terça-feira, 24 de novembro de 2015

Desta vez o País pôde esperar…

Todos os portugueses têm memória da relutância do Presidente Cavaco Silva em solicitar ao Tribunal Constitucional a apreciação da constitucionalidade das normas orçamentais, nunca tendo suscitado a fiscalização prévia de qualquer lei do orçamento: o país não podia entrar no ano económico seguinte sem um orçamento em vigor, dada a imagem de ineficácia que a governação em regime de duodécimos forneceria ao exterior, nomeadamente aos credores e aos mercados. É certo que chegou a expor as suas dúvidas junto do TC sobre algumas normas de leis de orçamento, mas depois de as haver promulgado.
Pode dizer-se que era o contexto da troika que proporcionava este condicionamento ao Presidente da República. Mas ainda recentemente o Chefe de Estado, enquanto assegurava que o programa de ajustamento tinha sido concluído em maio de 2014, em todo o caso, declarava que “devemos consolidar a trajetória de crescimento económico e criação de emprego e preservar a credibilidade externa” (cf alocuções de 6 e de 22 de outubro).
Foi Cavaco Silva alertado atempadamente para a necessidade de antecipar as eleições legislativas para a primavera passada a fim de o governo resultante do espectro partidário parlamentar pós-eleitoral dispor de tempo para apresentar a sua proposta de lei do orçamento ponderada de modo que a Assembleia da República pudesse proceder a todas as operações regimentais de discussão e aprovação e o Presidente promulgasse a lei. No entanto, o Presidente da República, invocando, a seu modo, a Constituição e a Lei, resistiu e marcou as eleições para o passado dia 4 de outubro, sem ter de passar pela dissolução do Parlamento, que os partidos do governo de então não queriam, pois, lhes interessava ganhar tempo, já que os dados estatísticos indiciavam melhoria e retoma nalguns setores – o que os factos agora parecem desmentir ou pelo menos desvalorizar.  
Porém, os eleitores ditaram um resultado que não deu a maioria absoluta a uma força partidária. E os partidos eleitoralmente coligados na PaF (desfeita ao serem conhecidos oficialmente os resultados) correram a celebrar um acordo de governo. Paralelamente, o segundo partido mais votado (de centro-esquerda) estabeleceu, num processo bastante longo, algo parecido com acordos bilaterais com cada um dos três partidos à sua esquerda. Mas uma coisa estava acertada: um eventual programa de governo de Passos Coelho seria bombardeado com pelo menos uma moção de rejeição na Assembleia da República.
Os discursos presidenciais que emolduraram tanto o encargo do líder do partido mais votado para avaliar as condições de formação de um governo com garantias de estabilidade para a nova legislatura como a sua indigitação como primeiro-ministro do XX Governo Constitucional – desnecessariamente para lá do que a Constituição exige (não quer dizer que o não permita) – porque demasiado restritivos e ao menos aparentemente fadando à exclusão alguns partidos da área da governação, acabaram por facilitar a posição da maioria de esquerda ineditamente formada na Assembleia da República. E o XX Governo, legítimo – não em face da vontade dos eleitores expressa claramente nas urnas, mas na relatividade de uma certa maioria aritmética não absoluta de quem ganhou eleições – sucumbiu à aprovação da primeira das quatro moções de rejeição apresentadas.
É óbvio que, de acordo com a Constituição, por mais que se diga em contrário (e Marco António não tem por que se carpir), os eleitores votam em partidos que propõem candidatos a deputados e não em governos ou em candidatos ao cargo de primeiro-ministro. Para a próxima, para esclarecimento do Dr. Marco António, que dizia hoje que, antes das eleições, só debateram “Costa” e “Passos” e não os deputados todos dos dois partidos, é de pôr nos debates televisivos todos os deputados dos partidos e não só os líderes. Assim ficará garantida a Constituição: elegem-se deputados e não ministros! Não sabe o ora comentador que eles debateram como líderes de partidos e não como candidatos a governantes. Por uma vez, não são eleições pessoais como as presidenciais.
É natural que, nada havendo em contrário, o líder do partido mais votado seja convidado para formar governo. Só que desta vez houve uma coisa em contrário: constituiu-se a maioria suficiente para derrubar um programa de governo e dar apoio a um governo alternativo. E isso foi anunciado atempadamente. Dizem alguns que os eleitores não contavam com esta situação. Não sei se isso se pode dizer em absoluto. A coligação eleitoral não explicou, como é óbvio, o que faria no caso de não alcançar a maioria de deputados (almejava a maioria absoluta ou clara); por seu turno, o partido de Costa, mesmo não raciocinando sobre cenários, acabou por dizer que não viabilizaria um governo minoritário à direita. Os demais – PCP, PEV e BE – embora tivessem numa primeira fase atacado o partido socialista, cedo mudaram de agulhas em relação ao alvo: o PS passou a ser menos atacado e o discurso virou-se contra a direita. E, na noite eleitoral, Costa garantiu que não alinharia numa maioria negativa para derrubar um governo sem que antes encontrasse uma solução alternativa. Foi quando começaram a surgir declarações de disponibilidade à esquerda para, além do derrube do governo, se construir uma alternativa. Sobre o mérito da sua solidez e credibilidade, o futuro o dirá, dado que, pelos vistos, a sua audácia não será muito confortante, mormente para Cavaco Silva e seus correligionários.
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Rejeitado o programa do XX Governo, o Presidente, que já antes das eleições tinha estudado todos os cenários, fez questão de ouvir tantas organizações e entidades, foi dois dias à Madeira, ouviu os partidos (obrigatório), mas esqueceu-se do Conselho de Estado (audição não obrigatória, mas possível e necessária, se a situação era tão grave). E só depois chamou o secretário-geral do PS, mas não para o encarregar de formar governo, mas para “desenvolver esforços tendo em vista apresentar uma solução governativa estável, duradoura e credível”.
Por outro lado, o homem que antigamente nunca se enganava e raramente tinha dúvidas agora ficou com seis dúvidas sobre o teor dos “documentos, distintos e assimétricos, subscritos entre o Partido Socialista, o Bloco de Esquerda, o Partido Comunista Português e o Partido Ecologista Os Verdes”.
Mais: o Presidente, que não dispôs de documento de qualquer acordo de governação celebrado entre PSD e PP, mas adornou o encargo a Passos de uma alocução ao país, embora controversa, desta vez, talvez porque nem todos sejam iguais, resolveu divulgar um documento escrito com as ditas seis dúvidas “quanto à estabilidade e à durabilidade de um governo minoritário do Partido Socialista, no horizonte temporal da legislatura”:
a) Aprovação de moções de confiança;
b) Aprovação dos Orçamentos do Estado, em particular o Orçamento para 2016;
c) Cumprimento das regras de disciplina orçamental aplicadas a todos os países da Zona Euro e subscritas pelo Estado Português, nomeadamente as que resultam do Pacto de Estabilidade e Crescimento, do Tratado Orçamental, do Mecanismo Europeu de Estabilidade e da participação de Portugal na União Económica e Monetária e na União Bancária;
d) Respeito pelos compromissos internacionais de Portugal no âmbito das organizações de defesa coletiva;
e) Papel do Conselho Permanente de Concertação Social, dada a relevância do seu contributo para a coesão social e o desenvolvimento do País;
f) Estabilidade do sistema financeiro, dado o seu papel fulcral no financiamento da economia portuguesa.
É óbvio que os ditos documentos são assimétricos, já que, sendo o PS um partido de centro esquerda e os outros três colocados à esquerda do PS, não é viável falar de qualquer simetria. Por outro lado, há artistas que são peritos no tratamento da assimetria como forma artística (e a política, baseada na ciência, também tem a sua componente artística). E, quando a haver um só documento ou documentos distintos, isso já foi mais que debatido em público e, sobretudo, não deve o Presidente imiscuir-se no relacionamento entre os partidos.
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Colocam alguns a questão da legitimidade constitucional desta solicitação de aclaração. Do meu ponto de vista, ela não colide com a Constituição, mas também não traz quaisquer garantias adicionais a decisão presidencial, a não ser a sua caprichosa consciência política. A insegurança que o Presidente denunciou desde o princípio, manter-se-á, até porque, se os subscritores dos acordos, que se estribam nos pontos de convergência e mantém o rol de divergências de princípio, não iriam adiantar mais nada de significativo em 24 horas. E Costa deu uma lição de rapidez, respondendo de imediato e por escrito, falando com os comparsas, mas sem publicar a carta de resposta.
Quanto às dúvidas em si, pergunto-me pela razão de ser de algumas. Assim:
A questão das moções de confiança é estranha, pois, a apresentação de moção de confiança é da iniciativa do governo, que pode não utilizar este instrumento. Se o Presidente questionasse o quarteto partidário sobre moções de censura, ainda se entenderia. Mas ninguém lhe garante o consórcio de quadriénio, dada a imprevisibilidade das circunstâncias futuras. A própria dupla Passos-Portas criou a crise de 2013 e não consta que Aníbal tenha agora sofrido o transe da dúvida frente à PaF. 
Quanto aos orçamentos, já foi dito que o de 2016 estava garantido e os outros seriam objeto de negociação ao tempo. Ademais, isto de orçamento já não preocupa deveras o presidente: a troika já se foi embora e, se o orçamento fosse problema, as eleições teriam ocorrido mais cedo. Hoje só a Comissão Europeia e a Zona Euro é que estão interessadas em orçamentos…
Neste contexto de relaxamento, é incongruente que o Chefe de Estado venha exigir o “cumprimento das regras de disciplina orçamental”, quando ele as dificultou ao perder tempo na marcação de eleições, na “indigitação” de Passos e agora na “indicação” de Costa.
Também já se sabe que alguns partidos não concordam com a política de alianças, mas, embora continuem a ser vozes críticas, não denunciarão essa política. É a experiência que o demonstra. Não concordam com a UE, mas estão lá, têm lá os seus deputados!
Que se saiba, ninguém contesta o papel do Conselho de Concertação Social a ser ouvido nas matérias a ele respeitantes, mas o Parlamento e o Governo não podem prescindir das suas prerrogativas legislativas e de superintendência na administração pública. Só que os elementos da Concertação Social não podem substituir-se aos partidos ou a sua posição sobrepor-se à deles, o que o Presidente parece ter dado a entender no curso das audições a que precedeu.
No atinente à Banca, são as circunstâncias que vão ditar a posição do Governo. O XIX Governo terá protegido mais o sistema financeiro perante as necessidades de capitalização dos bancos ou perante o descalabro do BES/GES? Não constituiu o recurso ao Fundo de Resolução uma nacionalização indireta, que vamos continuar a pagar de uma forma ou de outra?
Finalmente, soubemos que hoje “o Presidente da República decidiu, ouvidos os partidos políticos com representação parlamentar, indicar o Dr. António Costa para Primeiro-Ministro”.
Também aqui temos diferenças em relação ao tratamento dado a Passos e a Costa. Costa não mereceu a moldura duma alocução ao país, mas um comunicado conciso. Além disso, Costa não foi indigitado, mas indicado.
Ora, mais do que a diferença semântica, deve anotar-se a diferença simbólica e as consequências práticas. Indigitar significa pegar numa coisa ou pessoa com os dedos e colocá-la no sítio que se pretende; indicar é apontar com o dedo indicador para a coisa ou pessoa que está a vista de todos. Ou seja, Costa será Primeiro-Ministro, não por vontade pessoal e política do Presidente, mas por quase imposição das circunstâncias. Ou seja, apesar de muitos dos auditados não concordarem com a solução Costa e comparsas, também não aconselharam um governo de gestão – o que o Chefe de Estado poderia legitimar, até porque, mal comparados os tempos como o fez em relação a 2009, também agora veio dizer que liderou um governo gestão por cinco meses (só que o seu programa não fora rejeitado… e encetaram-se as diligências para a dissolução do Parlamento e nova consulta popular marcada).
Veja-se que o comunicado apresenta esta como a única solução viável e como parece lamentar “a impossibilidade, ditada pela Constituição, de proceder, até ao mês de abril do próximo ano, à dissolução da Assembleia da República e à convocação de eleições legislativas”.
Agora percebem-se duas coisas: se fosse possível a dissolução, era preferível brincar às dissoluções e às eleições, provavelmente até o povo votar como o Presidente quisesse; e a clarificação das seis dúvidas visa a desresponsabilização do Presidente em relação ao futuro e atribuir o ónus do futuro para o indicado primeiro-ministro. Será que também vai ser “nomeado” e “empossado” ou será “designado” e “colocado ao serviço”?
Surgiu ontem, dia 23, um dicionário de Cavaco, em que figuram nomes e expressões nominais, como “documento”, “dúvidas”, “esforços”, “clarificação formal”, “crise política criada”; adjetivos, como “decisivo”, distintos e assimétricos”, “omissas”, “estável, duradoura e credível”; e verbos, como “encarregar”. Hoje poderia acrescentar-se o verbo “indicar”. Quanto ao resto aguardemos.
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Enfim, quanto mais estabilidade se, prega, mais instabilidade se gera.
Mas desta vez, o país (e a Europa) pôde esperar…

2015.11.24 – Louro de Carvalho

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