O
Papa está, em 29 e 30 de novembro, na República Centro-Africana, que vem
experimentando fortes momentos de tensão: ainda recentemente, rebeldes
sequestraram, queimaram e enterraram vivas “bruxas” em cerimónias públicas,
explorando superstições largamente disseminadas para conseguirem impor o seu
controlo em áreas territoriais daquele país devastado pela guerra.
Um relatório
elaborado por funcionários da ONU no âmbito dos direitos humanos, visto
exclusivamente pela Thomson Reuters Foundation, vem ilustrado por imagens
chocantes de algumas vítimas amarradas a estacas de madeira a ser conduzidas ao
fogo, bem como torsos carbonizados de pessoas submetidas ao ritual imolatório.
A tortura ocorreu entre dezembro de 2014 e o início de 2015 à ordem de líderes
da milícia cristã anti-Balaka, que
combate, há mais de dois anos, rebeldes Seleka em todo o território.
O país,
quando rebeldes muçulmanos tomaram momentaneamente o controlo do país, de
maioria cristã, em março de 2013, mergulhou num mar de violência sectária, cuja
escalada em ambos os lados semeou o descontrolo em todo o interior do país.
De momento, a
República está confiada politicamente a um governo de transição, sob a égide de
uma Chefe de Estado de Transição, incumbido de, após sucessivos adiamentos,
preparar eleições parlamentares e presidenciais, a ocorrer a 27 de dezembro,
com apoio e vigilância da comunidade internacional. No entanto, é generalizada
a existência de preocupações quanto a mais derramamento de sangue por ocasião
da campanha eleitoral.
Os
investigadores da ONU, embora reconheçam que a crença em feitiçaria é um
flagelo recorrente em toda a África, constatam que aparentemente os rebeldes
socorreram-se de tais superstições para a intimidação, a extorsão de dinheiro e
o exercício de autoridade sobre áreas territoriais sem lei – chegando a
declarar:
“A feitiçaria está firmemente entrincheirada [na
República Centro-Africana] e a ausência de autoridade estatal cria um terreno
fértil para uma espécie de justiça popular distorcida pelos antibalakas para
seu benefício” (cf http://noticias.r7.com, 26 de
novembro).
***
É neste
contexto geral de insegurança e temor – mas na rota esperançosa da normalização
da vida sociopolítica – que Francisco se apresenta como “peregrino de paz e
“apóstolo da esperança”, na convicção confiante de
que o país empreenderá “serenamente uma nova fase da sua história”.
Assim, no encontro com a classe dirigente e o corpo diplomático, a 29, glosou
o lema trilógico da República Centro-Africana, que reflete a esperança dos
pioneiros e o sonho dos pais fundadores – Unidade,
Dignidade, Trabalho – e, a seguir, elogiou o “testemunho tão humano e tão cristão” da Chefe de Estado
da Transição e enalteceu a ação dos membros do Corpo Diplomático e dos
representantes das Organizações Internacionais, “cujo trabalho nos recorda o
ideal de solidariedade e cooperação que deve ser cultivado entre os povos e as
nações”.
Entende que
hoje, mais do que nunca, a trilogia “Unidade,
Dignidade, Trabalho” exprime “as aspirações de cada centro-africano e
constitui, consequentemente, uma bússola segura para as Autoridades, que têm o
dever de guiar os destinos do país”. Segundo o Bispo de Roma, cada uma destas
palavras representa “um canteiro de obras”, “um programa nunca concluído” e “um
compromisso a executar constantemente”.
A Unidade, constituindo “um valor fulcral
para a harmonia dos povos”, permite viver e construir comunidade “a partir da
maravilhosa diversidade do mundo circundante, evitando a tentação do medo do
outro”, que “não nos é familiar” ou “não pertence ao nosso grupo étnico, às
nossas opções políticas ou à nossa confissão religiosa”. A unidade postula, assim,
a criação e a promoção da “síntese das riquezas que cada um traz consigo”.
Deste modo, diz sabiamente o Papa, “a
unidade na diversidade é um desafio constante, que requer criatividade,
generosidade, abnegação e respeito pelo outro”.
Já a Dignidade, enquanto “valor moral” que
significa “honestidade, lealdade, garbo e honra”, constitui o perfil dos “homens
e mulheres conscientes tanto dos seus direitos como dos seus deveres” e
condu-los “ao respeito mútuo”. Neste sentido, é necessário que “tudo se faça
para tutelar a condição e a dignidade da pessoa humana”. Depois, a dignidade
implica que todos aqueles e aquelas que efetivamente dispõem dos meios “para
levar uma vida decente”, ao invés da preocupação com os privilégios, devem apostar
na ajuda aos “mais pobres” de modo que também eles acedam “a condições de vida
respeitadoras da dignidade humana”, sobretudo através do “desenvolvimento do
seu potencial humano, cultural, económico e social”.
É a
atualização do desígnio desenvolvimentista – “a promoção de todos os homens e
do homem todo” – de Paulo VI na famosa encíclica Populorum Progressio, n.º 14:
“O desenvolvimento não se
reduz a um simples crescimento económico. Para ser autêntico, deve ser
integral, quer dizer, promover todos os homens e o homem todo, como justa e
vincadamente sublinhou um eminente especialista: ‘não aceitamos que o económico
se separe do humano; nem o desenvolvimento, das civilizações em que ele se
incluiu. O que conta para nós é o homem, cada homem, cada grupo de homens, até
se chegar à humanidade inteira’.”.
No atinente
ao trabalho, o Papa assegura que é
pelo trabalho que se pode melhorar a vida das famílias. Se, como ensina São
Paulo, “não compete aos filhos entesourar para os pais, mas sim aos pais para
os filhos” (2 Cor 12,14)
e se “o esforço dos pais exprime o seu amor pelos filhos”, então há que tirar
partido da excecional riqueza do país resultante da biodiversidade e explorar
de forma sensata “os seus abundantes recursos”, de modo que a pobreza seja
erradicada.
E, retomando
algumas formulações da encíclica Laudato
Si’, Francisco chama “a atenção de todos – cidadãos, responsáveis do país, parceiros internacionais e sociedades
multinacionais – para a grave responsabilidade que vos cabe na exploração
dos recursos ambientais nas opções e projetos de desenvolvimento” que “afetam a
terra inteira”. Por outro lado, assegura que “o trabalho de construção duma
sociedade próspera deve ser uma obra solidária”.
Ademais, a
história da evangelização e a história sociopolítica do país dão, segundo o
Pontífice, “testemunho do compromisso da Igreja na linha destes valores da
unidade, da dignidade e do trabalho” – o que resultou na formação da “pátria
dum povo profundamente religioso, com um rico património natural e cultural”.
Por
consequência, o líder da Igreja Católica renova com os bispos, ora responsáveis
pela evangelização do país, “a disponibilidade da Igreja presente nesta nação a
contribuir cada vez mais para a promoção do bem comum, nomeadamente através da
busca da paz e reconciliação” – tarefa de todos
(povo, dirigentes e parceiros) com vista à consecução e manutenção
crescente da unidade, da dignidade humana e da paz fundada na justiça.
***
No encontro com as comunidades evangélicas na
FATEB (Faculdade de Teologia Evangélica de Bangui), também a 29, Francisco sublinhou o facto de todos estarem ali “ao serviço do mesmo Senhor
ressuscitado”, e de, por força do “Batismo comum que recebemos, serem
convidados a anunciar a alegria do Evangelho aos homens e mulheres” deste país
da África Central.
E a situação
que o povo vive, de há bastantes anos, “atingido pelas provações e pela
violência que causam tantos sofrimentos”, constitui-se em mais um motivo para a
urgência do anúncio do Evangelho. Esclarece o Papa, lamentando:
“É a carne do próprio Cristo que sofre, que sofre nos
seus membros prediletos: os pobres do seu povo, os doentes, os idosos e os
abandonados, as crianças que já não têm os pais ou estão abandonadas a si
mesmas, sem guia nem educação. E são também todos aqueles que a violência e o
ódio feriram na alma ou no corpo; aqueles que a guerra privou de tudo: do
trabalho, da casa, das pessoas queridas.”.
Depois, na
certeza de que “Deus não faz diferença entre aqueles que sofrem”, Francisco
aduz a explicação do que chama o ecumenismo
do sangue: “todas as nossas comunidades, sem distinção, sofrem com a
injustiça e o ódio cego que o diabo desencadeia”.
E os últimos
acontecimentos de saque e incêndio à casa do Pastor Nicolas e à sede da sua
comunidade motivaram uma verificação papal da relevância da providência divina,
a que fica acoplada uma interrogação existencial:
“Neste contexto difícil, o Senhor não cessa de nos
enviar para manifestar toda a sua ternura, a sua compaixão e a sua
misericórdia. Este sofrimento comum e esta missão comum são uma oportunidade
providencial para nos fazer avançar juntos pelo caminho da unidade, sendo, para
isso mesmo, um meio espiritual indispensável. Como poderia o Pai recusar a graça da unidade, embora ainda imperfeita,
aos seus filhos que sofrem juntos e que, nas mais diversas circunstâncias, se
dedicam juntos ao serviço dos irmãos?”.
A seguir,
apontou o dedo ao escândalo da divisão dos cristãos por contrariar a vontade do
Senhor e configurar um sinal de contradição face a tantas contradições que
levantam ao Evangelho de Cristo as inúmeras e pungentes situações de ódio e de violência
que dilaceram a humanidade. Não obstante e por isso, o Bispo de Roma deixa, com
“apreço pelo espírito de respeito mútuo e colaboração que existe entre os
cristãos” do país, uma clara palavra de encorajamento ecuménico “a avançar por
este caminho num serviço comum da caridade”, como “testemunho prestado a
Cristo, que constrói a unidade”. E, por fim, um desejo e uma postura de
solidariedade espiritual:
“Possais vós, em medida sempre maior e com coragem,
juntar à perseverança e à caridade o serviço da oração e da reflexão em comum,
procurando um melhor conhecimento recíproco, uma maior confiança e amizade rumo
à plena comunhão de que conservamos a firme esperança.
Asseguro-vos que a minha oração vos acompanha neste
caminho fraterno de serviço, reconciliação e misericórdia, um caminho longo mas
cheio de alegria e esperança.”.
***
Depois, na catedral de Bangui, antes da
abertura da Porta Santa, proclamou para hoje esta cidade como “a capital espiritual do mundo”,
explicitando que “o Ano Santo da
Misericórdia chega adiantado a esta terra”, que “sofre, há diversos anos, a
guerra e o ódio, a incompreensão, a falta de paz”. Porém, considerou “simbolizados
nesta terra sofredora” todos os países do mundo inteiro que estão a passar pela
cruz da guerra. Por isso, Bangui torna-se também “a capital espiritual da
súplica pela misericórdia do Pai”. E acentua o começo do Ano Santo, “hoje, aqui
nesta capital espiritual do mundo com a oração pela paz”, que se transcreve:
Todos nós pedimos paz, misericórdia, reconciliação,
perdão, amor… para Bangui, para toda a República Centro-Africana, para o mundo
inteiro. Para os países que sofrem a guerra, peçamos a paz; todos juntos,
peçamos amor e paz. Todos juntos (em língua sango): «Doyé Siriri!» [todos
repetem: «Doyé Siriri!»].
E, na homilia
da Missa do I domingo do Advento, comentou a palavra do profeta, do apóstolo e
de Cristo – que, retratando um ambiente parecido com o da República
Centro-africana, aninha, acalenta e proclama a esperança certa de melhores dias
de expressão prática da verdadeira justiça como valor supremo do direito por um
mundo mais humano e fraterno. É a hora de levantar a cabeça e seguir clamando
por reconciliação, perdão, amor e paz.
2015.11.29 –
Louro de Carvalho
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