não as deu como dissipadas. De qualquer forma, criou uma ambiguidade. E, se tinha dúvidas políticas ou questões a levantar (não falo de convicções ou simpatias), deveria esperar mais umas horas ou dias até ver tudo esclarecido. Não lhe ficou bem essa referência. Não vá acontecer que um dos fautores de insegurança seja o próprio garante da estabilidade!
Depois, já me aborrecem os novos ciclos políticos: em 4 de outubro, começou um novo ciclo político; agora, começou um novo ciclo político; e, a 9 de março, começará um novo ciclo político. Isto faz-me lembrar a cidade em que o I Encontro de Jovens se realizou umas 10 vezes!
Finalmente, não vejo razão para crítica à marcação da hora da posse do Governo. O Presidente do Parlamento deveria ter aceitado a sugestão do PCP. Constitucional e protocolarmente, o Presidente da República precede a Assembleia da República. É questão simbólica, nada mais.  

2015.11.26 – Louro de Carvalho