Para responder a esta pertinente questão, colocada
nalguns órgãos de comunicação social nos últimos dias, parece conveniente
começar por perceber o que é e como atua o autoproclamado
Estado Islâmico (EI), ou Daesh.
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O que é
e como atua o Estado Islâmico?
Trata-se duma força armada jiadista que ganhou
relevância com a entrada na guerra civil da Síria. Da designação inicial de
ISIS ou ISIL, passou a denominar-se de “Estado Islâmico” a 29 de junho de 2014,
após a nomeação de Abu Bakr al-Baghdadi
como seu califa. O também designado Daesh (designação que rejeita) visa impor a sua autoridade político-religiosa sobre
os muçulmanos de todo o mundo e tomar a região do Leste (Israel,
Líbano, Síria, Iraque e Jordânia).
As potências ocidentais têm como “organização
terrorista” o EI que presentemente controla grande parte dos territórios da Síria
e do Iraque e cujos corifeus, ao apoderarem-se duma localidade, penduram a
bandeira negra no topo do prédio mais elevado e não hesitam em destruir todo o
património que não condiga com as suas posições religiosas, por mais ancestral
e valioso que seja.
Esta força armada, a par de órgãos, estruturas e
funções próprias de Estado (ministérios, erário, impostos, escolha de moeda, exército…), tem caraterísticas de não Estado, atuando em rede,
vivendo em semiclandestinidade e utilizando sobretudo as redes sociais. Sabe-se
onde atuou, mas não se sabe onde vai ou pretende atuar. Recruta os seus agentes
nos territórios onde atua e naqueles aonde pensa estender a sua atuação, ali
fazendo residir alguns dos seus elementos. Apesar de os seus objetivos serem
publicamente enunciados de forma genérica, as suas ações de guerra não são
declaradas previamente, mas reivindicadas a
posteriori. Sendo inicialmente o EI financiado por milionários árabes, atualmente
autofinancia-se através dos lucros do petróleo e do gás (provenientes
das áreas conquistadas), dos
impostos e do dinheiro proveniente dos raptos de cidadãos ocidentais. Os
resgates de raptados são pagos ou pelas respetivas famílias ou, de modo
oficioso, por alguns governos. Por outro lado, ofensivas como a do Iraque têm
sido bastante lucrativas para o EI, já que acede ao controlo dos dinheiros
depositados em bancos de localidades invadidas, o que possibilita a compra de
armamento cada vez mais sofisticado.
Dos elementos recrutados em diversos países, o maior
número é proveniente de França, vindo logo a seguir o Reino Unido. Depois, Bélgica,
Alemanha, Holanda, Estados Unidos, Espanha, Dinamarca, Suécia, Canadá, Áustria,
Itália, Noruega, Finlândia e Portugal são os principais países de origem dos
guerrilheiros ocidentais. Mas há também russos e albaneses. O resto do contingente
é liderado pelos árabes, tunisinos e marroquinos, embora também tenham provindo
alguns da Austrália e da China. Muitos jovens radicais no EI são filhos de
famílias de classe média sem problemas sociais ou financeiros, com estudos
superiores e sem problemas com a Justiça. Porém, a maioria vive em conflito
constante entre os valores ocidentais, que rejeitam, e os dogmas extremistas do
Islão, que são aliciantes. Por isso, viajam de avião até à Turquia ou Bulgária,
donde seguem de automóvel ou a pé até um país só conhecido por notícias
televisivas.
A sua atuação tem dado azo a centenas de denúncias de
violação dos direitos humanos, que visam os guerrilheiros do EI, de que
ressaltam como mais comuns: a decapitação de soldados e civis e a violação e
exploração sexual de mulheres. Os habitantes em zonas por eles tomadas que se
recusem a viver sob as suas leis sofrem torturas, mutilações e mesmo a
condenação à morte. Os seus agentes são especialmente violentos contra xiitas,
yazidis e cristãos. Segundo as estatísticas mais brandas, só em 2014 mataram
mais de 20 mil pessoas.
As atrocidades relatadas pelas vítimas incluem amputações
e execuções na praça pública aos que desobedecem à sharia ou violações de mulheres das minorias étnicas que resistem às
ordens dos soldados (mujahedines) sob o comando de Abu
Bakr al-Baghdadi. Muitos têm pouco mais de 20 anos, mas são já veteranos de
guerra no Iraque, com largo currículo de sequestros, torturas e homicídios. A
escalada de violência atinge níveis inéditos. Há execuções, em simultâneo, de
centenas de pessoas e foram descobertas valas comuns cheias de corpos de homens
de tribos que o EI tinha ocupado, tendo as vítimas sido mortas com tiros a
curta distância. Numa delas, os jiadistas tinham intimado os homens a deixarem
as suas aldeias e seguirem para outro local, prometendo-lhes mentirosamente uma passagem segura. Todos foram
raptados e mortos.
Para adensar o clima de medo e terror, uma das táticas
usadas é a de postar na Internet dezenas de vídeos de decapitações infligidas
aos soldados inimigos e reféns ocidentais. Usam o Youtube, o Facebook ou o
Twitter como fonte de propaganda e angariação de pessoas e fundos. Nas redes
sociais, partilham imagens de cabeças dos inimigos que servem de bola em
partidas de futebol. “Quem não obedece
morre” é o lema importado das guerras medievais. Alguns portugueses
entraram neste jogo e não se coíbem de fazer ‘likes’ ou de partilhar fotos e
vídeos.
A poderosa complexidade e eficácia da máquina de
propaganda do EI diferem radicalmente da do amadorismo dos vídeos da Al-Qaeda da década de 90. A esmagadora
maioria dos seus vídeos é produzida e difundida pelo Al Hayat Media Center, criado no verão de 2014 pelo Al-Itisam Establishment for Media Production,
o gabinete oficial de propaganda dos jiadistas. Nos produtos de recrutamento
mais recentes, foram produzidos vídeos, panfletos e até uma revista em inglês.
Os analistas consideram unanimemente que por trás desta máquina bem oleada há
vários especialistas em comunicação e com currículos nas áreas de vídeo,
jornalismo ou webdesign. Nas imagens
das decapitações de soldados sírios e de reféns ocidentais é visível alguma da
estética mais moderna made in MTV: slow motions, bandas sonoras dramáticas
e todo o tipo de pós-produções, incluindo o som de batimentos cardíacos e
respirações ofegantes sobre as imagens da carnificina.
Só nos primeiros 10 meses de 2014, foram detidas, no
Reino Unido, 218 pessoas ligadas a atos terroristas. Foram condenadas 16 depois
do regresso da Síria. E a polícia britânica contabilizava 66 jovens dados como
desaparecidos pelas famílias por terem viajado para a Síria a juntarem-se ao EI.
Crê-se que entrem todas as semanas cerca de 50 pessoas em programas de combate
à radicalização.
Também o gabinete do secretário-geral do SIRP (Sistema de Informações da República Portuguesa) confirmou, em abril de 2014, a referenciação de
alguns cidadãos nacionais que integram esses grupos de combatentes”, apoiantes
da causa na Síria. Alguns detinham um estatuto de residência temporária noutros
países europeus, embora apresentem conexões familiares e sociais ao território
nacional. Em setembro, fonte próxima das nossas ‘secretas’ revelou que dois
radicais estiveram de novo em Portugal. Não foram presos nem impedidos de
viajar para a Síria ou para o Iraque. Ao invés do que acontece noutros países,
a lei de Portugal não permite a apreensão de passaportes nem proíbe o regresso
dos jiadistas ao EI.
***
O que está a mudar?
Ao perder posições na Síria e no Iraque, bem como ao
perceber as dificuldades em financiamento, o califado estará agora apostado em
atacar o ocidente. Os seus ataques mais recentes – não só os do dia 13 em
Paris, mas também o do dia 12 no Líbano e a queda de um Airbus russo no Egito
em outubro, sem esquecer os ataques de junho na Tunísia – dão a entender que o
EI está a alterar a sua estratégia, como assegura o Wall Street Journal. O Estado Islâmico não se concentra apenas na
edificação dum califado no Iraque e na Síria, mas está apostado, mais do que
nunca, no ataque (militar, mas não só) ao ocidente ou a países, ainda que não ocidentais, que com ele se
relacionem.
Há mais uma outra razão que explica esta mudança de
estratégia e que está relacionada com a dificuldade de financiamento: na ausência
de financiamento do EI para pagar aos combatentes, há deserções; e não havendo
dinheiro, não há com o que combater, pois o armamento e as munições de guerra
vão-se esgotando aos poucos. Tal situação de deserção a acompanhar a falta de
financiamento verificou-se com as mais recentes derrotas do autoproclamado
Estado Islâmico: na Síria, quando as forças leais ao regime de Assad quebraram
o cerco do EI à base aérea de Kweiras, no noroeste do país; e no Iraque, quando
as forças curdas retomaram o controlo da cidade de Sinjar, que o EI havia
conquistado justamente há um ano.
Portanto, os ataques em Paris foram os mais recentes
de uma horda de terror fora dos conhecidos territórios do autoproclamado EI. Em
todos os atentados, o EI, mais cedo ou mais tarde, acaba por assumir a
responsabilidade dos mesmos. Foi o que sucedeu no dia 13, quando em
comunicado afirmava que os ataques tinham sido perpetrados por “oito
irmãos que carregavam cintos de explosivos e armas, e que atingiram o coração
da capital francesa”, justificando os factos como sendo de retaliação pela
recente intervenção área francesa que “atacou os muçulmanos do califado”. O
presidente francês, François Hollande, no dia 14, não só confirmou o número de
bombistas suicidas e atiradores que o EI avançou, como acrescentou que os
ataques foram “organizados e planeados desde fora.”
Todavia, o comunicado do EI contém uma informação que
suscita dúvidas sobre se o ataque fora isolado (ainda que com relação ao califado
sírio-iraquiano) ou concertado
e planeado há meses. O comunicado menciona ataques a três bairros parisienses:
10.º, 11.º e 18.º. E a verdade é que não houve nenhum atentado perpetrado no
18.º, o que levou peritos em contraterrorismo a crer que ou esse ataque,
tal como os outros dois, fora planeado a partir do califado, mas terá
falhado, ou o EI assumiu os atentados como tendo sido planeados por si, mas
estes tiveram origem em células do grupo terrorista, não tendo
sido planeados pelos seus líderes. Terá sido o assumir de
responsabilidades a posteriori, mas com um erro à mistura. Não
obstante, uma coisa se pode inferir: o EI, cada vez mais encurralado nos territórios
que controla, virou a ocidente.
É certo que o ataque de Beirut, segundo um outro
comunicado do EI a reivindicá-lo, não foi tanto um ataque ao ocidente, mas está
relacionado com os combates na Síria, pois o alvo principal era o Hezbollah, a organização política e
paramilitar xiita, sediada no Líbano, que participou na guerra civil
síria aliada ao governo de Bashar al-Assad. E o ataque de 31 de outubro,
que derrubou – devido à explosão de uma bomba a bordo – uma aeronave russa na
Península do Sinai, no Egito, também reivindicado pelo EI, surgiu numa
altura em que a aviação russa vinha bombardeando dia após dia posições do
EI nas regiões de Alepo e Hama, a norte da Síria. Se bem que o ramo
egípcio do EI nunca realizara um ataque do género, menos ainda tendo a Rússia
como alvo, este constitui uma forma de resposta aos ataques que visavam o
enfraquecimento do EI na região e a abertura da via a uma ofensiva militar em
larga escala das forças de Bashar al-Assad, secundada por milhares de militares
do Irão.
No entanto, ainda que menos recentes, os atentados do
EI no museu do Bardo, em Tunes, e em dois resorts na costa
oriental tunisiana, frequentados sobretudo por turistas europeus, maioritariamente
alemães e franceses, configuram sintomas consistentes da viragem do EI a
ocidente. Por outro lado, o comunicado através do qual o EI reivindicava os
atentados do passado dia 13 advertia que este ataque seria o primeiro de uma
“tempestade” e um “aviso”.
Enfim, o EI atua através de ações planeadas no
território onde domina efetivamente, através de ações planeadas e executadas
por comandos seus que se deslocam em missão a lugares-alvo e através dos seus
agentes em diáspora em países onde reina a convivência em liberdade – mas
sempre em vista de objetivos centralmente definidos.
***
Como responder?
José Milhazes, Será
que o terrorismo vai vencer? E, depois, interpela as principais potências: Quantos atentados terão de acontecer ainda
mais para que os Estados Unidos, União Europeia, Rússia, China, se juntem e
tomem medidas concretas e coordenadas para pôr fim à maior praga do século XXI?
Refere o
jornalista que perante as catástrofes terroristas, os dirigentes dizem que “é preciso renovar esforços”, “aumentar as medidas de segurança” e “impedir novos atentados”. Porém, passado
pouco, a desgraça volta, uma vez que “não se resolve o problema de forma séria
e profunda”. Sugere Milhazes que, tratando-se de um problema global, “é
necessário tomar medidas à escala global que tentem dar início à solução do
problema”.
Não se trata,
a meu ver, de não regressar ao estado de normalidade ou de diminuir as
condições de liberdade de movimentos, bem como de vetar a vinda de refugiados
ou de migrantes. Tudo isto seriam atitudes que o EI gostaria de ver da parte
dos países atingidos, pois a sua intenção é provocar a instabilidade e daí
auferir vantagens a vários níveis. Mas importa reforçar os meios de informação
e de controlo sobre pessoas e objetos suspeitos, bem como clarificar o
significado da abolição de “fronteiras”. Erradamente, alguns países aderentes
ao Tratado de Schengen destruíram ou abandonaram os postos fronteiriços
terrestres. Parece-me que a livre circulação de pessoas e bens não impediria o
controlo de passagem, mas o levantamento de restrições de caráter pecuniário,
logístico ou de autorização da parte das entidades policiais para entrar num
país ou dele sair.
Em relação aos
recentes atentados, é necessário passar à neutralização do EI através de vários
canais, sendo o principal a criação de uma ampla coligação internacional que se
incida a sério na solução dos problemas da Síria, Iraque e Médio Oriente em
geral. E, se como quer Milhazes, o EI se assemelha, pelas suas ideias e ações, ao
nazismo, impõe-se fazer hoje como fizeram, em 1941, Churchill, Roosevelt e
Estaline, que “souberam pôr de parte as suas ambições políticas pessoais para
enfrentar um adversário desumano perigoso”. Têm os serviços secretos dos vários
países que se concentrar no combate ao terrorismo em vez de andarem a escutar os
seus dirigentes e os alheios. Depois, além do oleamento das estruturas militares
e securitárias, fundamentais para travar o alastramento do conflito, urge secar
as fontes de financiamento dos grupos terroristas, designadamente fazer cessar
a venda de armas e outros equipamentos bélicos ao EI, bem como barrar a compra
ilegal de petróleo – isto por parte de privados e por parte dos países. Têm a
ganância económica e a sede de poder deixar de cegar os dirigentes mundiais.
É ainda
crucial que se eliminem as causas (ou que não se venham a repetir) que levaram ao aparecimento do EI e de outros grupos
terroristas, sendo uma delas o multíplice apoio aos combates às diversas
ditaduras sem analisar a índole dos grupos opositores a elas e sem medir as
consequências. Por outro lado, já que não foi possível prever atempadamente a
extensão da onda de refugiados, não se podem protelar as medidas de resposta à
situação de crise e as medidas preventivas para evitar o crescimento do número
de desenraizados.
***
Também
atribuir pura e simplesmente esta onda de barbárie à religião islâmica parece
uma postura injusta. Alegam alguns que o Corão contém incitamento à violência e
à intolerância. Poderiam de igual modo atentar no facto de a Bíblia, se
interpretada sempre ao pé da letra, poder servir, como já serviu ao longo da
História, de legitimação a grandes enormidades.
A questão é
passível de resolução com base na reinterpretação de textos que foram escritos
há já muitos séculos e em consonância com as vicissitudes de contexto, devendo
centrar-se a atenção no essencial. Neste aspeto, o cristianismo hoje propõe a
interpretação do Antigo Testamento à luz da novidade da pregação de Jesus
Cristo e da pregação apostólica e patrística.
Finalmente, é
preciso sublinhar que os recentes atentados não resultam de qualquer humorismo
irreverente como os do Charlie Hebdo.
E, se a liberdade de expressão tem de se autolimitar pelo respeito pelas
pessoas e por suas crenças, também não me parece justo pretender “não permitir
que os imãs muçulmanos radicais tenham a possibilidade de pregar, com todas as
condições e conforto, ideias odiosas nas mesquitas de Paris, Londres e por aí
adiante”. Isso não é viável e, se o fosse, compaginaria a instauração do Estado
policial pidesco.
Devem é os
poderes estar com atenção a todas as tentativas de crime e a todos os crimes
consumados. E os cidadãos, considerados individualmente ou integrados em suas
estruturas representativas, têm uma palavra a dizer. Quanto ao mais, atenhamo-nos
ao aforismo atribuído a Voltaire “Posso
não concordar com o que tu dizes, mas defenderei até a morte o teu direito de
dizê-lo”.
2015.11.15 – Louro de Carvalho
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