segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Promoção de todos os homens e do homem todo


O Papa está, em 29 e 30 de novembro, na República Centro-Africana, que vem experimentando fortes momentos de tensão: ainda recentemente, rebeldes sequestraram, queimaram e enterraram vivas “bruxas” em cerimónias públicas, explorando superstições largamente disseminadas para conseguirem impor o seu controlo em áreas territoriais daquele país devastado pela guerra.
Um relatório elaborado por funcionários da ONU no âmbito dos direitos humanos, visto exclusivamente pela Thomson Reuters Foundation, vem ilustrado por imagens chocantes de algumas vítimas amarradas a estacas de madeira a ser conduzidas ao fogo, bem como torsos carbonizados de pessoas submetidas ao ritual imolatório. A tortura ocorreu entre dezembro de 2014 e o início de 2015 à ordem de líderes da milícia cristã anti-Balaka, que combate, há mais de dois anos, rebeldes Seleka em todo o território.
O país, quando rebeldes muçulmanos tomaram momentaneamente o controlo do país, de maioria cristã, em março de 2013, mergulhou num mar de violência sectária, cuja escalada em ambos os lados semeou o descontrolo em todo o interior do país.
De momento, a República está confiada politicamente a um governo de transição, sob a égide de uma Chefe de Estado de Transição, incumbido de, após sucessivos adiamentos, preparar eleições parlamentares e presidenciais, a ocorrer a 27 de dezembro, com apoio e vigilância da comunidade internacional. No entanto, é generalizada a existência de preocupações quanto a mais derramamento de sangue por ocasião da campanha eleitoral.
Os investigadores da ONU, embora reconheçam que a crença em feitiçaria é um flagelo recorrente em toda a África, constatam que aparentemente os rebeldes socorreram-se de tais superstições para a intimidação, a extorsão de dinheiro e o exercício de autoridade sobre áreas territoriais sem lei – chegando a declarar:
“A feitiçaria está firmemente entrincheirada [na República Centro-Africana] e a ausência de autoridade estatal cria um terreno fértil para uma espécie de justiça popular distorcida pelos antibalakas para seu benefício” (cf http://noticias.r7.com, 26 de novembro).
***
É neste contexto geral de insegurança e temor – mas na rota esperançosa da normalização da vida sociopolítica – que Francisco se apresenta como “peregrino de paz e “apóstolo da esperança”, na convicção confiante de que o país empreenderá “serenamente uma nova fase da sua história”.
Assim, no encontro com a classe dirigente e o corpo diplomático, a 29, glosou o lema trilógico da  República Centro-Africana, que reflete a esperança dos pioneiros e o sonho dos pais fundadores – Unidade, Dignidade, Trabalho – e, a seguir, elogiou o “testemunho tão humano e tão cristão” da Chefe de Estado da Transição e enalteceu a ação dos membros do Corpo Diplomático e dos representantes das Organizações Internacionais, “cujo trabalho nos recorda o ideal de solidariedade e cooperação que deve ser cultivado entre os povos e as nações”.
Entende que hoje, mais do que nunca, a trilogia “Unidade, Dignidade, Trabalho” exprime “as aspirações de cada centro-africano e constitui, consequentemente, uma bússola segura para as Autoridades, que têm o dever de guiar os destinos do país”. Segundo o Bispo de Roma, cada uma destas palavras representa “um canteiro de obras”, “um programa nunca concluído” e “um compromisso a executar constantemente”.
A Unidade, constituindo “um valor fulcral para a harmonia dos povos”, permite viver e construir comunidade “a partir da maravilhosa diversidade do mundo circundante, evitando a tentação do medo do outro”, que “não nos é familiar” ou “não pertence ao nosso grupo étnico, às nossas opções políticas ou à nossa confissão religiosa”. A unidade postula, assim, a criação e a promoção da “síntese das riquezas que cada um traz consigo”. Deste modo, diz sabiamente o Papa, “a unidade na diversidade é um desafio constante, que requer criatividade, generosidade, abnegação e respeito pelo outro”.
Já a Dignidade, enquanto “valor moral” que significa “honestidade, lealdade, garbo e honra”, constitui o perfil dos “homens e mulheres conscientes tanto dos seus direitos como dos seus deveres” e condu-los “ao respeito mútuo”. Neste sentido, é necessário que “tudo se faça para tutelar a condição e a dignidade da pessoa humana”. Depois, a dignidade implica que todos aqueles e aquelas que efetivamente dispõem dos meios “para levar uma vida decente”, ao invés da preocupação com os privilégios, devem apostar na ajuda aos “mais pobres” de modo que também eles acedam “a condições de vida respeitadoras da dignidade humana”, sobretudo através do “desenvolvimento do seu potencial humano, cultural, económico e social”.
É a atualização do desígnio desenvolvimentista – “a promoção de todos os homens e do homem todo” – de Paulo VI na famosa encíclica Populorum Progressio, n.º 14:
“O desenvolvimento não se reduz a um simples crescimento económico. Para ser autêntico, deve ser integral, quer dizer, promover todos os homens e o homem todo, como justa e vincadamente sublinhou um eminente especialista: ‘não aceitamos que o económico se separe do humano; nem o desenvolvimento, das civilizações em que ele se incluiu. O que conta para nós é o homem, cada homem, cada grupo de homens, até se chegar à humanidade inteira’.”.

No atinente ao trabalho, o Papa assegura que é pelo trabalho que se pode melhorar a vida das famílias. Se, como ensina São Paulo, “não compete aos filhos entesourar para os pais, mas sim aos pais para os filhos” (2 Cor 12,14) e se “o esforço dos pais exprime o seu amor pelos filhos”, então há que tirar partido da excecional riqueza do país resultante da biodiversidade e explorar de forma sensata “os seus abundantes recursos”, de modo que a pobreza seja erradicada.
E, retomando algumas formulações da encíclica Laudato Si’, Francisco chama “a atenção de todos cidadãos, responsáveis do país, parceiros internacionais e sociedades multinacionais – para a grave responsabilidade que vos cabe na exploração dos recursos ambientais nas opções e projetos de desenvolvimento” que “afetam a terra inteira”. Por outro lado, assegura que “o trabalho de construção duma sociedade próspera deve ser uma obra solidária”.
Ademais, a história da evangelização e a história sociopolítica do país dão, segundo o Pontífice, “testemunho do compromisso da Igreja na linha destes valores da unidade, da dignidade e do trabalho” – o que resultou na formação da “pátria dum povo profundamente religioso, com um rico património natural e cultural”.
Por consequência, o líder da Igreja Católica renova com os bispos, ora responsáveis pela evangelização do país, “a disponibilidade da Igreja presente nesta nação a contribuir cada vez mais para a promoção do bem comum, nomeadamente através da busca da paz e reconciliação” – tarefa de todos (povo, dirigentes e parceiros) com vista à consecução e manutenção crescente da unidade, da dignidade humana e da paz fundada na justiça.
***
No encontro com as comunidades evangélicas na FATEB (Faculdade de Teologia Evangélica de Bangui), também a 29, Francisco sublinhou o facto de todos estarem ali “ao serviço do mesmo Senhor ressuscitado”, e de, por força do “Batismo comum que recebemos, serem convidados a anunciar a alegria do Evangelho aos homens e mulheres” deste país da África Central.
E a situação que o povo vive, de há bastantes anos, “atingido pelas provações e pela violência que causam tantos sofrimentos”, constitui-se em mais um motivo para a urgência do anúncio do Evangelho. Esclarece o Papa, lamentando:
“É a carne do próprio Cristo que sofre, que sofre nos seus membros prediletos: os pobres do seu povo, os doentes, os idosos e os abandonados, as crianças que já não têm os pais ou estão abandonadas a si mesmas, sem guia nem educação. E são também todos aqueles que a violência e o ódio feriram na alma ou no corpo; aqueles que a guerra privou de tudo: do trabalho, da casa, das pessoas queridas.”.

Depois, na certeza de que “Deus não faz diferença entre aqueles que sofrem”, Francisco aduz a explicação do que chama o ecumenismo do sangue: “todas as nossas comunidades, sem distinção, sofrem com a injustiça e o ódio cego que o diabo desencadeia”.
E os últimos acontecimentos de saque e incêndio à casa do Pastor Nicolas e à sede da sua comunidade motivaram uma verificação papal da relevância da providência divina, a que fica acoplada uma interrogação existencial:   
“Neste contexto difícil, o Senhor não cessa de nos enviar para manifestar toda a sua ternura, a sua compaixão e a sua misericórdia. Este sofrimento comum e esta missão comum são uma oportunidade providencial para nos fazer avançar juntos pelo caminho da unidade, sendo, para isso mesmo, um meio espiritual indispensável. Como poderia o Pai recusar a graça da unidade, embora ainda imperfeita, aos seus filhos que sofrem juntos e que, nas mais diversas circunstâncias, se dedicam juntos ao serviço dos irmãos?”.

A seguir, apontou o dedo ao escândalo da divisão dos cristãos por contrariar a vontade do Senhor e configurar um sinal de contradição face a tantas contradições que levantam ao Evangelho de Cristo as inúmeras e pungentes situações de ódio e de violência que dilaceram a humanidade. Não obstante e por isso, o Bispo de Roma deixa, com “apreço pelo espírito de respeito mútuo e colaboração que existe entre os cristãos” do país, uma clara palavra de encorajamento ecuménico “a avançar por este caminho num serviço comum da caridade”, como “testemunho prestado a Cristo, que constrói a unidade”. E, por fim, um desejo e uma postura de solidariedade espiritual:
“Possais vós, em medida sempre maior e com coragem, juntar à perseverança e à caridade o serviço da oração e da reflexão em comum, procurando um melhor conhecimento recíproco, uma maior confiança e amizade rumo à plena comunhão de que conservamos a firme esperança.
Asseguro-vos que a minha oração vos acompanha neste caminho fraterno de serviço, reconciliação e misericórdia, um caminho longo mas cheio de alegria e esperança.”.

***
Depois, na catedral de Bangui, antes da abertura da Porta Santa, proclamou para hoje esta cidade como “a capital espiritual do mundo”, explicitando que “o Ano Santo da Misericórdia chega adiantado a esta terra”, que “sofre, há diversos anos, a guerra e o ódio, a incompreensão, a falta de paz”. Porém, considerou “simbolizados nesta terra sofredora” todos os países do mundo inteiro que estão a passar pela cruz da guerra. Por isso, Bangui torna-se também “a capital espiritual da súplica pela misericórdia do Pai”. E acentua o começo do Ano Santo, “hoje, aqui nesta capital espiritual do mundo com a oração pela paz”, que se transcreve:
Todos nós pedimos paz, misericórdia, reconciliação, perdão, amor… para Bangui, para toda a República Centro-Africana, para o mundo inteiro. Para os países que sofrem a guerra, peçamos a paz; todos juntos, peçamos amor e paz. Todos juntos (em língua sango): «Doyé Siriri!» [todos repetem: «Doyé Siriri!»].

E, na homilia da Missa do I domingo do Advento, comentou a palavra do profeta, do apóstolo e de Cristo – que, retratando um ambiente parecido com o da República Centro-africana, aninha, acalenta e proclama a esperança certa de melhores dias de expressão prática da verdadeira justiça como valor supremo do direito por um mundo mais humano e fraterno. É a hora de levantar a cabeça e seguir clamando por reconciliação, perdão, amor e paz.

2015.11.29 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário