quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Traços de um humanismo cristão

O Papa Francisco empreendeu hoje, dia 10 de novembro, uma viagem de onze horas pelas cidades de Prato e Florença, situadas no centro da Itália, na Toscânia. O pretexto para esta visita pastoral é o V Congresso Eclesial Nacional organizado pela Conferência Episcopal Italiana sob o lema “Em Jesus Cristo o novo humanismo”. Neste contexto afirmou-se como peregrino, “um peregrino de passagem”, “mas com boa vontade”.
Na cidade de Prato, o Pontífice encontrou o mundo do trabalho na Praça da Catedral onde pronunciou o seu primeiro discurso em que afirmou a “dignidade” do trabalho e saudou também aqueles que não puderam estar no local, como os “doentes, os idosos e os presos”. A respeito do que viu nesta cidade, declarou que “a sacralidade de cada ser humano exige respeito por todos, acolhimento e um trabalho digno”.
No contexto das condições de trabalho, nem sempre condicentes com os postulados da dignidade do trabalho e do trabalhador, em que os imigrantes viviam em condições precárias, dentro do seu local de trabalho, Francisco recordou a morte de 7 imigrantes chineses nesta cidade italiana – 5 homens e 2 mulheres – na sequência de um incêndio na zona industrial, há dois anos. À situação de trabalho em condições de excessivo peso e criador de condições de insegurança e via para a morte o Papa chama “tragédia da exploração e das condições de vida desumanas” e clama que “isto não é trabalho digno”.
Ao mesmo tempo, alertou para as consequências da “mentira” ou da “falta de transparência” na vida das pessoas e da sociedade, denunciou os vícios sociais e apelou à luta incessante pela verdade:
“A vida de cada comunidade exige que se combata até ao fim o cancro da corrupção, o cancro da exploração humana e laboral e o veneno da ilegalidade. Dentro de nós e juntamente com os outros, que nunca nos cansemos de lutar pela verdade”.

Desafiando os habitantes de Prato – cidade a 15 Km de Florença com uma forte presença estrangeira (123 nacionalidades diferentes) com especial relevo para a presença chinesa – a não ficarem “fechados na indiferença”, mas a abrirem-se a todos, e assegurou que os católicos têm a obrigação de “arriscar” para anunciar a sua fé aos outros, seguindo pelos “caminhos acidentados de hoje”. Mais defendeu que a Igreja tem de “acolher quem está ferido e não espera mais nada da vida”, já que “para um discípulo de Jesus, nenhum vizinho pode tornar-se afastado”.
Francisco deixou ainda palavras de estímulo a iniciativas que visem a inclusão dos mais desfavorecidos, “num tempo assinalado por incertezas e medos”, promovendo “pactos de proximidade” e concluiu a sua intervenção pública na Praça da Catedral com uma saudação-apelo aos jovens a que não cedam “ao pessimismo e à resignação”.
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No encontro com os representantes do V Congresso Nacional da Igreja Italiana na Catedral de Santa Maria da flor, o Papa falou expressamente do tema do Congresso, para o que se deixou inspirar pelo ícone de Cristo, o Ecce Homo que está ao centro do painel que representa o Juízo Final na cúpula daquele templo. E chamou a atenção para “a transformação do Cristo julgado por Pilatos no Cristo sentado no trono do juiz. Jesus não assume a espada – símbolo da justiça – que um anjo lhe apresenta, mas levanta a mão direita e mostra os sinais da Paixão em que se entregou por todos”. É o Cristo da misericórdia que o Pai enviou ao mundo para o salvar e não para o condenar (cf Jo 3,17).
Por isso, à luz do juiz misericordioso, Francisco, de joelhos dobrados em adoração e de mãos e pés revigorados, fala de um humanismo a partir da centralidade de Jesus, nossa luz, que nos revela “os traços do rosto autêntico do homem”. E afirma que “Jesus é o nosso humanismo” e que devemos sempre interrogar-nos com aquela sua pergunta: “E vós quem dizeis que Eu sou?” (Mt 16,15). É contemplando o rosto de Cristo que se desenham os contornos de um novo humanismo, não em abstrato, mas apresentável aos homens do nosso tempo.
O rosto de Cristo – diz o Pontífice – mostra-nos um Deus despojado “que assumiu a condição de servo humilhado até à morte”, semelhante a tantos irmãos nossos “humilhados, rendidos, despojados”.
Passo em revista a sua pertinente alocução, de que respigo os dados essenciais.
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Ao apresentar os traços do humanismo cristão, Francisco não pretende expor “uma certa ideia do homem”, mas um conjunto coerente dos “sentimentos de Jesus Cristo”, não como sensações passageiras de espírito, que nos dão “a quente força interior que nos torna capazes de viver e tomar decisões”. Esses sentimentos podem sintetizar-se em três: humildade, desinteresse e bem-aventurança.
Pela humildade, cada um deve considerar os outros superiores a si mesmo (cf Fl 2,3), pois, o próprio Cristo não considera um privilégio ser como Deus. Assim, em vez de vivermos na obsessão de preservar a própria glória, dignidade e influência, devemos procurar a glória de Deus, que pode não coincidir com a nossa. O expoente máximo da desconcertação divina é o facto de a glória de Deus resplandecer “na humildade do presépio de Belém ou na desonra da cruz de Cristo”.
Pelo desinteresse, cada um deve procurar, não o seu interesse, mas sobretudo o do outro (cf Fl 2,4). Porém, mais do que o desinteresse, devemos procurar a felicidade daqueles que estão próximos de nós. Depois, “a humanidade do cristão consiste em estar sempre em saída” e não se refugia no narcisismo e na autorreferencialidade. Um coração rico e cheio de si próprio tem dificuldade em encher-se de Deus. Com base nestes pressupostos, o Papa vem pedir-nos que não ponhamos a nossa confiança “nas estruturas que nos dão uma falsa proteção, nas normas que nos transformam em juízes implacáveis”. Trabalhar e lutar por um mundo melhor é uma exigência da nossa fé revolucionária que nos é infundida pelo Espírito Santo – o que implica sairmos de nós mesmos para sermos homens segundo o Evangelho.
Pela bem-aventurança, o cristão sente que tem em si a alegria do Evangelho. Percorrendo o caminho das bem-aventuranças, podemos chegar “à felicidade mais autenticamente humana e divina”. Jesus fala da felicidade que resulta da pobreza em espírito e da humildade – que nos levam à prática da solidariedade, da partilha do pouco que se possui, do sacrifício quotidiano dum trabalho, por vezes duro e mal pago, mas desenvolvido por amor às pessoas queridas, e da aceitação das próprias necessidades vividas com a confiança na providência e na misericórdia do Pai, o que se consegue apenas se tivermos um coração aberto ao Espírito Santo.
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A partir daqueles três elementos do humanismo cristão assim entendido e nascido da “humanidade do Filho de Deus”, o Papa passa à reflexão sobre a Igreja italiana ora reunida para caminhar em conjunto, numa dinâmica de sinodalidade. E adverte que estes traços humanistas implicam a não obsessão pelo poder, mesmo que ele tome o cariz de um poder útil e funcional para a imagem social da Igreja, a qual, se não assumir os sentimentos de Jesus, desorienta-se, perde o sentido, mas, se os assumir, saberá estar à altura da sua missão.
Igreja que pense em si mesma e nos seus interesses – diz Francisco – torna-se triste, mas, se dispuser do espelho das bem-aventuranças – espelho que não engana –, sabe que está a trilhar o rumo certo. Igreja que é humilde, desinteressada e bem-aventurada – sabe reconhecer “a ação do Senhor no mundo, na cultura e na vida quotidiana das pessoas”. E repete-nos:
“Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada a uma Igreja doente pelo enclausuramento e pela comodidade de agarrar-se às suas próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada em ser o centro e que termine fechada numa teia de obsessões e procedimentos”.

A seguir, chama a atenção para as muitas tentações que existem. Porém, ao invés do que fez junto da Cúria Romana a quem deu conta de 15 tentações, aqui fica-se por referir as duas mais pertinentes em seu entender: a pelagiana e a do gnosticismo.
Sobre a primeira, que induz, sob a aparência de bem, a Igreja a não ser humilde, desinteressada e bem-aventurada, o Pontífice discorre:
“O pelagianismo leva-nos à confiança nas estruturas, organizações e planificações – perfeitas porque abstratas. Leva-nos a assumir um estilo de controlo, dureza e normatividade. A norma dá ao pelagiano a segurança de quem se sente superior e tem uma orientação precisa. É nisto que encontra a sua força e não na leveza do Espírito.”.

E contra o pelagianismo, diz-nos que “face aos males e problemas da Igreja torna-se inútil procurar soluções no conservadorismo e fundamentalismo, na recuperação de condutas e formas superadas que já nem têm capacidade de ser significativas”. E ensina peremptoriamente:
“A doutrina cristã não é um sistema fechado e incapaz de gerar questões, dúvidas, interrogações; é, antes, viva, sabe inquietar e animar. Tem uma face não rígida, tem um corpo que se move se desenvolve, tem carne tenra: a doutrina cristã chama-se Jesus Cristo.”.

Contra o pelagianismo, a constante reforma da Igreja não se realiza plenamente na alteração das estruturas; significa, antes, o configurar-se com Cristo e radicar-se nele deixando-se conduzir pelo Espírito. Neste pressuposto, Francisco incita a Igreja italiana a assumir “sempre o espírito dos seus grandes exploradores que, em seus navios, se apaixonaram pela navegação em mar aberto e não tiveram medo das fronteiras e das tempestades”. Quer que seja uma Igreja livre e aberta aos desafios do presente, assumindo o propósito paulino: “Fiz-me débil pelos débeis, para ganhar os débeis; fiz-me tudo por todos, para salvar a cada um a todo o custo” (1 Cor 9,22).
Em relação ao gnosticismo, o Papa adverte para o facto de a confiança no raciocínio lógico e claro fazer-nos “perder a sensibilidade da carne do irmão”. Embora o seu fascínio seja o de uma fé apoiada no subjetivismo em que o grande interesse é o da experiência do conforto e da iluminação racional, o gnosticismo não permite que saiamos do enclausuramento nas nossas razões e sentimentos. É a contemplação do mistério da encarnação que nos faz entender a transcendência cristã e superar qualquer forma de espiritualismo. Não pôr em prática a Palavra ou não a levar para a realidade significará construir na areia e degenerar em intimismos que não dão fruto e tornam estéril o dinamismo cristão.
Francisco, a este propósito, aponta os grandes vultos de humildade, desinteresse e alegria na Igreja italiana, como Francisco de Assis e Filipe de Néri, mas não deixa de referir a proximidade dos verdadeiros pastores espelhada na criação de personagens como o padre de aldeia Dom Camilo a contracenar com Peppone, o líder local dos comunistas – adversários, lutadores, amigos.
E, voltando ao cenário do Ecce Homo acima evocado, o insigne preletor chama a atenção para o que exige Jesus em ordem ao Juízo Final – a tal proximidade efetiva e afetiva de pastores e fiéis junto de quem não tem, não sabe ou não pode (cf. Mt 25,34-36).
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O programa de vida cristã proposto por Bergoglio compreende o movimento entre as Bem-aventuranças e as Palavras de Cristo quanto ao juízo final – “poucas palavras, mas práticas”. E o modelo a seguir é o próprio Cristo com seu rosto e gestos de misericórdia e de proximidade, como atestam os casos da samaritana (Jo 4,7-26), de Nicodemos (Jo 3,1-21), da unção de seus pés pela mulher pública (Lc 7,36-50), da abertura dos olhos aos cegos (cf. Mc 7,33) ou de comer e beber com os pecadores (Mc 2,16; Mt 11,19). É este perfil de Jesus que atrai a simpatia do povo e nos faz sentir a alegria e simplicidade de coração (cf At 2,46-47).
Nestes termos, o Papa quer que os bispos sejam pastores que se movam entre as pessoas e nada mais: que seja esta a sua alegria, alegria que ninguém lhe possa tirar. Em vez de pregadores de uma complexa doutrina, importa que sejam anunciadores de Cristo morto e ressuscitado por nós. É este o essencial do quérigma.
Depois, vem a veemente recomendação papal a toda a Igreja italiana, despida de poder, imagem e dinheiro: “a inclusão social dos pobres, que têm um lugar privilegiado no povo de Deus, e a capacidade de encontro e de diálogo para favorecer a amizade social no país, na busca do bem comum”. E fundamenta esta opção pelos pobres na primazia que lhe dá a caridade cristã testemunhada por toda a Tradição da Igreja, como refere João Paulo II na SRS,42 (Sollicitudo rei socialis), no facto de Deus se ter feito pobre por nós para nos enriquecer com a sua pobreza, como recorda Bento XVI (Discurso à V CELAMC, 2007) e na convicção de que os pobres, pela sua própria experiência de sofrimento, conhecem bem os sentimentos de Cristo. Por isso, reitera: 
“Somos chamados a descobrir Cristo neles: não só a emprestar-lhes a nossa voz nas suas causas, mas também a ser seus amigos, a escutá-los, a compreendê-los e a acolher a misteriosa sabedoria que Deus nos quer comunicar através deles” (EG, 198).  

Na convicção de que a pobreza evangélica é criativa, acolhedora, protetora e rica de esperança, o Papa lança uma outra recomendação: a capacitação para o diálogo e para o encontro.
Não se trata de negociar, ou seja, procurar extrair a fatia do bolo comum que deva caber a cada um. Trata-se de procurar o bem comum para todos, discutir em conjunto, pensar nas melhores soluções para todos. É certo que muitas vezes o diálogo envolve o conflito, mas é preciso “aceitar suportar o conflito, resolvê-lo e transformá-lo num elo de ligação de um novo processo” de diálogo (cf. EG,227).
O processo de diálogo deve ter em conta que não existe humanismo autêntico que não contemple o amor como vínculo entre os seres humanos, seja a nível pessoal, íntimo e social, seja a nível político e intelectual. Sobre este postulado, contra o aforismo de Hobbes homo homini lupus, se funda a necessidade do diálogo e do encontro para a construção conjunta da sociedade civil.
E o Bispo de Roma dá como exemplo o da sociedade italiana, que se constrói quando podem dialogar de modo construtivo as suas diversas riquezas culturais: a popular, a académica, a juvenil, a artística, a tecnológica, a política, a dos meios de comunicação social… E nesta construção a Igreja há de ser “fermento de diálogo, de encontro, de unidade”. Até as nossas formulações de fé são fruto do diálogo e do encontro entre culturas, comunidades e instâncias diferentes. Por isso, não há que temer o diálogo, dado que o confronto e a crítica ajudam a preservar a teologia evitando que ela se transforme em ideologia.
Porém, adverte o Pontífice, dialogar não é só falar e discutir, mas trabalhar conjuntamente em projetos comuns e em obras comuns – entre católicos e entre todos os de boa vontade.
Por outro lado, a Igreja deve saber dar uma resposta clara face às ameaças que emergem no seio do debate público, já que os crentes são cidadãos e como crentes e cidadãos podem dar um contributo específico para a construção da sociedade comum. E o Papa aponta o exemplo de Florença em que arte, fé e cidadania se entrecruzam num equilíbrio dinâmico entre a denúncia e a proposta. Em vez de museu, a nação é obra coletiva em constante construção pondo em comum o que diferencia, incluindo as pertenças políticas e religiosas.
E vem, neste contexto de diálogo nas diferenças, o apelo sobretudo aos jovens para que superem a apatia, munindo-se da fortaleza e jovialidade no falar e no agir (cf. 1Jo 1,14; 1Tm 4,12). Na construção de uma Itália melhor, é preciso não olhar da varanda da vida, mas empenhar-se, envolver-se no amplo diálogo social e político; é preciso levantar as mãos da fé para o céu, mas simultaneamente edificar uma cidade construída sobre relações fundamentadas no amor de Deus. É assim que se aceitarão os desafios de hoje e se viverão as mudanças e transformações.
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E, na certeza de que o nosso tempo requer a vivência dos problemas como desafios e não como obstáculos e de que é o Senhor quem opera no mundo, o Papa apela de Evangelho na mão:
“Ide, pois, às saídas dos caminhos e convidai para as bodas todos quantos encontrardes, não excluindo ninguém.’ (Mt 22,9). Acompanhai sobretudo quem está deixado à beira da estrada, “coxos, aleijados, cegos, surdos” (Mt 15,30).

E, enquanto discorre que lhe apraz uma Igreja italiana inquieta, cada vez mais próxima dos abandonados, dos esquecidos, dos imperfeitos – uma Igreja alegre com o rosto de mãe, que compreende, acompanha e acaricia e em que vale a pena acreditar – recorda-nos:
“O humanismo cristão a que sois chamados afirma radicalmente a dignidade de cada pessoa como Filha de Deus, estabelece entre todos os seres humanos uma fundamental fraternidade, ensina a compreender o trabalho, a habitar o mundo criado como casa comum, proporciona razões para a alegria e para o humorismo, mesmo no meio de uma vida por vezes dura”.

Finalmente, com vista à realização deste sonho que induz a inovar na liberdade, solicita a que se proceda de modo sinodal, em todas as circunscrições eclesiásticas, a um aprofundamento da sua exortação apostólica Evangelii Gaudium, para dela extrair critérios práticos e operacionalizar as suas disposições, com destaque para 3 ou 4 prioridades selecionadas no congresso. Confia na capacidade de estudo e reflexão de todos, até porque se trata de “uma Igreja adulta, antiquíssima na fé, sólida nas raízes e abundante nos frutos”. E entrega os congressistas ao cuidado de Maria, venerada em Florença como a Santíssima Anunciada, à semelhança de quem o Pontífice pretende que toda a Igreja diga com disponibilidade e alegria: Eis a serva do Senhor.
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Talvez não seja descabido todas as Igrejas acolherem as recomendações feitas à Igreja italiana, no contexto da sociedade que enfrenta cada vez maiores e mais complexos desafios, através do aprofundamento oportuno e importuno da Evangelii Gaudium.

2015.11.10 – Louro de Carvalho

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