sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Degenerescências da democracia

Todos sabemos que a democracia se entende como o regime político em que o poder reside no povo. Com efeito, o termo português “democracia” é transposição indireta do vocábulo grego δημοκρατία (dêmocratía) pelo vocábulo latino democratia. O referido termo grego formou-se por composição a partir do nome δημος (dêmos) – que significa povo, assembleia, país, região – e do verbo κρατέω (kratéo), que deriva do nome κράτος (krátos – poder, poderio, império, força, solidez, robustez, vigor, vitória). Por seu turno, o verbo κρατέω significará “ser senhor”, “mandar”, “dominar”, … Nestes termos, consensualizou-se que a democracia é a consagração do poder pelo povo, com o povo e para o povo. Porém, o problema não está tanto no conceito, mas sobretudo no exercício desse poder.
Alguns fazem consistir o exercício da democracia na decisão tomada pelo povo em assembleia de todos ou assembleias setoriais. É a democracia direta, viável em pequenas comunidades. Parece que funcionou bem na comunidade socrática grega, razoavelmente na cidade de Atenas e funciona regularmente em muitos dos institutos religiosos.
Da democracia direta, por expansão, derivou a chamada democracia popular, que, supostamente a partir de tomadas de decisão de nível local, passando por assembleias de nível intermédio, chega à tomada de decisões de nível central. É assumida pelos regimes de partido único, que deixam inúmeros cidadãos fora dos mecanismos de participação decisória. Por outro lado, a dificuldade de fazer com que todos respeitem o ideário leva a que as decisões principais sejam tomadas num órgão de cúpula e transmitidas de cima para baixo. Muitas vezes, as diferentes secções funcionam em regime celular, de modo que o centro político sabe das missões de cada indivíduo e/ou grupo, mas estes não conhecem as missões dos indivíduos e/ou grupos congéneres.
Por sua vez, a democracia representativa, reinventada pelo liberalismo, no pressuposto ideológico de que o poder político reside no povo, mas não pode o seu exercício caber ao povo para não se cair no pântano político e social, estabeleceu o sistema de sufrágio, através do qual o povo escolhe os seus representantes para a assembleia do povo (ou: assembleia nacional, cortes, parlamento, câmara de representantes…), por um período de tempo – o mandato – definido na Lei Fundamental ou Constituição Política. Estes representantes são escolhidos através das propostas feitas ao povo pelos diversos partidos políticos ou grupos de cidadãos mobilizados em torno de diferentes ideias de governança que, em princípio, espelham diferentes conceções de sociedade.
A assembleia de representantes pode ter apenas poderes constituintes, pelo que lhe é confiado o encargo de elaborar e aprovar a Constituição (em alguns sistemas, a constituição ou carta constitucional é elaborada por um grupo de peritos e os titulares do poder em exercício sujeitam-na a plebiscito ou referendo). Habitualmente, a assembleia de representantes detém o poder legislativo e o papel fiscalizador do executivo e periodicamente (extraordinariamente) assume poderes constituintes de que resulte revisão ou alteração da Constituição. Da assembleia de representantes emana o governo, que normalmente é de nomeação do Chefe de Estado, que também lhe dá posse. O governo executa e regulamenta as leis do parlamento, que são da iniciativa deste ou de proposta do governo, e habitualmente também legisla através de decreto-lei, passível de apreciação parlamentar, ou por decreto-lei com base em autorização do parlamento. Ao Chefe de Estado cabe promulgar as leis e diplomas com similar força normativa e representar superiormente o Estado. Já o poder judicial, administra a justiça em nome do povo, mas tem a sua organização própria, com base mais no mérito científico e técnico que nos mecanismos eleitorais.
Uma das faces da democracia representativa é precisamente a separação e interdependência dos poderes: legislativo, executivo e judicial.
Modernamente, entende-se que a democracia exercida através dos representantes do povo não se esgota na eleição dos deputados, mas implica a audição prévia dos interessados através das suas estruturas representativas de ordem social, económica, cultural ou profissional, através da colocação de algumas matérias em discussão pública e através do referendo sobre alguns temas – bem como reconhecendo aos cidadãos a possibilidade de intervirem criticamente através de diversos meios e instrumentos.  
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Talvez seja conveniente, para se compreender melhor o alcance da democracia e suas contrafações, fazer um excursus ideo-etimológico.
Assim, do verbo κρατέω + ’άριστος (áristos) – excelente, o melhor – servindo de superlativo a ’αγαθός (bom) e correspondentes nomes e adjetivos gregos, formou-se a palavra “aristocracia” (o poder exercido pelos melhores – normalmente, clérigos, nobres ou sábios); de κρατέω + πλοϋτος (ploûtos) – rico, riqueza – e correspondentes nomes e adjetivos gregos, formou-se a palavra “plutocracia” (o poder exercido pelos ricos); de κρατέω + αυτός (autós) – ele mesmo, o próprio – e correspondentes nomes e adjetivos gregos, formou-se a palavra “autocracia” (o poder exercido segundo a visão e/ou o capricho do próprio titular do poder); e de κρατέω + κλέπτης (kléptes) – ladrão, embusteiro – e correspondentes nomes e adjetivos gregos, formou-se a palavra “cleptocracia” (o poder exercido por políticos que roubam o Estado, os corruptos, os que favorecem os amigos).
Por outro lado, do verbo ’αρκέω (arkéo)1 – que significa “apartar”, “repelir”, “resistir”, “bastar ser suficiente”, “estar satisfeito” – e do verbo ’αρχέω ou ’άρχω (archéo ou árcho)2 – a significar “mandar”, “reinar sobre” – bem como dos correspondentes nomes e adjetivos gregos (’αρχέ – mando, poder, império, autoridade) formaram-se palavras como: ’ολιγαρκής (com ’όλιγός – pouco), em português, seria “oligarcia” (o contentamento com pouco) e ’ολιγαρχία, em português, “oligarquia” (governo de poucos); αυτάρκης (de αυτός – ele próprio), em português “autárcico” (que se basta a si mesmo, que subsiste por si próprio), αυτάρκεια, em português, autarcia (estado de quem se basta a si próprio) e αυταρχία, em português, “autarquia” (governo por si próprio: o poder local); μοναρχία (de μόνος – um só único), em português, “monarquia” (mando de um só, comando supremo: rei, imperador ou caudilho); e ainda ‘ιεραχία (de ‘ιερεύς, iereus – sacerdote, ministro), em português “hierarquia” (mando dos sacerdotes). Usualmente, o termo é utilizado para designar a escala de postos eclesiásticos, militares, sociais, políticos e administrativos – da base ao topo, passando por vários postos intermédios, sendo que, à medida que mais se sobe na escala, menos titulares se encontram.
Temos também palavras como “república”, “tirania”, “despotismo” e “ditadura”.
“República”, que significava “coisa pública”, a pátria e o aparato do Estado, tornou-se um regime posterior e contraposto ao da monarquia, dos quatro reis latinos e sabinos e os três de origem etrusca. No topo da governação estavam os dois cônsules, eleitos anualmente pelo senado e aconselhados por este, que produzia os seus acórdãos, muitas vezes, com base nos comitia ou assembleias. Na Grécia antiga, república e democracia confundiam-se. Sobretudo em Atenas, o regime de governo democrático, que atingiu o seu apogeu no século V a.C., era um regime em que o “povo” se manifestava diretamente, reunindo-se e votando em assembleias, para tomar as decisões a respeito da vida da sua cidade. Representava a alternativa à tirania e assentava na βουλή (bulé ), um conselho com 500 membros (incluía camponeses, mas excluía as mulheres), que se constituía no pilar do regime. Todo o cidadão (πολίτης – em latim, civis) do sexo masculino era livre de assistir às assembleias, que debatiam e ratificavam as questões civis, usualmente quatro vezes por mês. Daqui, resulta a “política” ou a “cidadania” (no grego, πολιτεία; no latim, civitas e civilitas). 
“Tirania”, de τυραννίς (de τύραννος, tirano, soberano) – a significar “tirania”, “poder absoluto” – a princípio, era sinónimo de realeza ou monarquia. Depois, como o tirano, concentrando em si todos os poderes militar e civil (legislativo, executivo e judicial), deixando de ouvir as assembleias e a sua cúria, foi abusando, muitas vezes cruel e criminosamente, do poder. Daí, “tirania” e “tirano” passaram a significar, respetivamente, o regime de poder monárquico repressor e opressor e o respetivo titular – termos equivalentes a despotismo (no grego, δεσποτεία) e déspota (no grego, δεσπότης), respetivamente, e com a mesma evolução semântica.
Também se dava o nome de tirano, mas não o de déspota, àquele que usurpava o poder estabelecido e que se legitimava através do exercício do poder e se tornava aceite e plausível, do ponto de vista ético, se o exercesse com moderação e granjeando o respeito dos súbditos. Por outro lado, o século XVIII europeu passou por um sistema de exercício do poder real absoluto, a que se deu a designação de despotismo iluminado ou despotismo esclarecido, mesmo que o poder real absoluto fosse exercido por um ministro em nome do monarca.
A “ditadura” e “ditador” – respetivamente, de δικτατορία (em latim, dictatura) e δικτάτωρ (em latim, dictator) – significam, respetivamente, ditadura ou dignidade de ditador e ditador ou magistrado principal com autoridade absoluta. O senado romano, em tempo de crise no regime republicano, instituía o ditador, conferindo poder absoluto a um dos magistrados prestigiados, mas com um limite temporal, de meio ano e com a respetiva avaliação de desempenho.
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Se, em tempos, os povos tiveram usurpadores do poder que, depois, o exerciam de forma moderada, nos tempos que correm, como em períodos relativamente longos do século passado, verificamos que titulares do poder que ascenderam a ele pela via democrática eleitoral e depois o exercem de forma ditatorial e autocrática, se eternizam no poder, embora se legitimem nele marcando eleições suficientemente controladas. Por outro lado, as ditaduras, que entre os romanos, tinham uma duração limitada e previamente definida e não eram necessariamente cruéis (pelo menos, não mais que no tempo dos cônsules, dos reis ou dos imperadores), hoje tornam-se despóticas, tirânicas; e, impostas em virtude da degradação social e política, assumem uma dinâmica repressora e opressora, impondo, pela via da censura e dos sistemas educativo e comunicacional, a lógica do pensamento único.
Também o princípio de que “a cada cabeça corresponde um voto” com facilidade se desrespeita. Assim, muitas democracias quiseram estabelecer o voto censitário, em função dos haveres de cada cidadão ou agregado familiar. Neste sentido, só teriam direito a voto aqueles cujo rendimento chegasse a um determinado montante ou o excedesse. Era na base a categoria da plutocracia, não no exercício do poder, mas na legitimidade originária do seu exercício. De modo similar, se comportam os decisores que, na consideração de que nem todos estão preparados para pensar politicamente, limitam o voto aos chefes de família, aos alfabetizados ou, ainda aos que detenham determinado grau de escolaridade. Está subjacente a ideia aristocrática na legitimação originária do exercício do poder. E, quando o centro do poder – ou as matérias essenciais – é confiado a grupo de sábios, peritos ou técnicos (bons, mas poucos), temos uma forma de aristocracia e também oligarquia. E, se prevalece a visão tecnicista do poder, chamamos a este fenómeno “tecnocracia” (do acima referido verbo κρατέω + o nome τέχνη).
Quanto à cleptocracia, concretizada na corrupção e tráfico de influências, no favorecimento a amigos, no desaparecimento de bens públicos patrimoniais, no abusivo aproveitamento dos recursos do Estado para benefício próprio ou de familiares e compadres, é o que mais há por aí.
Ademais, tanto nas autarquias locais como nos escalões do poder central se verifica o frequente e obsessivo olhar do titular do exercício do poder para si próprio e o exercício do poder prevalentemente segundo a ótica, o capricho e os interesses do seu titular. Como refere Malala, “eles são escolhidos pelo povo, mas não ouvem o povo” ou “têm medo de livros e canetas”.
Porém, a própria organização eleitoral é viciada em termos democráticos. A organização das listas de candidatura dos diversos partidos tem um peso demasiado do líder e do aparelho partidário; escolhem-se líderes medíocres, deputados medíocres e governantes medíocres; e o parlamento não é suficientemente democrático. Quanto ao parlamento, é de estranhar que haja demasiado recurso à disciplina partidária nos diversos grupos parlamentares (que deveria ficar reservada a temas atinentes à governabilidade, como o programa de governo, o orçamento e as moções de censura e de confiança), quando devia prevalecer o princípio da valorização do voto de cada um; é censurável que o deputado precise de autorização e visto prévio do seu líder de bancada para intervir; e, sobretudo, é intolerável que as leis propostas pelo governo ou resultantes da iniciativa dos deputados tenham origem em trabalho elaborado por sociedades de advogados e de economistas. Quem não tem capacidade para definir políticas públicas não pode ser deputado, muito menos membro do governo. Munam-se os grupos parlamentares e os diversos ministérios de mais assessores e reduzam-se à expressão mais simples as encomendas legislativas. O povo, no âmbito do poder de que é titular, paga a deputados e governantes, a magistrados e a Chefe de Estado, mas não pode ter o dever de pagar a privados.
Por fim, deve abandonar-se a ideia de que a democracia implica necessariamente o regime republicano. Hoje as monarquias constitucionais (as outras ou revestem a capa de democracias populares, de impérios, de ditaduras ou de governo de talibãs) apenas se diferenciam da república pela chefatura do Estado. O rei é provido no trono por via hereditária e por aclamação, dispondo do trono, em princípio por toda a vida, a menos que abdique em prol de um dos sucessores naturais. Por outro lado, as leis são promulgadas e a justiça é administrada em nome de Sua Majestade. Ora, os regimes republicanos dispõem de dois modos de eleição do Chefe de Estado: a via parlamentar; ou o sufrágio direto e universal. Porém, os poderes são idênticos no essencial.

 O importante é o bem comum, preferencialmente obtido por via seriamente democrática!  

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