sexta-feira, 6 de novembro de 2015

No cinquentenário das três declarações conciliares

O ano de 2015 fica marcado pelo cinquentenário do encerramento do Concílio Vaticano II. De toda a discussão havida na aula conciliar, resultaram 16 documentos, promulgados por Paulo VI: 4 constituições, 9 decretos e três declarações.
As constituições são documentos fundamentais e de grande dimensão, de referência doutrinal ou de disciplina e atuação pastoral; os decretos conciliares são documentos normativos, embora sustentados em doutrina cujos princípios enunciam; e as declarações, embora tenham como suporte uma sólida doutrina de base, constituem o enunciado da postura de Igreja, neste caso reunida em concílio, sobre determinados temas, não exclusivos da Igreja Católica, mas transversais à sociedade e ao mundo.
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A reflexão de hoje incide apenas sobre as três declarações do Concílio Vaticano II, cujo cinquentenário de promulgação coincide com o do encerramento da grande assembleia eclesial.
O Papa Francisco já se referiu publicamente a duas, que foram promulgadas a 28 de outubro de 1965: a Nostra Aetate (NA), sobre as relações da Igreja Católica com as religiões não cristãs; e a declaração  Gravissimum Educationis (GE), sobre a educação cristã.
A Nostra Aetate distribui-se por 5 pontos, sendo que o primeiro e o quinto servem respetivamente de enquadramento justificativo da declaração e de seu corolário.
Assim, o ponto 1 – “Laços comuns da humanidade e inquietação religiosa do homem; 
a resposta das diversas religiões não-cristãs e sua relação com a Igreja
” – parte da verificação dos laços comuns que se estabelecem entre os diversos povos e em que ressalta a pertinente inquietação do homem sob a égide do transcendente. E o último enuncia o axioma da fraternidade universal e a postura da reprovação de toda a discriminação racial ou religiosa.
Já os pontos 2, 3 e 4 abordam em concreto algumas religiões não cristãs, respetivamente: o Hinduísmo e Budismo; a religião do Islão; e a religião judaica.
Sobre o hinduísmo, os padres conciliares declaram que nele:
“Os homens perscrutam o mistério divino e exprimem-no com a fecundidade inexaurível dos mitos e os esforços da penetração filosófica, buscando a libertação das angústias da nossa condição quer por meio de certas formas de ascetismo, quer por uma profunda meditação, quer, finalmente, pelo refúgio amoroso e confiante em Deus”.

Em relação do budismo, dizem que nele:
“Segundo as suas várias formas, reconhece-se a radical insuficiência deste mundo mutável e propõe-se o caminho pelo qual os homens, com espírito devoto e confiante, possam alcançar o estado de libertação perfeita ou atingir, pelos próprios esforços ou ajudados do alto a suprema iluminação”.

No atinente a outras religiões que existem no mundo, os Bispos constatam que elas
“Procuram de vários modos ir ao encontro das inquietações do coração humano, propondo caminhos, isto é, doutrinas e normas de vida e também ritos sagrados”.

Quanto ao islão, a Igreja reconhece que os crentes adoram “o Deus Único, vivo e subsistente, misericordioso e omnipotente, criador do céu e da terra, que falou aos homens e a cujos decretos, mesmo ocultos, procuram submeter-se de todo o coração”.
E no respeitante ao judaísmo, a Igreja não esquece que ele constituiu a longa preparação para o cristianismo, que resulta da ação salvífica operada em Cristo, que nasceu no contexto da religião hebraica.
Por isso, a Igreja declara o seu respeito por estas religiões e propõe o estabelecimento de pontes de diálogo com os seus seguidores, no respeito pela consciência de cada um e na procura de soluções comuns para os problemas e anseios da humanidade, não deixando de expor com toda a clareza a sua proposta evangélica. Como corolário desta postura, a NA estriba no princípio da fraternidade universal a postura da reprovação de toda a discriminação racial ou religiosa (NA,5).
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Verificando que participam frequentemente, nas audiências gerais, pessoas ou grupos de outras religiões, o Papa aproveitou a audiência do passado dia 28 de outubro para evocar o cinquentenário deste documento conciliar, que ocorreu exatamente nesse dia. E sublinhou a importância deste tema para o beato Papa Paulo VI, “que, já na festa de Pentecostes do ano precedente ao fim do Concílio”, instituíra “o Secretariado para os não-cristãos, hoje o Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso.
Sobre o Concílio o Papa recorda ter sido “um tempo extraordinário de reflexão, diálogo e oração para renovar o olhar da Igreja católica sobre si mesma e sobre o mundo”, com base na “leitura dos sinais dos tempos” para “uma atualização orientada por uma fidelidade dupla: fidelidade à tradição eclesial e fidelidade à história dos homens e das mulheres do nosso tempo”.
Sendo certo que Deus Se revela na criação e na história e que “falou pelos profetas e ultimamente no seu Filho que Se fez homem” (cf Hb 1,1), Francisco ensina que Ele Se dirige “ao coração e ao espírito de cada ser humano que procura a verdade e os modos para a pôr em prática”.
À luz deste postulado, o Pontífice faz uma leitura atualizada da NA, salientando os pontos seguintes: a crescente interdependência dos povos; a busca humana de um sentido da vida, do sofrimento, da morte, interrogações que sempre acompanham o nosso caminho; a origem e o destino comuns da humanidade; a unicidade da família humana; as religiões como busca de Deus ou do Absoluto, no contexto das várias etnias e culturas; e o olhar benévolo e atento da Igreja sobre as religiões: sem nada rejeitar do que nelas existe de belo e verdadeiro.
Depois, recorda que “a Igreja considera com estima os crentes de todas as religiões, apreciando o seu compromisso espiritual e moral”, e que, “aberta ao diálogo com todos”, preza, ao mesmo tempo, a sua fidelidade “às verdades em que crê, a começar por aquela segundo a qual a salvação oferecida a todos tem a sua origem em Jesus, único Salvador, e que o Espírito Santo está em ação, como fonte de paz e amor”.
E, de entre os numerosos eventos, iniciativas e relações institucionais ou pessoais com as religiões não cristãs ao longo destes últimos 50 anos, o Bispo de Roma destaca, pelo seu significado, o Encontro de Assis, de 27 de outubro de 1986 – “desejado e promovido por São João Paulo II, que um ano antes, portanto há trinta anos, dirigindo-se aos jovens muçulmanos em Casablanca, desejava que todos os crentes em Deus favorecessem a amizade e a união entre os homens e os povos” (19 de agosto de 1985). Ora, tendo-se acendido a chama em Assis, ela “propagou-se pelo mundo inteiro e constitui um sinal de esperança permanente”.
A seguir, o Papa salientou a mudança operada nestes 50 anos nas relações entre cristãos e judeus, cristãos e muçulmanos.
Quanto aos judeus, reconhece que da indiferença e oposição se passou à postura da colaboração e benevolência e do mútuo conhecimento. Passou-se também “à redescoberta das raízes judaicas do cristianismo” e ao combate a “todas as formas de antissemitismo” e à “condenação de qualquer injúria, discriminação e perseguição que delas derivam”.
Também os muçulmanos, que adoram o Deus único, vivo e verdadeiro, “referem-se à paternidade de Abraão, veneram Jesus como profeta, honram a sua Virgem Mãe Maria, esperam o dia do juízo e praticam a oração, as esmolas e o jejum”.
Quanto a estas religiões e às demais religiões não cristãs, o Papa refere que “o diálogo de que temos necessidade não pode deixar de ser aberto e respeitoso, pois só assim se revela fecundo”. E, sabendo que o mundo espera uma resposta comum dos crentes aos problemas que afligem as pessoas e os povos – “a paz, a fome e a miséria que afligem milhões de pessoas, a crise ambiental, a violência, em particular a cometida em nome da religião, a corrupção, a degradação moral, as crises da família, da economia, das finanças e sobretudo da esperança” – o Papa reconhece que “não temos receitas para estes problemas, mas dispomos de um recurso enorme: a oração”.
E, ante a difundida atitude de suspeita ou até de condenação das religiões por causa da violência e do terrorismo, Francisco considera que, embora “religião alguma esteja imune do risco de desvios fundamentalistas ou extremistas em indivíduos ou grupos” (cf Disc. ao Congresso dos EUA, 24-09-2015), se devem acolher “os valores positivos que elas vivem e propõem, e que constituem nascentes de esperança” na pessoa e no mundo. Em conformidade com este enunciado, expõe:
“O diálogo assente no respeito confiante pode produzir sementes de bem que, por sua vez, se tornam rebentos de amizade e de colaboração em muitos campos, e sobretudo no serviço aos pobres, aos mais pequeninos e aos idosos, na hospitalidade aos migrantes, na atenção a quantos vivem excluídos. Podemos caminhar juntos, cuidando uns dos outros e da criação. Todos os crentes de todas as religiões. Juntos, podemos louvar o Criador por nos ter oferecido o jardim do mundo, para o cultivar e preservar como um bem comum, e podemos realizar programas compartilhados para debelar a pobreza e garantir condições de vida digna a cada homem e mulher.”

Depois, considera o próximo “Jubileu Extraordinário da Misericórdia”, como “uma ocasião propícia para trabalharmos juntos no campo das obras de caridade”. E não deixa de apelar à colaboração de todos neste setor, “onde conta sobretudo a compaixão”:
“Podem unir-se a nós muitas pessoas que não se sentem crentes ou que vivem à procura de Deus e da verdade, pessoas que põem no centro o rosto do próximo, em particular o semblante do irmão ou da irmã em necessidade”.

Mas estende o âmbito da misericórdia a toda a criação, “que Deus nos confiou para sermos os seus administradores e não exploradores ou, pior ainda, destruidores”, dizendo:
“Deveríamos ter sempre o propósito de deixar o mundo melhor do que o encontramos (cf Enc. Laudato Si’, 194), a partir do ambiente em que vivemos, dos pequenos gestos da nossa vida quotidiana”.

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Quanto à Declaração  Gravissimum Educationis (GE), sobre a educação cristã, também promulgada pelo Papa Paulo VI, a 28 de outubro de 1965, o Papa Francisco, no passado dia 28 de outubro, instituiu, por quirógrafo seu, a Fundação “Gravissimum Educationis”, com sede na Cidade do Vaticano, destinada a perseguir “finalidades científicas e culturais para promover a educação católica no mundo”.
Nesse quirógrafo, a que anexa o respetivo estatuto, o Pontífice manifesta o seu agradecimento à Congregação para a Educação Católica pelas iniciativas promovidas no cinquentenário da declaração  Gravissimum Educationis.
Citando a declaração em referência, relembra:
“A Igreja reconhece que a extrema importância da educação na vida do homem e a sua incidência cada vez maior no progresso social contemporâneo estão profundamente unidas ao cumprimento do mandato recebido do seu divino Fundador, isto é, de anunciar a todos os homens o mistério da salvação e de instaurar em Cristo todas as coisas” (GE, Proémio).

A nova Fundação – ereta em pessoa jurídica pública canónica e em pessoa jurídica civil e que será regida pelas leis canónicas em vigor na Igreja e pelas leis civis vigentes na Cidade do Vaticano, assim como pelo respetivo Estatuto – foi anunciada nas vésperas da realização do Congresso “Educar Hoje e Amanhã. Uma paixão que se renova” que se vai realizar em Roma de 18 a 21 de novembro próximo e que também conta com a presença dos responsáveis portugueses pelo setor.

O Congresso – uma das iniciativas da Congregação para a Educação Católica, aludidas pelo Pontífice – celebra os aniversários dos 50 anos da GE e dos 25 anos da Constituição Apostólica Ex Corde Ecclesiae (de 15 de agosto de 1990), que ocorrem em 2015, tem como objetivo “relançar o compromisso da Igreja no âmbito da educação”.

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Já quanto à Declaração Conciliar Dignitatis Humanae (DH), sobre a liberdade religiosa, promulgada no dia 7 de dezembro de 1965, ainda não se conhece uma posição cinquentenária expressa do Papa, mas que se crê que não deixe passar em branco, já que tem sido um dos pontos mais focados nas suas intervenções.
A DH refere-se ao direito da pessoa e das comunidades à liberdade social e civil em matéria religiosa, mostrando a justa sensibilidade para com os problemas da liberdade e direitos humanos, em consonância com a GS  (Gaudium et Spes).
Ainda hoje, a liberdade religiosa não é devidamente entendida nem suficientemente respeitada; e, sobretudo, no Oriente Médio, na Ásia, na África e, mesmo na Europa, registam-se perseguições, discriminações, atos de violência e intolerância baseados na religião. Nalgumas regiões é impossível professar e exprimir livremente a própria religião sem o risco da vida e da liberdade. Todas as formas de violação da liberdade religiosa, tal como as que incidem sobre os demais direitos fundamentais da pessoa humana, são extremamente iníquas.  Por isso, o escopo da DH é sublinhar que a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa: todos os homens e mulheres devem ser imunes de coação da parte tanto de pessoas particulares como de grupos sociais e de qualquer poder humano. Em matéria religiosa, cada um tem o direito de procurar a verdade, a fim de chegar, pelos meios mais adequados, a formar prudentemente juízos retos e verdadeiros de consciência. Portanto, ninguém pode ser forçado a agir contra a sua consciência, nem impedido de proceder segundo ela, em privado ou em público, só ou associado, dentro dos limites da razoabilidade da convivência; e a liberdade das pessoas e das associações não pode ser restringida, no que se refere ao livre exercício da religião na sociedade.
A DH declara que a liberdade religiosa se fundamenta na dignidade da pessoa humana e está na origem da liberdade moral; que cada um tem o direito de procurar a verdade segundo a sua consciência; e que a verdade não se impõe pela violência, mas pela força persuasiva da própria verdade. Com efeito, a abertura à verdade, ao bem e a Deus, própria da natureza humana, confere dignidade a cada ser humano e garante o respeito recíproco entre as  pessoas e grupos. Assim, a religião exerce uma real força positiva e propulsora na construção da sociedade civil e política, orientando-a pelos princípios éticos universais à luz dos quais o direito e a liberdade são plenamente reconhecidos e realizados, como se propõem os objetivos da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
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São três documentos considerados menores, mas que representam uma grande volta na postura da Igreja face ao pulsar do mundo e a colocam como insigne autoridade moral ante o mundo!

2015.11.05 – Louro de Carvalho

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