terça-feira, 10 de novembro de 2015

Sobre os manuais escolares


António Barreto, na rubrica “Livro de Reclamações” do DN de hoje, 9 de novembro, tece considerações sobre a temática relacionada com os manuais escolares, realçando o desmedido montante de gastos das famílias em livros obrigatórios e outro material escolar, chegando a apresentar exemplos que testemunham com bastante fidelidade o que realmente se passa.
E, tendo em conta o rendimento das famílias e a necessidade de desenvolver a educação, considera absurdos os preços dos livros escolares.
Ora, devo dizer que me revejo nessa asserção em termos gerais. O que não sei é se concordo com a análise justificativa do eminente sociólogo, quando coloca a questão como resultado das leis desta trintena ou quarentena de anos em termos de direita e de esquerda ou de liberdade e de igualdade.
Os manuais escolares são efetivamente muito caros, obscenamente caros – e, como diz o analista sociólogo, “mais caros do que livros de autores famosos com direitos de autor elevados”.
Ao fim de trinta ou quarenta anos de leis, umas de direita, favoráveis à liberdade, outras de esquerda, orientados pela igualdade, nós deparamo-nos com obscenos preços de manuais escolares – “mais caros do que livros de autores famosos com direitos de autor elevados...”, como refere Barreto.
Porém, a questão também não está na ciência das leis ou na ideologia que as orienta. A filosofia da elaboração, apresentação e escolha de manuais escolares pouco tem mudado com a legislação produzida por este ou por aquele governo, até porque é usual dizer-se que a Europa e o país, independentemente da confissão ideológica de quem governa, viraram à direita. Tanto assim é que a ideologia cedeu ao pragmatismo e já não se aplicam os princípios tidos como axiomáticos de que, se governar a direita, “a liberdade de escolha preside à nossa vida” e “a concorrência beneficia o consumidor”, ou, se governar a esquerda, “o Estado protetor preside à nossa vida” e “o Estado regula o mercado e a minha escolha é informada”. A dita terceira via entre o capitalismo e o socialismo baralhou tudo.
Com esquerda ou com a direita – e Barreto foi ministro de um governo socialista e agora faz o discurso mais puro do neoliberalismo – as distorções do mercado, geradas por mão invisível, condicionam seriamente as famílias. Impera a sociedade de consumo. Como resultado, as crianças, adolescentes e jovens querem tudo – computador, tablet, I pad, Iped e Ipod, televisor no quarto, playstation, telemóvel de última moda gulodices, férias fora de casa, etc. – e os pais dão tudo.
Mais: há alunos que estão, para efeitos da ação social escolar, no escalão A de rendimentos do agregado familiar, pelo que a escola lhes fornece refeições, livros e demais material escolar (e aos do escalão B comparticipa com uma parte). Não têm dinheiro para manuais e material escolar, mas têm-no para os equipamentos enunciados supra. Têm direito à refeição, mas vão almoçar fora e alguns vendem a senha de refeição que lhes foi dada.
Porquê? Porque o que vale é a “blindada” declaração de rendimentos para efeitos de IRS. E quem pode não declarar não declara e os seus educandos têm direito à ação social escolar, à bolsa de estudo no ensino superior e os membros do agregado familiar têm isenção das taxas moderadoras no Serviço Nacional de Saúde. Porém, alguns quando é insuficiente a paciência de esperar, vão aos serviços privados de saúde e, porque efetivamente têm possibilidades, compram casa para os filhos estudarem. E os que têm de tudo declarar pagam tudo até ao cêntimo.
E, voltando às ditas esquerda e direita, na sua complacente impiedade, o mercado cada vez mais arrogante e desregulado, ao invés de eliminar a corrupção e a especulação, fomenta-as.
Com a direita ou com a esquerda, com liberdade ou com igualdade, continuamos a não ter capacidade para saber quais serão “os melhores manuais escolares” para os filhos. E a autoridade democrática não consegue impor “preços razoáveis”, zelar “pela igualdade”, proibir “a corrupção” e fomentar “a qualidade técnica”.
O Estado não tem autoridade e desautorizou os seus servidores e deixa-se baralhar consciente ou inconscientemente pelo marketing e alinha com os negócios.
O sociólogo de referência afirma que temos “os manuais mais caros da Europa, pesados, luxuosos e efémeros”. Mas esquece que temos muitos outros produtos mais caros que a média europeia. Porque não pensa, por exemplo, nos produtos petrolíferos, na eletricidade, na água, nas portagens, nas telecomunicações, no material desportivo e também nos materiais e equipamentos que suportam o nascimento e evolução da infância de cada criança (aqui imperam mesmo os caprichos do mercado e as técnicas do marketing – tudo em nome do eufemístico superior interesse da criança)?
Lamenta que os manuais escolares não transitem de irmão para irmão (se quase não há irmãos…). Mas há casos em que passam de irmão para irmão, de primo para primo, de vizinho para vizinho e de amigo para amigo. Mais: os manuais cedidos pela escola são devolvidos no fim do ano – coisa que, pelos vistos, o sociólogo não sabe ou lhe interessa fazer de conta que não sabe.
É certo que, tal como pensa Barreto, “a produção de manuais escolares está nas mãos de um racket com mais poder do que o Estado e as famílias” e “com mais força do que a esquerda e a direita”. Mas isto não explica tudo.
São, por norma, “impressos em papel muito caro”, mas não têm “páginas inúteis em papel couché” nem abundam “em exercícios fúteis e fotografias ridículas”. E quem é o analista para assegurar que “muitos são de medíocre qualidade técnica e científica”?
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Mas afinal o que é que se passa?
Do meu ponto de vista, devo considerar que, no geral, os manuais escolares são de grande qualidade. Pode dizer-se que já passou o tempo em que o manual escolar resultava da experiência de trabalho de professores estagiários que viam num projeto editorial um furo de complemento à atividade docente, devidamente apadrinhado por algumas editoras e pessoas influentes.
De há uns anos a esta parte, os manuais são elaborados por professores com larga experiência no setor e nível de ensino a que se destinam e com a supervisão científica de algum vulto de referência no ensino superior. Por outro lado, progressivamente o Ministério da Educação criou a exigência da certificação dos manuais por departamento competente de uma instituição de ensino superior (havendo-os, na respetiva disciplina e nível de ensino, só estes é que podem ser adotados), de modo que a adoção de manual não certificado hoje, a existir, será residual.
Além dos aspetos científico-pedagógicos, os manuais têm uma visualização bastante atrativa, obviamente que não agrada a todos, nem os gostos se discutem.
Exercícios fúteis, haverá alguns, mas os ritmos de aprendizagem nem sempre permitem que se apresentem propostas perfecionistas. Erros, também os haverá, mas nada que o professor atento não debele e não corrija com os alunos. Penso que deve entender-se que o manual, por mais importante que seja, não passa de um instrumento de aprendizagem, um meio facilitador da lecionação. Ninguém de bom senso se desfaz de um instrumento que acuse alguma deficiência ultrapassável. Por exemplo, ninguém deita fora um piano que tenha uma corda desafinada ou um saxofone que tenha os vedantes das chaves ressequidos…
Os erros normalmente resultam da fuga de texto ou fenómenos similares e, uma vez por outra, por se dar como certo algum enunciado de teor aceitável, mas controverso.
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E porque é que os manuais são excessivamente caros?
É certo que só olhamos para o manual, o livro, em suporte de papel. Esquecemos que as editoras disponibilizam também os cadernos de atividades que acompanham o manual, cadernos de súmulas de conteúdos, materiais digitalizados, etc.
Depois, são tantas as editoras que investem em manuais escolares e o universo do mercado português é tão exíguo que a multiplicação de técnicas e ações de persuasão dos professores se tornam um aditamento ao peso do custo do manual e dos respetivos cadernos de atividades.
É certo que o Ministério da Educação estabeleceu um período maior de vigência dos manuais adotados: de três anos passou para seis. Porém, ao mesmo tempo, andou a fazer programas novos em algumas disciplinas – em alguns casos de vigência temporal muito curta (por exemplo, é o caso dos programas de Português) –, definiu as metas curriculares por ano de escolaridade, para substituir as metas de aprendizagem por ciclo, cuja entrada em vigor não coincide com a inauguração de um novo período de vigência do manual, e baniu o ensino por competências.
Perante este cenário, as editoras entenderam adaptar as novas tiragens dos manuais aos novos normativos, o que, em alguns casos, descaraterizou em grande parte o manual. E o Ministério da Educação, sem autoridade perante o mercado, impõe aos professores que aceitem lecionar com dois manuais diferentes na mesma turma!... E a escola, assolada por cortes orçamentais, não pode dispor de fotocópias para obviar a alguns casos.
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Que fazer?
Seria penoso voltar-se ao regime de livro único. No entanto, a floresta de edição de manuais e cadernos auxiliares e de entidades que se pronunciam sobre os mesmos dificilmente resultará em abaixamento de preços e maior eficácia.
Em vez de a avaliação de dezenas de manuais escolares com vista à adoção em cada escola/agrupamento ser feita pelo respetivo conselho pedagógico com base no estudo de um complicado formulário por parte de cada grupo disciplinar, poderia uma comissão nacional fazer a seleção de três manuais por disciplina e ano de escolaridade (ou nível de ensino), com um ano de antecedência ao do lançamento do manual no mercado, e, por seu turno, o conselho pedagógico de cada escola/agrupamento selecionaria dos três o que julgasse mais ajustável à sua realidade. Por sua vez, as editoras poderiam especializar-se mais numa ou noutra disciplina.
Depois, havia que abandonar a prática do manual do professor diferente do manual do aluno, pois, esta prática traz dificuldades de diferença de oportunidades aos alunos no caso em que a algum ou a alguns tenha sido cedido o manual do professor com hipótese de respostas. As editoras deveriam, ao invés, organizar um caderno de apoio ao professor em volume independente do manual.
Por outro lado, as alterações programáticas deveriam entrar em vigor apenas no ano escolar em que se iniciasse um novo ciclo de manuais para o respetivo ano de escolaridade.
Deveria ainda evitar-se a transferência de alunos no decurso de um ano letivo; e, quando a transferência se tornasse imperativa por efetiva mudança de local de residência ou de trabalho do encarregado de educação, a escola deveria disponibilizar, a título de empréstimo, os manuais adotados.
Finalmente, estariam reunidas as condições para que o Estado estabelecesse o controlo dos preços dos manuais e as famílias, em vez de satisfazerem os caprichos dos filhos dando-lhes tudo, investissem prioritariamente no essencial.
2015.11.09 – Louro de Carvalho


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