O
ano de 2015 fica marcado pelo cinquentenário do encerramento do Concílio
Vaticano II. De toda a discussão havida na aula conciliar, resultaram 16
documentos, promulgados por Paulo VI: 4 constituições, 9 decretos e três
declarações.
As
constituições são documentos fundamentais e de grande dimensão, de referência
doutrinal ou de disciplina e atuação pastoral; os decretos conciliares são
documentos normativos, embora sustentados em doutrina cujos princípios
enunciam; e as declarações, embora tenham como suporte uma sólida doutrina de
base, constituem o enunciado da postura de Igreja, neste caso reunida em
concílio, sobre determinados temas, não exclusivos da Igreja Católica, mas
transversais à sociedade e ao mundo.
***
A
reflexão de hoje incide apenas sobre as três declarações do Concílio Vaticano
II, cujo cinquentenário de promulgação coincide com o do encerramento da grande
assembleia eclesial.
O
Papa Francisco já se referiu publicamente a duas, que foram promulgadas a 28 de
outubro de 1965: a Nostra Aetate (NA), sobre as relações da Igreja Católica com as religiões não cristãs;
e a declaração Gravissimum Educationis (GE), sobre a educação
cristã.
A
Nostra
Aetate distribui-se por 5 pontos, sendo que o primeiro e o quinto servem
respetivamente de enquadramento justificativo da declaração e de seu corolário.
Assim, o ponto 1 – “Laços comuns da humanidade e inquietação religiosa
do homem;
a resposta das diversas religiões não-cristãs e sua relação com a Igreja” – parte da verificação dos laços comuns que se estabelecem entre os diversos povos e em que ressalta a pertinente inquietação do homem sob a égide do transcendente. E o último enuncia o axioma da fraternidade universal e a postura da reprovação de toda a discriminação racial ou religiosa.
a resposta das diversas religiões não-cristãs e sua relação com a Igreja” – parte da verificação dos laços comuns que se estabelecem entre os diversos povos e em que ressalta a pertinente inquietação do homem sob a égide do transcendente. E o último enuncia o axioma da fraternidade universal e a postura da reprovação de toda a discriminação racial ou religiosa.
Já os
pontos 2, 3 e 4 abordam em concreto algumas religiões não cristãs,
respetivamente: o Hinduísmo e Budismo; a religião do Islão; e a religião
judaica.
Sobre o
hinduísmo, os padres conciliares declaram que nele:
“Os homens perscrutam o
mistério divino e exprimem-no com a fecundidade inexaurível dos mitos e os
esforços da penetração filosófica, buscando a libertação das angústias da nossa
condição quer por meio de certas formas de ascetismo, quer por uma profunda
meditação, quer, finalmente, pelo refúgio amoroso e confiante em Deus”.
Em relação do budismo, dizem que nele:
“Segundo as suas várias
formas, reconhece-se a radical insuficiência deste mundo mutável e propõe-se o
caminho pelo qual os homens, com espírito devoto e confiante, possam alcançar o
estado de libertação perfeita ou atingir, pelos próprios esforços ou ajudados
do alto a suprema iluminação”.
No atinente a outras religiões que existem no mundo, os
Bispos constatam que elas
“Procuram de vários modos
ir ao encontro das inquietações do coração humano, propondo caminhos, isto é,
doutrinas e normas de vida e também ritos sagrados”.
Quanto ao
islão, a Igreja reconhece que os crentes adoram “o Deus Único, vivo e
subsistente, misericordioso e omnipotente, criador do céu e da terra, que falou
aos homens e a cujos decretos, mesmo ocultos, procuram submeter-se de todo o
coração”.
E no respeitante ao judaísmo, a Igreja não esquece que ele
constituiu a longa preparação para o cristianismo, que resulta da ação
salvífica operada em Cristo, que nasceu no contexto da religião hebraica.
Por isso, a Igreja declara o seu respeito por estas religiões
e propõe o estabelecimento de pontes de diálogo com os seus seguidores, no
respeito pela consciência de cada um e na procura de soluções comuns para os
problemas e anseios da humanidade, não deixando de expor com toda a clareza a
sua proposta evangélica. Como corolário desta postura, a NA estriba no princípio da fraternidade
universal a postura da reprovação de toda a discriminação racial ou religiosa (NA,5).
***
Verificando
que participam frequentemente, nas audiências gerais, pessoas ou grupos de
outras religiões, o Papa aproveitou a audiência do passado dia 28 de outubro
para evocar o cinquentenário deste documento conciliar, que ocorreu exatamente
nesse dia. E sublinhou a importância deste tema para o beato Papa Paulo VI, “que,
já na festa de Pentecostes do ano precedente ao fim do Concílio”, instituíra “o Secretariado para os não-cristãos,
hoje o Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso”.
Sobre
o Concílio o Papa recorda ter sido “um tempo extraordinário de reflexão,
diálogo e oração para renovar o olhar da Igreja católica sobre si mesma e sobre
o mundo”, com base na “leitura dos sinais dos tempos” para “uma atualização
orientada por uma fidelidade dupla: fidelidade à tradição eclesial e fidelidade
à história dos homens e das mulheres do nosso tempo”.
Sendo
certo que Deus Se revela na criação e na história e que “falou pelos profetas e
ultimamente no seu Filho que Se fez homem” (cf Hb 1,1), Francisco ensina que
Ele Se dirige “ao coração e ao espírito de cada ser humano que procura a
verdade e os modos para a pôr em prática”.
À
luz deste postulado, o Pontífice faz uma leitura atualizada da NA, salientando
os pontos seguintes: a crescente interdependência dos povos; a busca humana de
um sentido da vida, do sofrimento, da morte, interrogações que sempre
acompanham o nosso caminho; a origem e o destino comuns da humanidade; a
unicidade da família humana; as religiões como busca de Deus ou do Absoluto, no
contexto das várias etnias e culturas; e o olhar benévolo e atento da Igreja
sobre as religiões: sem nada rejeitar do que nelas existe de belo e verdadeiro.
Depois,
recorda que “a Igreja considera com estima os crentes de todas as religiões,
apreciando o seu compromisso espiritual e moral”, e que, “aberta ao diálogo com
todos”, preza, ao mesmo tempo, a sua fidelidade “às verdades em que crê, a
começar por aquela segundo a qual a salvação oferecida a todos tem a sua origem
em Jesus, único Salvador, e que o Espírito Santo está em ação, como fonte de
paz e amor”.
E,
de entre os numerosos eventos, iniciativas e relações institucionais ou
pessoais com as religiões não cristãs ao longo destes últimos 50 anos, o Bispo
de Roma destaca, pelo seu significado, o Encontro de Assis, de 27 de outubro de
1986 – “desejado e promovido por São
João Paulo II, que um ano antes, portanto há trinta anos, dirigindo-se
aos jovens muçulmanos em Casablanca, desejava que todos os crentes em Deus
favorecessem a amizade e a união entre os homens e os povos” (19 de agosto de 1985). Ora, tendo-se acendido
a chama em Assis, ela “propagou-se pelo mundo inteiro e constitui um sinal de
esperança permanente”.
A
seguir, o Papa salientou a mudança operada nestes 50 anos nas relações entre
cristãos e judeus, cristãos e muçulmanos.
Quanto
aos judeus, reconhece que da indiferença e oposição se passou à postura da
colaboração e benevolência e do mútuo conhecimento. Passou-se também “à
redescoberta das raízes judaicas do cristianismo” e ao combate a “todas as
formas de antissemitismo” e à “condenação de qualquer injúria, discriminação e
perseguição que delas derivam”.
Também
os muçulmanos, que adoram o Deus único, vivo e verdadeiro, “referem-se à
paternidade de Abraão, veneram Jesus como profeta, honram a sua Virgem Mãe
Maria, esperam o dia do juízo e praticam a oração, as esmolas e o jejum”.
Quanto
a estas religiões e às demais religiões não cristãs, o Papa refere que “o
diálogo de que temos necessidade não pode deixar de ser aberto e respeitoso,
pois só assim se revela fecundo”. E, sabendo que o mundo espera uma resposta
comum dos crentes aos problemas que afligem as pessoas e os povos – “a paz, a
fome e a miséria que afligem milhões de pessoas, a crise ambiental, a
violência, em particular a cometida em nome da religião, a corrupção, a
degradação moral, as crises da família, da economia, das finanças e sobretudo
da esperança” – o Papa reconhece que “não temos receitas para estes problemas,
mas dispomos de um recurso enorme: a oração”.
E,
ante a difundida atitude de suspeita ou até de condenação das religiões por
causa da violência e do terrorismo, Francisco considera que, embora “religião
alguma esteja imune do risco de desvios fundamentalistas ou extremistas em
indivíduos ou grupos” (cf Disc. ao Congresso dos EUA, 24-09-2015), se devem acolher “os
valores positivos que elas vivem e propõem, e que constituem nascentes de
esperança” na pessoa e no mundo. Em conformidade com este enunciado, expõe:
“O diálogo assente no respeito confiante
pode produzir sementes de bem que, por sua vez, se tornam rebentos de amizade e
de colaboração em muitos campos, e sobretudo no serviço aos pobres, aos mais
pequeninos e aos idosos, na hospitalidade aos migrantes, na atenção a quantos
vivem excluídos. Podemos caminhar juntos, cuidando uns dos outros e da criação.
Todos os crentes de todas as religiões. Juntos, podemos louvar o Criador por
nos ter oferecido o jardim do mundo, para o cultivar e preservar como um bem
comum, e podemos realizar programas compartilhados para debelar a pobreza e
garantir condições de vida digna a cada homem e mulher.”
Depois,
considera o próximo “Jubileu Extraordinário da Misericórdia”, como “uma ocasião
propícia para trabalharmos juntos no campo das obras de caridade”. E não deixa
de apelar à colaboração de todos neste setor, “onde conta sobretudo a compaixão”:
“Podem unir-se a nós muitas pessoas que não
se sentem crentes ou que vivem à procura de Deus e da verdade, pessoas que põem
no centro o rosto do próximo, em particular o semblante do irmão ou da irmã em
necessidade”.
Mas
estende o âmbito da misericórdia a toda a criação, “que Deus nos confiou para
sermos os seus administradores e não exploradores ou, pior ainda,
destruidores”, dizendo:
“Deveríamos ter sempre o propósito de
deixar o mundo melhor do que o encontramos (cf Enc. Laudato Si’, 194), a partir do
ambiente em que vivemos, dos pequenos gestos da nossa vida quotidiana”.
***
Quanto à Declaração Gravissimum Educationis (GE), sobre a educação cristã, também promulgada
pelo Papa Paulo VI, a 28 de outubro de 1965, o Papa Francisco, no passado dia
28 de outubro, instituiu, por quirógrafo seu, a Fundação “Gravissimum
Educationis”, com sede na Cidade do Vaticano, destinada a perseguir “finalidades
científicas e culturais para promover a educação católica no mundo”.
Nesse quirógrafo, a que anexa o respetivo estatuto, o Pontífice manifesta o
seu agradecimento à Congregação para a Educação Católica pelas
iniciativas promovidas no cinquentenário da declaração Gravissimum
Educationis.
Citando a declaração em referência, relembra:
“A Igreja reconhece que a extrema
importância da educação na vida do homem e a sua incidência cada vez maior no
progresso social contemporâneo estão profundamente unidas ao cumprimento do mandato recebido do seu divino Fundador,
isto é, de anunciar a todos os homens o mistério da salvação e de instaurar em
Cristo todas as coisas” (GE, Proémio).
A nova Fundação – ereta em pessoa jurídica pública canónica e em pessoa
jurídica civil e que
será regida pelas leis canónicas em vigor
na Igreja e pelas leis civis vigentes na Cidade do Vaticano, assim como pelo respetivo
Estatuto – foi anunciada
nas vésperas da realização do Congresso “Educar
Hoje e Amanhã. Uma paixão que se renova” que se vai realizar em Roma de 18
a 21 de novembro próximo e que também conta com a presença dos responsáveis
portugueses pelo setor.
O Congresso – uma das iniciativas da Congregação para a
Educação Católica, aludidas pelo Pontífice – celebra os aniversários dos 50 anos da GE e dos 25 anos da Constituição
Apostólica Ex Corde Ecclesiae (de 15 de agosto de 1990), que ocorrem em 2015, tem como objetivo “relançar o compromisso da
Igreja no âmbito da educação”.
***
Já quanto à Declaração Conciliar Dignitatis Humanae (DH), sobre a liberdade religiosa, promulgada no dia 7 de dezembro de
1965, ainda não se conhece uma posição cinquentenária expressa do Papa, mas que
se crê que não deixe passar em branco, já que tem sido um dos pontos mais
focados nas suas intervenções.
A
DH refere-se ao direito da pessoa e das comunidades à liberdade social e civil
em matéria religiosa, mostrando a justa sensibilidade para com os problemas da
liberdade e direitos humanos, em consonância com a GS (Gaudium et Spes).
Ainda
hoje, a liberdade religiosa não é devidamente entendida nem suficientemente respeitada;
e, sobretudo, no Oriente Médio, na Ásia, na África e, mesmo na Europa, registam-se
perseguições, discriminações, atos de violência e intolerância baseados na
religião. Nalgumas regiões é impossível professar e exprimir livremente a
própria religião sem o risco da vida e da liberdade. Todas as formas de
violação da liberdade religiosa, tal como as que incidem sobre os demais
direitos fundamentais da pessoa humana, são extremamente iníquas. Por isso,
o escopo da DH é sublinhar que a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa:
todos os homens e mulheres devem ser imunes de coação da parte tanto de pessoas
particulares como de grupos sociais e de qualquer poder humano. Em matéria
religiosa, cada um tem o direito de procurar a verdade, a fim de chegar, pelos
meios mais adequados, a formar prudentemente juízos retos e verdadeiros de consciência.
Portanto, ninguém pode ser forçado a agir contra a sua consciência, nem
impedido de proceder segundo ela, em privado ou em público, só ou associado,
dentro dos limites da razoabilidade da convivência; e a liberdade das pessoas e
das associações não pode ser restringida, no que se refere ao livre exercício
da religião na sociedade.
A
DH declara que a liberdade religiosa se fundamenta na dignidade da pessoa
humana e está na origem da liberdade moral; que cada um tem o direito de
procurar a verdade segundo a sua consciência; e que a verdade não se impõe pela
violência, mas pela força persuasiva da própria verdade. Com efeito, a abertura
à verdade, ao bem e a Deus, própria da natureza humana, confere dignidade a
cada ser humano e garante o respeito recíproco entre as pessoas e grupos.
Assim, a religião exerce uma real força positiva e propulsora na construção da sociedade
civil e política, orientando-a pelos princípios éticos universais à luz dos
quais o direito e a liberdade são plenamente reconhecidos e realizados, como se
propõem os objetivos da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
***
São
três documentos considerados menores, mas que representam uma grande volta na
postura da Igreja face ao pulsar do mundo e a colocam como insigne autoridade moral
ante o mundo!
2015.11.05 – Louro
de Carvalho
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