domingo, 15 de novembro de 2015

Entrar e sair a clamar pela revisão constitucional

Todos nos lembramos de que Passos Coelho, ao apresentar-se a eleições legislativas em 2011, pretendia uma revisão constitucional que alegadamente permitisse responder melhor à situação de crise com que se deparava o país. Não só o seu partido não logrou alcançar a maioria absoluta dos votos dos portugueses eleitores, pelo que teve de acordar a governação com o CDS/PP, como não conseguiu as boas graças do PS para garantir a viabilização da predita revisão da Constituição, nem sequer para a inclusão da regra de oiro orçamental (do limite do défice e da dívida), apesar de ter encomendado um pré-projeto de revisão republicana da lei fundamental ao monárquico confesso Paulo Teixeira Pinto.
Já não bastava o chorrilho de doestos de poeira política lançados para o ar a propósito da expressão sábia do povo em eleições – goste-se ou não, o povo decidiu, através de uma certa dispersão de votos, pela não maioria clara de mandatos – e vem o Primeiro-Ministro em exercício, numas alegadas jornadas de caminho do futuro, disponibilizar-se e lançar o repto ao PS para uma revisão constitucional extraordinária que permita ao Presidente da República dissolver o Parlamento quando os resultados eleitorais proporcionarem um cenário parecido com o atual.
Além de se verificar que estes 40 anos de democracia (circunstância invocada para outros desideratos) nunca mostraram a necessidade de dissipação do órgão legislativo logo a seguir às respetivas eleições, é de salientar que foi precisamente para evitar que um Presidente da República tivesse a tentação de caprichosamente usar este poder de dissolução (poder a utilizar em último recurso) em circunstâncias destas como arma de arremesso contra a expressão da vontade popular cuja leitura os políticos não querem saber fazer.
Esta pretensão, aparentemente tão razoável, faz-me lembrar o caso do presidente de junta de freguesia que referia que a assembleia de freguesia não aprovava as propostas que a junta lhe submetia. Então, o Presidente da Junta solicitava as reuniões extraordinárias da assembleia que fossem necessárias para os membros daquele órgão deliberativo cederem (“caírem”, dizia ele).
Entendo perfeitamente que Passos Coelho não goste de abandonar a governação, não me atrevo a duvidar de que para ele o exercício do poder não constitua um serviço e uma missão, mas não posso aceitar que, na sua lucidez de primeiro-ministro que foi e que é, alinhe na vaga de enormidades propaladas pela coligação e que suscitam algumas respostas também meio disparatadas da parte dos quadrantes políticos contrários, como esta de os governantes andarem a assustar os portugueses ou a enervar os mercados que o Governo morreu ou não há Presidente.
Assim, na sequência das atribuições do vice-primeiro-ministro de geringonça, bebedeira e consequente ressaca à postura de Costa e seus comparsas circunstanciais, ficou-lhe mal acusá-los de fraude eleitoral e apelidá-los de reviralho. As fraudes eleitorais são levantadas junto da Comissão Nacional de Eleições e decorrem no processo eleitoral, que já chegou a seu termo; e do reviralho também creio ter feito parte o Primeiro-Ministro na oposição ao Estado Novo e à linha mais dura de Cavaco Silva enquanto primeiro-ministro com maioria absoluta.
Por outro lado, o Primeiro-Ministro estava distraído quando mui recentemente citou um alegado texto de Mário Soares em 1985. Quem chefiou as hostes do PS nas eleições legislativas de 1985, após a rutura do Bloco Central (aprazada para depois de 12 de junho, data da assinatura do tratado de adesão à CEE por Mário Soares e Rui Machete, respetivamente Primeiro-Ministro e Vice-Primeiro-Ministro) provocada por Cavaco Silva em virtude do resultado político da rodagem do carro novo na Figueira da Foz foi o Dr. Almeida Santos. O Presidente da República era Ramalho Eanes. Soares já se reservara para a candidatura presidencial que o levou à eleição em segunda volta em 1986, porque na primeira se apuraram dois candidatos: Mário Soares e Freitas do Amaral, ficando arredados Salgado Zenha e Lourdes Pintasilgo. Se alguém teve o rasgo de rejeitar qualquer outra hipótese de governo que não a do minoritário apresentado por Cavaco Silva, foi Ramalho Eanes e não Mário Soares. Ao que sabemos, Mário Soares terá rejeitado uma hipótese governativa de Vítor Constâncio, secretário-geral do PS, com apoio do PRD (e todos os coetâneos bem sabemos porquê), em 1987 e não em 1985 – o que levou à dissolução do Parlamento e convocação de eleições. Já lá iam 2 anos sobre as eleições. Desta dissolução do Parlamento em 1987 surgiu a primeira das duas maiorias absolutas consecutivas do PSD.
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Em todo o caso, depois de o Primeiro-Ministro ter alegadamente apresentado um governo de comunicação e de combate (mais calado que o anterior ou a dizer coisas abstrusas como aquela de que Deus nem sempre é nosso amigo), é engraçado o governante-mor empunhar a bandeira da revisão constitucional à entrada no Governo e à saída!
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Quanto à obrigação de cumprir e fazer cumprir a Constituição, devo tecer também algumas considerações.
O programa do Governo liderado por Passos Coelho foi rejeitado no Parlamento. Informado que foi da ocorrência pelo Presidente da Assembleia da República e apresentado que foi o pedido de demissão pelo Primeiro-Ministro nomeado, o Presidente da República deveria não perder tempo e acionar de imediato o cumprimento do estipulado no n.º 1 do artigo 187.º da CRP: dispor de cinco minutos para refletir (até porque já tinha estudado todos os cenários) sobre os resultados das últimas eleições legislativas; ouvir os partidos com assento parlamentar; e designar um novo primeiro-ministro, dado que há declarações públicas de disponibilidade.
No entanto, gastou dois dias a ouvir as representações das entidades patronais e as duas centrais sindicais. Por integrarem o CES (Conselho de Concertação Social)? Mas a CRP manda ouvir os partidos políticos, não os parceiros sociais. A estes não cabe originar a governação, mas as matérias de concertação social. Se queria fundamentar a sua decisão em muitas audições, porque não ouviu também as ordens profissionais (médicos, dentistas, farmacêuticos, enfermeiros, advogados, arquitetos, engenheiros, economistas, contabilistas certificados…), as associações (polícias, GNR,, juízes, pais, estudantes, municípios, freguesias…), os conselhos (das ordens honoríficas, superior de defesa nacional, superior da magistratura, de escolas, de reitores, de presidentes de politécnicos…).
E, se quer ouvir personalidades, devo dizer que, como qualquer um dos mais de 10 milhões de portugueses, também estou disponível para ser ouvido!
É óbvio que, além dos partidos, era razoável, que o Presidente ouvisse o Conselho de Estado, dada a excecionalidade da presente situação e uma vez que, nos termos do art.º 141.º, “é o órgão político de consulta do Presidente da República” e uma das suas competências, nos termos da alínea e) do art.º 145.º da CRP, é, “em geral, aconselhar o Presidente da República no exercício das suas funções, quando este lho solicitar”.
Para ouvir os partidos e o Conselho de Estado, eram suficientes três dias, a menos que o Presidente queira, como insinua Vasco Lourenço, presidente da “Associação 25 de Abril”, proceder como se o país dispusesse de uma Câmara Corporativa, de má memória. E, depois, fica o átrio do palácio presidencial como púlpito para a propalação de coisas não desejáveis: prolongamento do governo de gestão até junho de 2016, consonância com a exigência de mais de uma centena de empresários do ora impossível governo da coligação de direita – como também não me parece lugar adequado para daquele átrio se defender a necessidade imperativa de um governo do PS com os apoios conhecidos (embora legítimo e óbvio tal governo, não é este o lugar nem estes os pregadores).
Depois, há que esclarecer que o único poder de que o Presidente não dispõe de momento é o da dissolução da Assembleia da República. Até parece que o Presidente está a dar razão a quem lhe aponta a diminuição de poderes. Todavia, não me parece que seja útil a sua visita à Região Autónoma da Madeira nesta ocasião, até porque as más-línguas não concluem que vá ouvir os madeirenses, mas como, palpitaram os intervenientes do programa televisivo “Eixo do Mal”, terá ido ouvir aqueles passarinhos a que pôs em tempos umas anilhas. Se já é criticável o veto de bolso aos diplomas do Governo, muito mais o será o veto de bolso ao cumprimento da Constituição. 
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É óbvio que não quereria alinhar com Vasco Lourenço na asserção de que o país está “a assistir a uma reação desesperada de quem vê fugir o poder” ou na acusação que faz ao Presidente de colaborar para assustar os portugueses com “papão do caos”, mas parece que não tenho outra hipótese. Todavia, não subscrevo a sua sugestão de consagração constitucional do referendo para destituir o Presidente da República, convocado por um mínimo de 15 mil eleitores, “para imitar o máximo admitido para uma candidatura a Presidente da República”. No entanto, aceito a sua asserção em que refere que, “como qualquer constitucionalista honesto explica liminarmente, tal hipótese é totalmente impossível e impraticável”, salientando que esta explicação “torna o simples levantamento dessa hipótese numa provocação desesperada e sem sentido”.
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Finalmente, se eu estivesse no lugar de Passos e Portas, teria certamente optado pela experiência de governação que eles lideraram, mas sem crispações e sem périplos pelo país nesta altura e sem pretender que Marcelo prometesse eleições em junho. E, mal conhecida a aprovação da rejeição do programa de governo, tratava de assegurar a simples gestão do país até à nomeação do novo Governo cujo programa terá a viabilização assegurada e cujo timing forçaria. E pensava, quanto antes, na arquitetação da estratégia de oposição persistente e sistemática, concertada e eficaz ao XXI Governo Constitucional – no Parlamento, nos órgãos partidários, nos círculos eleitorais, no país inteiro – não a assustar, mas a esclarecer e a mobilizar. Faria tudo para criar as condições, não do lado da pressão a um Presidente da República, mas da desmistificação dos acordos de esquerda em que, pelos vistos, não acreditava, para levar à criação de situações politicas para que Sua Excelência o Presidente ao tempo se sentisse obrigado à dissolução parlamentar e à convocação das eleições legislativas, de modo que o meu partido obtivesse a maioria absoluta.
Isto é que era fazer política! Já não sei se agitar a bandeira da revisão constitucional a torto e a direito será fazer política a sério...

2015.11.15 – Louro de Carvalho

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