quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Hélder Macedo e a Cultura Portuguesa

Por ocasião do seu novo livro com o título provocatório de Romance – que é, de acordo com as declarações do autor à agência Lusa, um poema sustentado numa estrutura narrativa, “um sonho”, “com ecos da realidade presente”, como explicou o autor à agência Lusa – Hélder Macedo deu uma entrevista ao n.º 1185 da revista Visão, onde ficaram espalmadas pertinentes ideias sobre a cultura portuguesa.
O professor jubilado da cátedra de Camões no King’s College – poeta, ficcionista e ensaísta – vai ser homenageado, a 28 de novembro, na Universidade de Oxford, por ocasião do seu octogésimo aniversário, que perfará no dia 30.
Estamos a falar do especialista em Camões que, há anos, justificou de forma brilhante a inclusão do nosso poeta épico-lírico no rol dos 10 portugueses mais ilustres em toda a História nacional, no âmbito do concurso promovido pela RTP. É um português que nasceu e passou a infância em África, fez estudos em Lisboa e lecionou na Inglaterra e no Brasil. Todavia, reconhece que, apesar de a maior parte da sua vida profissional ter decorrido em Inglaterra, não se sente inglês: fala e escreve corrente e corretamente em inglês (falando inglês com sotaque luso), tem ensaios em inglês, mas é em português que pensa e é em português que escreve a ficção e a poesia.
Da entrevista em causa, respigam-se, de forma livre, os aspetos mais conexos com a literatura, a crítica literária e a cultura em geral, não esquecendo, à partida, que o enunciado de Macedo tem subjacente a relação intensa entre a literatura e a música – facto que me faz vir à memória um excelente trabalho justamente subordinado ao título A relação entre a Literatura e a Música ao longo da História, elaborado por um grupo de profissionalização em exercício, a que emprestei modesta colaboração, na Escola Secundária de Emídio Navarro, em Viseu, no ano letivo de 1982/1983.
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A propósito dos ecos que o seu novo livro transporta e regista de Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro, um dos autores que estudou a preceito, o ensaísta opina que “os grandes autores podem ser encontrados em tudo”.
A este respeito, é de citar Álvaro de Campos em sua Ode Triunfal, de que se transcrevem dois versos: “E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes elétricas / Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão”. São versos em consonância com as afirmações do poeta octogenário, que assegura que “as grandes e mais profundas experiências das nossas vidas provêm da arte, da pintura, da música, da literatura”.
Sobre a literatura, o poeta entrevistado refere que os “grandes monstros da literatura renascentista” são portugueses – o que ele considera algo “de tão extraordinário, único e específico”, reconhecendo que “a maioria dos países não tem nada assim”.
Ainda acerca da literatura, Macedo verbera a ideia, por “excessivamente paternalista”, de que tem de se dar algo acessível para que as pessoas entendam. Tal ideia configura a “lógica do coitadinho”, uma “forma de autocracia”, nivelando por baixo – de que resulta “um elitismo mal-amado”, com um “abaixamento do nível crítico e das expectativas”. É uma tendência assaz presente nas escolas e nos jornais. Ora, diz o poeta e crítico de literatura que a verdadeira elite quer que haja cada vez mais gente a gostar de Mozart (antonomásia por produtores e cultores de arte elaborada).
Em relação ao consumo português da literatura de tradição anglo-saxónica, reconhece que, muitas vezes, se trata de livros de fácil leitura, “estimulantes e interessantes” e que isto pode significar “que há mais pessoas a ler e que pode levar a outros patamares literários”. No entanto, não se pode, segundo ele, dar foro de “literatura criativa” a “formas abastardadas de literatura”. Se é certo que sempre “houve escritores” maus a par de “escritores bons”, populares e eruditos, também é certo que as coisas não se podem confundir e dar por criativo aquilo que não passa de trivial e tautológico.
Sobre o estado de apreço pela tradição literária em Portugal, lamenta que ela seja objeto de “um crescente desconhecimento”, a ponto de praticamente se ignorar ou pôr de lado tudo o que foi escrito para trás. E, neste aspeto, deve recordar-se como a escola deixa cair obras e mais obras do cânone literário, acentuando-se programaticamente, na disciplina de Português, a prevalência do texto não literário sobre o texto literário – o que parece contrariar a velha convicção de que se aprende a escrever lendo os bons autores. E o esforço feito através das recentes intervenções programáticas não permitiu uma sólida descolagem do trivial na educação para e pela língua portuguesa.
O ex-titular de uma prestigiada cátedra de Camões em país estrangeiro não hesita em declarar que “toda a literatura renascentista, por exemplo, Bernardim Ribeiro, Sá de Miranda, o próprio Camões” é esquecida ou subvalorizada. O mesmo se diga, a meu ver, da literatura do século XVIII (tanto a literatura neoclássica como a pré-romântica).
E, quando, sobre Camões, objetam que, ao menos, integra os programas escolares, responde que isso não é suficiente, dado que “o nosso ensino é deficiente ao nível secundário e universitário”. Depois, sugerindo haver “tanto que se pode descobrir ainda em Camões”, vitupera por “apavorante” a tendência para considerar a literatura portuguesa a partir de Fernando Pessoa, “como se não tivesse havido vida antes” – o que, em meu entender, representa um alinhamento subconsciente com a pretensão de Pessoa de ficar para posteridade como um superCamões.
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Entretanto, Macedo também se pronuncia sobre a crítica literária. A este respeito, começa por responder à provocação de que, ao mudar-se definitivamente para Londres, se levantou a ideia da sua opção por Camões, génio da portugalidade, para ombrear com Shakespeare, génio inglês. Embora nunca tivesse pensado nisso, admite a legitimidade de tal pressuposto, declarando que “são ambos génios da mesma época”, acrescentando, com uma certa graça, que “os génios aparecem, de quando em quando nos países” e que isso “é um acidente, como ganhar a lotaria”.
Por outro lado, atreve-se a revelar a sua convicção de que se pode medir a “cultura média de um país pela mediocridade”. Porém, deve explicitar-se o significado do termo “mediocridade” neste contexto. Não é a mediocridade de vida, marcada pela indiferença ou pela faculta de ambição; é a assunção de que a virtude está na moderação (in medio virtus) e não no excesso ou no defeito. É o equilíbrio clássico, humanista ou renascentista – a divina proporção. Assim, o insigne crítico de literatura entende que “quanto mais alto for o nível de mediania” tanto “mais culta é a nação”. E especifica dizendo que “não precisamos que todos sejam Mozarts e Camões”, pois, “uma boa orquestra não é feita por grandes solistas, mas por músicos que sabem tocar juntos”.
Aplicando, as ideias enunciadas ao país, constata não estarmos “numa boa fase”, pois, “vivemos em tempos de prosa”, não obstante a existência de “alguns bons sintomas” oriundos da “poesia feminina”. Esta é, segundo ele, uma poesia que tem as seguintes caraterísticas: grande violência, explicitação poética, erotismo, amor e perceção feminina da sensualidade. E, neste âmbito da produção literária, regista “uma certe tendência para recetividade”, em que se insere, segundo julgo, o consumo já mencionado da literatura de tradição anglo-saxónica.
Ainda sobre a crítica literária, refere que ela é hoje “muito mais pobre do que no tempo de Salazar”, a ponto de lamentar a falta, “em jornais, revistas ou suplementos”, de um assíduo e visível “acompanhamento do leitor, como o que se fazia nos anos 70, com críticos literários” movidos pela militância do trabalho. Afinal, a censura estimulava o espírito de contradição.
Ao ser questionado sobre a viabilidade de alguém começar no Harry Potter ou nas 50 Sombras de Grey para acabar no Ulisses, de Joyce, concorda com o caso do Harry Potter, mas exclui as 50 Sombras de Grey. Quanto ao primeiro, dá conta do seu encantamento ao observar as filas dos de miúdos durante a noite para a compra de um livro; quanto ao segundo, entende que não se pode comparar com o Harry Potter, que “estimula imagens”, ao passo que 50 Sombras de Grey apresenta “apenas fantasias de dona de casa, não assumidas e sem coragem”. E desafia quem pretende literatura erótica a que recuse “a imitação barata” e leia “o original, o Sade”. Já sobre Tolkien, diz que “é um bom autor” e refere que “a lógica dos vampiros corresponde a uma ideia de amor-morte”, que “pode ser interessante” apenas como “metáfora” e não como obsessão.
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Quanto à cultura portuguesa, o crítico e ficcionista defende o universalismo da nossa cultura e acentua que “a expansão europeia começou por ser portuguesa” e que “os portugueses são pluricontinentais”, possuem “a cultura da diferença, da novidade, do encontro e da surpresa”. Mas, ao invés dos outros países europeus, por falta de estruturas, o país não criou “uma classe média, nem riqueza local”, nunca investiu “localmente” e, apesar da possessão de colónias durante cerca de 500 anos, “continuamos a ser o país mais pobre da Europa”. A exploração do colonialismo, se trouxe benefícios, não os fez repercutir na qualidade de vida de Portugal.
Mais: apesar de termos, desde a Idade Média, a literatura mais antiga da Europa, entrámos no século XIX com 80% de analfabetos. E o poeta afirma que “o investimento na educação e na cultura” constitui “uma das coisas mais importantes” da pós-revolução abrilina.
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Passada uma quarentena, acusa-se o fenómeno de regressão cultural, concomitante com a degradação económica. O ensaísta poeta adverte que “é mais fácil destruir do que voltar a construir” e que “vai levar muito tempo a criar cultura”. E, enquanto lamenta o facto de, “nesta confluência de governo e de Presidente” não ter havido “cuidado com a qualidade de vida e com a cultura dos portugueses”, apresenta o exemplo de Obama, que logrou “fazer simultaneamente uma política de contenção e de desenvolvimento”.
Por mim, penso que o segredo está na escola, sobretudo a escola pública, que eduque pelos valores, com os valores e para os valores. Talvez seja conveniente repensar currículos, programas, organização, funcionamento e avaliação – e sobretudo torná-la pedagógica e despi-la da judicialização nefasta, bem como da preponderância dos clientes sobre o desígnio educacional.

2015.11.25 – Louro de Carvalho

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