domingo, 15 de novembro de 2015

O Estado Islâmico muda estratégia militar?

Para responder a esta pertinente questão, colocada nalguns órgãos de comunicação social nos últimos dias, parece conveniente começar por perceber o que é e como atua o autoproclamado 
Estado Islâmico (EI), ou Daesh.
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O que é e como atua o Estado Islâmico?
Trata-se duma força armada jiadista que ganhou relevância com a entrada na guerra civil da Síria. Da designação inicial de ISIS ou ISIL, passou a denominar-se de “Estado Islâmico” a 29 de junho de 2014, após a nomeação de Abu Bakr al-Baghdadi como seu califa. O também designado Daesh (designação que rejeita) visa impor a sua autoridade político-religiosa sobre os muçulmanos de todo o mundo e tomar a região do Leste (Israel, Líbano, Síria, Iraque e Jordânia).
As potências ocidentais têm como “organização terrorista” o EI que presentemente controla grande parte dos territórios da Síria e do Iraque e cujos corifeus, ao apoderarem-se duma localidade, penduram a bandeira negra no topo do prédio mais elevado e não hesitam em destruir todo o património que não condiga com as suas posições religiosas, por mais ancestral e valioso que seja.
Esta força armada, a par de órgãos, estruturas e funções próprias de Estado (ministérios, erário, impostos, escolha de moeda, exército…), tem caraterísticas de não Estado, atuando em rede, vivendo em semiclandestinidade e utilizando sobretudo as redes sociais. Sabe-se onde atuou, mas não se sabe onde vai ou pretende atuar. Recruta os seus agentes nos territórios onde atua e naqueles aonde pensa estender a sua atuação, ali fazendo residir alguns dos seus elementos. Apesar de os seus objetivos serem publicamente enunciados de forma genérica, as suas ações de guerra não são declaradas previamente, mas reivindicadas a posteriori. Sendo inicialmente o EI financiado por milionários árabes, atualmente autofinancia-se através dos lucros do petróleo e do gás (provenientes das áreas conquistadas), dos impostos e do dinheiro proveniente dos raptos de cidadãos ocidentais. Os resgates de raptados são pagos ou pelas respetivas famílias ou, de modo oficioso, por alguns governos. Por outro lado, ofensivas como a do Iraque têm sido bastante lucrativas para o EI, já que acede ao controlo dos dinheiros depositados em bancos de localidades invadidas, o que possibilita a compra de armamento cada vez mais sofisticado.
Dos elementos recrutados em diversos países, o maior número é proveniente de França, vindo logo a seguir o Reino Unido. Depois, Bélgica, Alemanha, Holanda, Estados Unidos, Espanha, Dinamarca, Suécia, Canadá, Áustria, Itália, Noruega, Finlândia e Portugal são os principais países de origem dos guerrilheiros ocidentais. Mas há também russos e albaneses. O resto do contingente é liderado pelos árabes, tunisinos e marroquinos, embora também tenham provindo alguns da Austrália e da China. Muitos jovens radicais no EI são filhos de famílias de classe média sem problemas sociais ou financeiros, com estudos superiores e sem problemas com a Justiça. Porém, a maioria vive em conflito constante entre os valores ocidentais, que rejeitam, e os dogmas extremistas do Islão, que são aliciantes. Por isso, viajam de avião até à Turquia ou Bulgária, donde seguem de automóvel ou a pé até um país só conhecido por notícias televisivas.
A sua atuação tem dado azo a centenas de denúncias de violação dos direitos humanos, que visam os guerrilheiros do EI, de que ressaltam como mais comuns: a decapitação de soldados e civis e a violação e exploração sexual de mulheres. Os habitantes em zonas por eles tomadas que se recusem a viver sob as suas leis sofrem torturas, mutilações e mesmo a condenação à morte. Os seus agentes são especialmente violentos contra xiitas, yazidis e cristãos. Segundo as estatísticas mais brandas, só em 2014 mataram mais de 20 mil pessoas.
As atrocidades relatadas pelas vítimas incluem amputações e execuções na praça pública aos que desobedecem à sharia ou violações de mulheres das minorias étnicas que resistem às ordens dos soldados (mujahedines) sob o comando de Abu Bakr al-Baghdadi. Muitos têm pouco mais de 20 anos, mas são já veteranos de guerra no Iraque, com largo currículo de sequestros, torturas e homicídios. A escalada de violência atinge níveis inéditos. Há execuções, em simultâneo, de centenas de pessoas e foram descobertas valas comuns cheias de corpos de homens de tribos que o EI tinha ocupado, tendo as vítimas sido mortas com tiros a curta distância. Numa delas, os jiadistas tinham intimado os homens a deixarem as suas aldeias e seguirem para outro local, prometendo-lhes mentirosamente uma passagem segura. Todos foram raptados e mortos.
Para adensar o clima de medo e terror, uma das táticas usadas é a de postar na Internet dezenas de vídeos de decapitações infligidas aos soldados inimigos e reféns ocidentais. Usam o Youtube, o Facebook ou o Twitter como fonte de propaganda e angariação de pessoas e fundos. Nas redes sociais, partilham imagens de cabeças dos inimigos que servem de bola em partidas de futebol. “Quem não obedece morre” é o lema importado das guerras medievais. Alguns portugueses entraram neste jogo e não se coíbem de fazer ‘likes’ ou de partilhar fotos e vídeos.
A poderosa complexidade e eficácia da máquina de propaganda do EI diferem radicalmente da do amadorismo dos vídeos da Al-Qaeda da década de 90. A esmagadora maioria dos seus vídeos é produzida e difundida pelo Al Hayat Media Center, criado no verão de 2014 pelo Al-Itisam Establishment for Media Production, o gabinete oficial de propaganda dos jiadistas. Nos produtos de recrutamento mais recentes, foram produzidos vídeos, panfletos e até uma revista em inglês. Os analistas consideram unanimemente que por trás desta máquina bem oleada há vários especialistas em comunicação e com currículos nas áreas de vídeo, jornalismo ou webdesign. Nas imagens das decapitações de soldados sírios e de reféns ocidentais é visível alguma da estética mais moderna made in MTV: slow motions, bandas sonoras dramáticas e todo o tipo de pós-produções, incluindo o som de batimentos cardíacos e respirações ofegantes sobre as imagens da carnificina.
Só nos primeiros 10 meses de 2014, foram detidas, no Reino Unido, 218 pessoas ligadas a atos terroristas. Foram condenadas 16 depois do regresso da Síria. E a polícia britânica contabilizava 66 jovens dados como desaparecidos pelas famílias por terem viajado para a Síria a juntarem-se ao EI. Crê-se que entrem todas as semanas cerca de 50 pessoas em programas de combate à radicalização.
Também o gabinete do secretário-geral do SIRP (Sistema de Informações da República Portuguesa) confirmou, em abril de 2014, a referenciação de alguns cidadãos nacionais que integram esses grupos de combatentes”, apoiantes da causa na Síria. Alguns detinham um estatuto de residência temporária noutros países europeus, embora apresentem conexões familiares e sociais ao território nacional. Em setembro, fonte próxima das nossas ‘secretas’ revelou que dois radicais estiveram de novo em Portugal. Não foram presos nem impedidos de viajar para a Síria ou para o Iraque. Ao invés do que acontece noutros países, a lei de Portugal não permite a apreensão de passaportes nem proíbe o regresso dos jiadistas ao EI.
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O que está a mudar?
Ao perder posições na Síria e no Iraque, bem como ao perceber as dificuldades em financiamento, o califado estará agora apostado em atacar o ocidente. Os seus ataques mais recentes – não só os do dia 13 em Paris, mas também o do dia 12 no Líbano e a queda de um Airbus russo no Egito em outubro, sem esquecer os ataques de junho na Tunísia – dão a entender que o EI está a alterar a sua estratégia, como assegura o Wall Street Journal. O Estado Islâmico não se concentra apenas na edificação dum califado no Iraque e na Síria, mas está apostado, mais do que nunca, no ataque (militar, mas não só) ao ocidente ou a países, ainda que não ocidentais, que com ele se relacionem.
Há mais uma outra razão que explica esta mudança de estratégia e que está relacionada com a dificuldade de financiamento: na ausência de financiamento do EI para pagar aos combatentes, há deserções; e não havendo dinheiro, não há com o que combater, pois o armamento e as munições de guerra vão-se esgotando aos poucos. Tal situação de deserção a acompanhar a falta de financiamento verificou-se com as mais recentes derrotas do autoproclamado Estado Islâmico: na Síria, quando as forças leais ao regime de Assad quebraram o cerco do EI à base aérea de Kweiras, no noroeste do país; e no Iraque, quando as forças curdas retomaram o controlo da cidade de Sinjar, que o EI havia conquistado justamente há um ano.
Portanto, os ataques em Paris foram os mais recentes de uma horda de terror fora dos conhecidos territórios do autoproclamado EI. Em todos os atentados, o EI, mais cedo ou mais tarde, acaba por assumir a responsabilidade dos mesmos. Foi o que sucedeu no dia 13, quando em comunicado afirmava que os ataques tinham sido perpetrados por “oito irmãos que carregavam cintos de explosivos e armas, e que atingiram o coração da capital francesa”, justificando os factos como sendo de retaliação pela recente intervenção área francesa que “atacou os muçulmanos do califado”. O presidente francês, François Hollande, no dia 14, não só confirmou o número de bombistas suicidas e atiradores que o EI avançou, como acrescentou que os ataques foram “organizados e planeados desde fora.”
Todavia, o comunicado do EI contém uma informação que suscita dúvidas sobre se o ataque fora isolado (ainda que com relação ao califado sírio-iraquiano) ou concertado e planeado há meses. O comunicado menciona ataques a três bairros parisienses: 10.º, 11.º e 18.º. E a verdade é que não houve nenhum atentado perpetrado no 18.º, o que levou peritos em contraterrorismo a crer que ou esse ataque, tal como os outros dois, fora planeado a partir do califado, mas terá falhado, ou o EI assumiu os atentados como tendo sido planeados por si, mas estes tiveram origem em células do grupo terrorista, não tendo sido planeados pelos seus líderes. Terá sido o assumir de responsabilidades a posteriori, mas com um erro à mistura. Não obstante, uma coisa se pode inferir: o EI, cada vez mais encurralado nos territórios que controla, virou a ocidente.
É certo que o ataque de Beirut, segundo um outro comunicado do EI a reivindicá-lo, não foi tanto um ataque ao ocidente, mas está relacionado com os combates na Síria, pois o alvo principal era o Hezbollah, a organização política e paramilitar xiita, sediada no Líbano, que participou na guerra civil síria aliada ao governo de Bashar al-Assad. E o ataque de 31 de outubro, que derrubou – devido à explosão de uma bomba a bordo – uma aeronave russa na Península do Sinai, no Egito, também reivindicado pelo EI, surgiu numa altura em que a aviação russa vinha bombardeando dia após dia posições do EI nas regiões de Alepo e Hama, a norte da Síria. Se bem que o ramo egípcio do EI nunca realizara um ataque do género, menos ainda tendo a Rússia como alvo, este constitui uma forma de resposta aos ataques que visavam o enfraquecimento do EI na região e a abertura da via a uma ofensiva militar em larga escala das forças de Bashar al-Assad, secundada por milhares de militares do Irão.  
No entanto, ainda que menos recentes, os atentados do EI no museu do Bardo, em Tunes, e em dois resorts na costa oriental tunisiana, frequentados sobretudo por turistas europeus, maioritariamente alemães e franceses, configuram sintomas consistentes da viragem do EI a ocidente. Por outro lado, o comunicado através do qual o EI reivindicava os atentados do passado dia 13 advertia que este ataque seria o primeiro de uma “tempestade” e um “aviso”.
Enfim, o EI atua através de ações planeadas no território onde domina efetivamente, através de ações planeadas e executadas por comandos seus que se deslocam em missão a lugares-alvo e através dos seus agentes em diáspora em países onde reina a convivência em liberdade – mas sempre em vista de objetivos centralmente definidos.
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Como responder
José Milhazes, em seu artigo no Observador on line, interroga-se: Será que o terrorismo vai vencer? E, depois, interpela as principais potências: Quantos atentados terão de acontecer ainda mais para que os Estados Unidos, União Europeia, Rússia, China, se juntem e tomem medidas concretas e coordenadas para pôr fim à maior praga do século XXI?
Refere o jornalista que perante as catástrofes terroristas, os dirigentes dizem que “é preciso renovar esforços”, “aumentar as medidas de segurança” e “impedir novos atentados”. Porém, passado pouco, a desgraça volta, uma vez que “não se resolve o problema de forma séria e profunda”.  Sugere Milhazes que, tratando-se de um problema global, “é necessário tomar medidas à escala global que tentem dar início à solução do problema”.
Não se trata, a meu ver, de não regressar ao estado de normalidade ou de diminuir as condições de liberdade de movimentos, bem como de vetar a vinda de refugiados ou de migrantes. Tudo isto seriam atitudes que o EI gostaria de ver da parte dos países atingidos, pois a sua intenção é provocar a instabilidade e daí auferir vantagens a vários níveis. Mas importa reforçar os meios de informação e de controlo sobre pessoas e objetos suspeitos, bem como clarificar o significado da abolição de “fronteiras”. Erradamente, alguns países aderentes ao Tratado de Schengen destruíram ou abandonaram os postos fronteiriços terrestres. Parece-me que a livre circulação de pessoas e bens não impediria o controlo de passagem, mas o levantamento de restrições de caráter pecuniário, logístico ou de autorização da parte das entidades policiais para entrar num país ou dele sair.
Em relação aos recentes atentados, é necessário passar à neutralização do EI através de vários canais, sendo o principal a criação de uma ampla coligação internacional que se incida a sério na solução dos problemas da Síria, Iraque e Médio Oriente em geral. E, se como quer Milhazes, o EI se assemelha, pelas suas ideias e ações, ao nazismo, impõe-se fazer hoje como fizeram, em 1941, Churchill, Roosevelt e Estaline, que “souberam pôr de parte as suas ambições políticas pessoais para enfrentar um adversário desumano perigoso”. Têm os serviços secretos dos vários países que se concentrar no combate ao terrorismo em vez de andarem a escutar os seus dirigentes e os alheios. Depois, além do oleamento das estruturas militares e securitárias, fundamentais para travar o alastramento do conflito, urge secar as fontes de financiamento dos grupos terroristas, designadamente fazer cessar a venda de armas e outros equipamentos bélicos ao EI, bem como barrar a compra ilegal de petróleo – isto por parte de privados e por parte dos países. Têm a ganância económica e a sede de poder deixar de cegar os dirigentes mundiais.
É ainda crucial que se eliminem as causas (ou que não se venham a repetir) que levaram ao aparecimento do EI e de outros grupos terroristas, sendo uma delas o multíplice apoio aos combates às diversas ditaduras sem analisar a índole dos grupos opositores a elas e sem medir as consequências. Por outro lado, já que não foi possível prever atempadamente a extensão da onda de refugiados, não se podem protelar as medidas de resposta à situação de crise e as medidas preventivas para evitar o crescimento do número de desenraizados.
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Também atribuir pura e simplesmente esta onda de barbárie à religião islâmica parece uma postura injusta. Alegam alguns que o Corão contém incitamento à violência e à intolerância. Poderiam de igual modo atentar no facto de a Bíblia, se interpretada sempre ao pé da letra, poder servir, como já serviu ao longo da História, de legitimação a grandes enormidades.
A questão é passível de resolução com base na reinterpretação de textos que foram escritos há já muitos séculos e em consonância com as vicissitudes de contexto, devendo centrar-se a atenção no essencial. Neste aspeto, o cristianismo hoje propõe a interpretação do Antigo Testamento à luz da novidade da pregação de Jesus Cristo e da pregação apostólica e patrística.
Finalmente, é preciso sublinhar que os recentes atentados não resultam de qualquer humorismo irreverente como os do Charlie Hebdo. E, se a liberdade de expressão tem de se autolimitar pelo respeito pelas pessoas e por suas crenças, também não me parece justo pretender “não permitir que os imãs muçulmanos radicais tenham a possibilidade de pregar, com todas as condições e conforto, ideias odiosas nas mesquitas de Paris, Londres e por aí adiante”. Isso não é viável e, se o fosse, compaginaria a instauração do Estado policial pidesco.
Devem é os poderes estar com atenção a todas as tentativas de crime e a todos os crimes consumados. E os cidadãos, considerados individualmente ou integrados em suas estruturas representativas, têm uma palavra a dizer. Quanto ao mais, atenhamo-nos ao aforismo atribuído a Voltaire “Posso não concordar com o que tu dizes, mas defenderei até a morte o teu direito de dizê-lo”.

2015.11.15 – Louro de Carvalho

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