António
Barreto, na rubrica “Livro de Reclamações” do DN de hoje, 9 de novembro, tece considerações sobre a temática
relacionada com os manuais escolares, realçando o desmedido montante de gastos
das famílias em livros obrigatórios e outro material escolar, chegando a
apresentar exemplos que testemunham com bastante fidelidade o que realmente se
passa.
E,
tendo em conta o rendimento das famílias e a necessidade de desenvolver a
educação, considera absurdos os preços dos livros escolares.
Ora,
devo dizer que me revejo nessa asserção em termos gerais. O que não sei é se
concordo com a análise justificativa do eminente sociólogo, quando coloca a
questão como resultado das leis desta trintena ou quarentena de anos em termos
de direita e de esquerda ou de liberdade e de igualdade.
Os
manuais escolares são efetivamente muito caros, obscenamente caros – e, como
diz o analista sociólogo, “mais caros do que livros de autores famosos com
direitos de autor elevados”.
Ao fim de trinta ou quarenta anos de leis, umas de direita,
favoráveis à liberdade, outras de esquerda, orientados pela igualdade, nós
deparamo-nos com obscenos preços de manuais escolares – “mais caros do que
livros de autores famosos com direitos de autor elevados...”, como refere
Barreto.
Porém, a questão também não está na ciência das leis ou na
ideologia que as orienta. A filosofia da elaboração, apresentação e escolha de
manuais escolares pouco tem mudado com a legislação produzida por este ou por
aquele governo, até porque é usual dizer-se que a Europa e o país,
independentemente da confissão ideológica de quem governa, viraram à direita.
Tanto assim é que a ideologia cedeu ao pragmatismo e já não se aplicam os
princípios tidos como axiomáticos de que, se governar a direita, “a liberdade
de escolha preside à nossa vida” e “a concorrência beneficia o consumidor”, ou,
se governar a esquerda, “o Estado protetor preside à nossa vida” e “o Estado
regula o mercado e a minha escolha é informada”. A dita terceira via entre o
capitalismo e o socialismo baralhou tudo.
Com esquerda ou com a direita – e Barreto foi ministro de um
governo socialista e agora faz o discurso mais puro do neoliberalismo – as
distorções do mercado, geradas por mão invisível, condicionam seriamente as
famílias. Impera a sociedade de consumo. Como resultado, as crianças,
adolescentes e jovens querem tudo – computador, tablet, I pad, Iped e Ipod, televisor no quarto, playstation,
telemóvel de última moda gulodices, férias fora de casa, etc. – e os pais dão
tudo.
Mais: há alunos que estão, para efeitos da ação social
escolar, no escalão A de rendimentos
do agregado familiar, pelo que a escola lhes fornece refeições, livros e demais
material escolar (e aos
do escalão B comparticipa com uma
parte). Não têm dinheiro
para manuais e material escolar, mas têm-no para os equipamentos enunciados
supra. Têm direito à refeição, mas vão almoçar fora e alguns vendem a senha de
refeição que lhes foi dada.
Porquê? Porque o que vale é a “blindada” declaração de
rendimentos para efeitos de IRS. E quem pode não declarar não declara e os seus
educandos têm direito à ação social escolar, à bolsa de estudo no ensino
superior e os membros do agregado familiar têm isenção das taxas moderadoras no
Serviço Nacional de Saúde. Porém, alguns quando é insuficiente a paciência de
esperar, vão aos serviços privados de saúde e, porque efetivamente têm possibilidades,
compram casa para os filhos estudarem. E os que têm de tudo declarar pagam tudo
até ao cêntimo.
E, voltando às ditas esquerda e direita, na sua complacente impiedade,
o mercado cada vez mais arrogante e desregulado, ao invés de eliminar a corrupção
e a especulação, fomenta-as.
Com a direita ou com a esquerda, com liberdade ou com
igualdade, continuamos a não ter capacidade para saber quais serão “os melhores
manuais escolares” para os filhos. E a autoridade democrática não consegue
impor “preços razoáveis”, zelar “pela igualdade”, proibir “a corrupção” e
fomentar “a qualidade técnica”.
O Estado não tem autoridade e desautorizou os seus servidores
e deixa-se baralhar consciente ou inconscientemente pelo marketing e alinha com os negócios.
O sociólogo de referência afirma que temos “os manuais mais
caros da Europa, pesados, luxuosos e efémeros”. Mas esquece que temos muitos
outros produtos mais caros que a média europeia. Porque não pensa, por exemplo,
nos produtos petrolíferos, na eletricidade, na água, nas portagens, nas
telecomunicações, no material desportivo e também nos materiais e equipamentos
que suportam o nascimento e evolução da infância de cada criança (aqui imperam mesmo os caprichos do
mercado e as técnicas do marketing – tudo em nome do eufemístico superior
interesse da criança)?
Lamenta que os manuais escolares não transitem de irmão para
irmão (se quase não há
irmãos…). Mas há casos
em que passam de irmão para irmão, de primo para primo, de vizinho para vizinho
e de amigo para amigo. Mais: os manuais cedidos pela escola são devolvidos no
fim do ano – coisa que, pelos vistos, o sociólogo não sabe ou lhe interessa
fazer de conta que não sabe.
É certo que, tal como pensa Barreto, “a produção de manuais
escolares está nas mãos de um racket
com mais poder do que o Estado e as famílias” e “com mais força do que a
esquerda e a direita”. Mas isto não explica tudo.
São, por norma, “impressos em papel muito caro”, mas não têm “páginas
inúteis em papel couché” nem abundam “em
exercícios fúteis e fotografias ridículas”. E quem é o analista para assegurar
que “muitos são de medíocre qualidade técnica e científica”?
***
Mas
afinal o que é que se passa?
Do
meu ponto de vista, devo considerar que, no geral, os manuais escolares são de
grande qualidade. Pode dizer-se que já passou o tempo em que o manual escolar
resultava da experiência de trabalho de professores estagiários que viam num
projeto editorial um furo de complemento à atividade docente, devidamente
apadrinhado por algumas editoras e pessoas influentes.
De
há uns anos a esta parte, os manuais são elaborados por professores com larga
experiência no setor e nível de ensino a que se destinam e com a supervisão
científica de algum vulto de referência no ensino superior. Por outro lado,
progressivamente o Ministério da Educação criou a exigência da certificação dos
manuais por departamento competente de uma instituição de ensino superior (havendo-os,
na respetiva disciplina e nível de ensino, só estes é que podem ser adotados), de modo que a adoção de manual
não certificado hoje, a existir, será residual.
Além
dos aspetos científico-pedagógicos, os manuais têm uma visualização bastante
atrativa, obviamente que não agrada a todos, nem os gostos se discutem.
Exercícios
fúteis, haverá alguns, mas os ritmos de aprendizagem nem sempre permitem que se
apresentem propostas perfecionistas. Erros, também os haverá, mas nada que o
professor atento não debele e não corrija com os alunos. Penso que deve
entender-se que o manual, por mais importante que seja, não passa de um
instrumento de aprendizagem, um meio facilitador da lecionação. Ninguém de bom
senso se desfaz de um instrumento que acuse alguma deficiência ultrapassável.
Por exemplo, ninguém deita fora um piano que tenha uma corda desafinada ou um
saxofone que tenha os vedantes das chaves ressequidos…
Os
erros normalmente resultam da fuga de texto ou fenómenos similares e, uma vez
por outra, por se dar como certo algum enunciado de teor aceitável, mas
controverso.
***
E
porque é que os manuais são excessivamente caros?
É
certo que só olhamos para o manual, o livro, em suporte de papel. Esquecemos
que as editoras disponibilizam também os cadernos de atividades que acompanham
o manual, cadernos de súmulas de conteúdos, materiais digitalizados, etc.
Depois,
são tantas as editoras que investem em manuais escolares e o universo do
mercado português é tão exíguo que a multiplicação de técnicas e ações de
persuasão dos professores se tornam um aditamento ao peso do custo do manual e
dos respetivos cadernos de atividades.
É
certo que o Ministério da Educação estabeleceu um período maior de vigência dos
manuais adotados: de três anos passou para seis. Porém, ao mesmo tempo, andou a
fazer programas novos em algumas disciplinas – em alguns casos de vigência
temporal muito curta (por exemplo, é o caso dos programas de
Português) –,
definiu as metas curriculares por ano de escolaridade, para substituir as metas
de aprendizagem por ciclo, cuja entrada em vigor não coincide com a inauguração
de um novo período de vigência do manual, e baniu o ensino por competências.
Perante
este cenário, as editoras entenderam adaptar as novas tiragens dos manuais aos
novos normativos, o que, em alguns casos, descaraterizou em grande parte o
manual. E o Ministério da Educação, sem autoridade perante o mercado, impõe aos
professores que aceitem lecionar com dois manuais diferentes na mesma turma!...
E a escola, assolada por cortes orçamentais, não pode dispor de fotocópias para
obviar a alguns casos.
***
Que
fazer?
Seria
penoso voltar-se ao regime de livro único. No entanto, a floresta de edição de
manuais e cadernos auxiliares e de entidades que se pronunciam sobre os mesmos
dificilmente resultará em abaixamento de preços e maior eficácia.
Em
vez de a avaliação de dezenas de manuais escolares com vista à adoção em cada
escola/agrupamento ser feita pelo respetivo conselho pedagógico com base no
estudo de um complicado formulário por parte de cada grupo disciplinar, poderia
uma comissão nacional fazer a seleção de três manuais por disciplina e ano de
escolaridade (ou nível de ensino), com um ano de antecedência ao do lançamento do manual
no mercado, e, por seu turno, o conselho pedagógico de cada escola/agrupamento selecionaria
dos três o que julgasse mais ajustável à sua realidade. Por sua vez, as
editoras poderiam especializar-se mais numa ou noutra disciplina.
Depois,
havia que abandonar a prática do manual do professor diferente do manual do aluno,
pois, esta prática traz dificuldades de diferença de oportunidades aos alunos
no caso em que a algum ou a alguns tenha sido cedido o manual do professor com hipótese
de respostas. As editoras deveriam, ao invés, organizar um caderno de apoio ao professor
em volume independente do manual.
Por
outro lado, as alterações programáticas deveriam entrar em vigor apenas no ano
escolar em que se iniciasse um novo ciclo de manuais para o respetivo ano de
escolaridade.
Deveria
ainda evitar-se a transferência de alunos no decurso de um ano letivo; e, quando
a transferência se tornasse imperativa por efetiva mudança de local de residência
ou de trabalho do encarregado de educação, a escola deveria disponibilizar, a
título de empréstimo, os manuais adotados.
Finalmente,
estariam reunidas as condições para que o Estado estabelecesse o controlo dos preços
dos manuais e as famílias, em vez de satisfazerem os caprichos dos filhos dando-lhes
tudo, investissem prioritariamente no essencial.
2015.11.09 –
Louro de Carvalho
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