Por
ocasião do seu novo livro com o título provocatório de Romance
– que é, de acordo com as declarações do autor à agência Lusa, um poema sustentado numa estrutura narrativa, “um sonho”,
“com ecos da realidade presente”, como explicou o autor à agência Lusa – Hélder
Macedo deu uma entrevista ao n.º 1185 da revista Visão, onde ficaram espalmadas pertinentes ideias sobre a cultura
portuguesa.
O professor jubilado da cátedra de Camões no King’s College – poeta, ficcionista
e ensaísta – vai ser homenageado, a 28 de novembro, na Universidade de Oxford,
por ocasião do seu octogésimo aniversário, que perfará no dia 30.
Estamos a falar do especialista em Camões que, há anos, justificou de forma
brilhante a inclusão do nosso poeta épico-lírico no rol dos 10 portugueses mais
ilustres em toda a História nacional, no âmbito do concurso promovido pela RTP.
É um português que nasceu e passou a infância em África, fez estudos em Lisboa
e lecionou na Inglaterra e no Brasil. Todavia, reconhece que, apesar de a maior
parte da sua vida profissional ter decorrido em Inglaterra, não se sente
inglês: fala e escreve corrente e corretamente em inglês (falando inglês com sotaque luso), tem ensaios em inglês, mas é em português que pensa e é em português que
escreve a ficção e a poesia.
Da entrevista em causa, respigam-se, de forma livre, os aspetos mais
conexos com a literatura, a crítica literária e a cultura em geral, não
esquecendo, à partida, que o enunciado de Macedo tem subjacente a relação
intensa entre a literatura e a música – facto que me faz vir à memória um
excelente trabalho justamente subordinado ao título A relação entre a Literatura e a Música ao longo da História,
elaborado por um grupo de profissionalização em exercício, a que emprestei
modesta colaboração, na Escola Secundária de Emídio Navarro, em Viseu, no ano
letivo de 1982/1983.
***
A
propósito dos ecos que o seu novo livro transporta e regista de Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro, um
dos autores que estudou a preceito, o ensaísta opina que “os grandes autores
podem ser encontrados em tudo”.
A
este respeito, é de citar Álvaro de Campos em sua Ode Triunfal, de que se transcrevem dois versos: “E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e
das luzes elétricas / Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão”.
São versos em consonância com as afirmações do poeta octogenário, que assegura
que “as grandes e mais profundas experiências das nossas vidas provêm da arte, da
pintura, da música, da literatura”.
Sobre
a literatura, o poeta entrevistado refere que os “grandes monstros da
literatura renascentista” são portugueses – o que ele considera algo “de tão
extraordinário, único e específico”, reconhecendo que “a maioria dos países não
tem nada assim”.
Ainda
acerca da literatura, Macedo verbera a ideia, por “excessivamente
paternalista”, de que tem de se dar algo acessível para que as pessoas
entendam. Tal ideia configura a “lógica do coitadinho”, uma “forma de
autocracia”, nivelando por baixo – de que resulta “um elitismo mal-amado”, com
um “abaixamento do nível crítico e das expectativas”. É uma tendência assaz
presente nas escolas e nos jornais. Ora, diz o poeta e crítico de literatura
que a verdadeira elite quer que haja cada vez mais gente a gostar de Mozart (antonomásia
por produtores e cultores de arte elaborada).
Em
relação ao consumo português da literatura de tradição anglo-saxónica,
reconhece que, muitas vezes, se trata de livros de fácil leitura, “estimulantes
e interessantes” e que isto pode significar “que há mais pessoas a ler e que
pode levar a outros patamares literários”. No entanto, não se pode, segundo
ele, dar foro de “literatura criativa” a “formas abastardadas de literatura”.
Se é certo que sempre “houve escritores” maus a par de “escritores bons”,
populares e eruditos, também é certo que as coisas não se podem confundir e dar
por criativo aquilo que não passa de trivial e tautológico.
Sobre
o estado de apreço pela tradição literária em Portugal, lamenta que ela seja
objeto de “um crescente desconhecimento”, a ponto de praticamente se ignorar ou
pôr de lado tudo o que foi escrito para trás. E, neste aspeto, deve recordar-se
como a escola deixa cair obras e mais obras do cânone literário, acentuando-se
programaticamente, na disciplina de Português, a prevalência do texto não
literário sobre o texto literário – o que parece contrariar a velha convicção
de que se aprende a escrever lendo os bons autores. E o esforço feito através
das recentes intervenções programáticas não permitiu uma sólida descolagem do
trivial na educação para e pela língua portuguesa.
O
ex-titular de uma prestigiada cátedra de Camões em país estrangeiro não hesita
em declarar que “toda a literatura renascentista, por exemplo, Bernardim
Ribeiro, Sá de Miranda, o próprio Camões” é esquecida ou subvalorizada. O mesmo
se diga, a meu ver, da literatura do século XVIII (tanto
a literatura neoclássica como a pré-romântica).
E,
quando, sobre Camões, objetam que, ao menos, integra os programas escolares,
responde que isso não é suficiente, dado que “o nosso ensino é deficiente ao
nível secundário e universitário”. Depois, sugerindo haver “tanto que se pode
descobrir ainda em Camões”, vitupera por “apavorante” a tendência para
considerar a literatura portuguesa a partir de Fernando Pessoa, “como se não
tivesse havido vida antes” – o que, em meu entender, representa um alinhamento
subconsciente com a pretensão de Pessoa de ficar para posteridade como um
superCamões.
***
Entretanto,
Macedo também se pronuncia sobre a crítica literária. A este respeito, começa
por responder à provocação de que, ao mudar-se definitivamente para Londres, se
levantou a ideia da sua opção por Camões, génio da portugalidade, para ombrear
com Shakespeare, génio inglês. Embora nunca tivesse pensado nisso, admite a
legitimidade de tal pressuposto, declarando que “são ambos génios da mesma
época”, acrescentando, com uma certa graça, que “os génios aparecem, de quando
em quando nos países” e que isso “é um acidente, como ganhar a lotaria”.
Por
outro lado, atreve-se a revelar a sua convicção de que se pode medir a “cultura
média de um país pela mediocridade”. Porém, deve explicitar-se o significado do
termo “mediocridade” neste contexto. Não é a mediocridade de vida, marcada pela
indiferença ou pela faculta de ambição; é a assunção de que a virtude está na
moderação (in medio virtus) e não no excesso ou no defeito.
É o equilíbrio clássico, humanista ou renascentista – a divina proporção.
Assim, o insigne crítico de literatura entende que “quanto mais alto for o
nível de mediania” tanto “mais culta é a nação”. E especifica dizendo que “não
precisamos que todos sejam Mozarts e Camões”, pois, “uma boa orquestra não é
feita por grandes solistas, mas por músicos que sabem tocar juntos”.
Aplicando,
as ideias enunciadas ao país, constata não estarmos “numa boa fase”, pois,
“vivemos em tempos de prosa”, não obstante a existência de “alguns bons
sintomas” oriundos da “poesia feminina”. Esta é, segundo ele, uma poesia que
tem as seguintes caraterísticas: grande violência, explicitação poética,
erotismo, amor e perceção feminina da sensualidade. E, neste âmbito da produção
literária, regista “uma certe tendência para recetividade”, em que se insere,
segundo julgo, o consumo já mencionado da literatura de tradição
anglo-saxónica.
Ainda
sobre a crítica literária, refere que ela é hoje “muito mais pobre do que no
tempo de Salazar”, a ponto de lamentar a falta, “em jornais, revistas ou
suplementos”, de um assíduo e visível “acompanhamento do leitor, como o que se
fazia nos anos 70, com críticos literários” movidos pela militância do
trabalho. Afinal, a censura estimulava o espírito de contradição.
Ao
ser questionado sobre a viabilidade de alguém começar no Harry Potter ou nas 50
Sombras de Grey para acabar no Ulisses,
de Joyce, concorda com o caso do Harry
Potter, mas exclui as 50 Sombras de
Grey. Quanto ao primeiro, dá conta do seu encantamento ao observar as filas
dos de miúdos durante a noite para a compra de um livro; quanto ao segundo,
entende que não se pode comparar com o Harry
Potter, que “estimula imagens”, ao passo que 50 Sombras de Grey apresenta “apenas fantasias de dona de casa, não
assumidas e sem coragem”. E desafia quem pretende literatura erótica a que
recuse “a imitação barata” e leia “o original, o Sade”. Já sobre Tolkien, diz que
“é um bom autor” e refere que “a lógica dos vampiros corresponde a uma ideia de
amor-morte”, que “pode ser interessante” apenas como “metáfora” e não como
obsessão.
***
Quanto
à cultura portuguesa, o crítico e ficcionista defende o universalismo da nossa
cultura e acentua que “a expansão europeia começou por ser portuguesa” e que
“os portugueses são pluricontinentais”, possuem “a cultura da diferença, da
novidade, do encontro e da surpresa”. Mas, ao invés dos outros países europeus,
por falta de estruturas, o país não criou “uma classe média, nem riqueza local”,
nunca investiu “localmente” e, apesar da possessão de colónias durante cerca de
500 anos, “continuamos a ser o país mais pobre da Europa”. A exploração do
colonialismo, se trouxe benefícios, não os fez repercutir na qualidade de vida
de Portugal.
Mais:
apesar de termos, desde a Idade Média, a literatura mais antiga da Europa,
entrámos no século XIX com 80% de analfabetos. E o poeta afirma que “o
investimento na educação e na cultura” constitui “uma das coisas mais
importantes” da pós-revolução abrilina.
***
Passada
uma quarentena, acusa-se o fenómeno de regressão cultural, concomitante com a
degradação económica. O ensaísta poeta adverte que “é mais fácil destruir do
que voltar a construir” e que “vai levar muito tempo a criar cultura”. E,
enquanto lamenta o facto de, “nesta confluência de governo e de Presidente” não
ter havido “cuidado com a qualidade de vida e com a cultura dos portugueses”,
apresenta o exemplo de Obama, que logrou “fazer simultaneamente uma política de
contenção e de desenvolvimento”.
Por
mim, penso que o segredo está na escola, sobretudo a escola pública, que eduque
pelos valores, com os valores e para os valores. Talvez seja conveniente
repensar currículos, programas, organização, funcionamento e avaliação – e
sobretudo torná-la pedagógica e despi-la da judicialização nefasta, bem como da
preponderância dos clientes sobre o desígnio educacional.
2015.11.25 –
Louro de Carvalho
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