Todos os portugueses têm
memória da relutância do Presidente Cavaco Silva em solicitar ao Tribunal
Constitucional a apreciação da constitucionalidade das normas orçamentais,
nunca tendo suscitado a fiscalização prévia de qualquer lei do orçamento: o
país não podia entrar no ano económico seguinte sem um orçamento em vigor, dada
a imagem de ineficácia que a governação em regime de duodécimos forneceria ao
exterior, nomeadamente aos credores e aos mercados. É certo que chegou a expor
as suas dúvidas junto do TC sobre algumas normas de leis de orçamento, mas
depois de as haver promulgado.
Pode dizer-se que era o
contexto da troika que proporcionava este condicionamento ao Presidente da
República. Mas ainda recentemente o Chefe de Estado, enquanto assegurava que o
programa de ajustamento tinha sido concluído em maio de 2014, em todo o caso, declarava
que “devemos
consolidar a trajetória de crescimento económico e criação de emprego e
preservar a credibilidade externa” (cf alocuções
de 6 e de 22 de outubro).
Foi Cavaco Silva alertado
atempadamente para a necessidade de antecipar as eleições legislativas para a
primavera passada a fim de o governo resultante do espectro partidário
parlamentar pós-eleitoral dispor de tempo para apresentar a sua proposta de lei
do orçamento ponderada de modo que a Assembleia da República pudesse proceder a
todas as operações regimentais de discussão e aprovação e o Presidente
promulgasse a lei. No entanto, o Presidente da República, invocando, a seu modo,
a Constituição e a Lei, resistiu e marcou as eleições para o passado dia 4 de
outubro, sem ter de passar pela dissolução do Parlamento, que os partidos do
governo de então não queriam, pois, lhes interessava ganhar tempo, já que os
dados estatísticos indiciavam melhoria e retoma nalguns setores – o que os factos
agora parecem desmentir ou pelo menos desvalorizar.
Porém, os eleitores ditaram
um resultado que não deu a maioria absoluta a uma força partidária. E os
partidos eleitoralmente coligados na PaF (desfeita
ao serem conhecidos oficialmente os resultados) correram a celebrar um acordo de governo.
Paralelamente, o segundo partido mais votado (de
centro-esquerda) estabeleceu, num processo bastante longo, algo parecido com acordos
bilaterais com cada um dos três partidos à sua esquerda. Mas uma coisa estava
acertada: um eventual programa de governo de Passos Coelho seria bombardeado
com pelo menos uma moção de rejeição na Assembleia da República.
Os discursos presidenciais
que emolduraram tanto o encargo do líder do partido mais votado para avaliar as
condições de formação de um governo com garantias de estabilidade para a nova legislatura
como a sua indigitação como primeiro-ministro do XX Governo Constitucional –
desnecessariamente para lá do que a Constituição exige (não quer dizer que o não permita) – porque demasiado restritivos e ao menos aparentemente fadando à
exclusão alguns partidos da área da governação, acabaram por facilitar a
posição da maioria de esquerda ineditamente formada na Assembleia da República.
E o XX Governo, legítimo – não em face da vontade dos eleitores expressa
claramente nas urnas, mas na relatividade de uma certa maioria aritmética não
absoluta de quem ganhou eleições – sucumbiu à aprovação da primeira das quatro
moções de rejeição apresentadas.
É óbvio que, de acordo com a
Constituição, por mais que se diga em contrário (e Marco
António não tem por que se carpir), os eleitores votam em partidos que propõem candidatos a deputados e
não em governos ou em candidatos ao cargo de primeiro-ministro. Para a próxima,
para esclarecimento do Dr. Marco António, que dizia hoje que, antes das
eleições, só debateram “Costa” e “Passos” e não os deputados todos dos dois
partidos, é de pôr nos debates televisivos todos os deputados dos partidos e
não só os líderes. Assim ficará garantida a Constituição: elegem-se deputados e
não ministros! Não sabe o ora comentador que eles debateram como líderes de
partidos e não como candidatos a governantes. Por uma vez, não são eleições
pessoais como as presidenciais.
É natural que, nada havendo
em contrário, o líder do partido mais votado seja convidado para formar
governo. Só que desta vez houve uma coisa em contrário: constituiu-se a maioria
suficiente para derrubar um programa de governo e dar apoio a um governo
alternativo. E isso foi anunciado atempadamente. Dizem alguns que os eleitores
não contavam com esta situação. Não sei se isso se pode dizer em absoluto. A
coligação eleitoral não explicou, como é óbvio, o que faria no caso de não
alcançar a maioria de deputados (almejava a
maioria absoluta ou clara); por seu turno, o partido de Costa, mesmo não raciocinando sobre
cenários, acabou por dizer que não viabilizaria um governo minoritário à
direita. Os demais – PCP, PEV e BE – embora tivessem numa primeira fase atacado
o partido socialista, cedo mudaram de agulhas em relação ao alvo: o PS passou a
ser menos atacado e o discurso virou-se contra a direita. E, na noite
eleitoral, Costa garantiu que não alinharia numa maioria negativa para derrubar
um governo sem que antes encontrasse uma solução alternativa. Foi quando
começaram a surgir declarações de disponibilidade à esquerda para, além do
derrube do governo, se construir uma alternativa. Sobre o mérito da sua solidez
e credibilidade, o futuro o dirá, dado que, pelos vistos, a sua audácia não
será muito confortante, mormente para Cavaco Silva e seus correligionários.
***
Rejeitado o programa do XX
Governo, o Presidente, que já antes das eleições tinha estudado todos os
cenários, fez questão de ouvir tantas organizações e entidades, foi dois dias à
Madeira, ouviu os partidos (obrigatório), mas esqueceu-se do
Conselho de Estado (audição não obrigatória, mas
possível e necessária, se a situação era tão grave). E só depois chamou o
secretário-geral do PS, mas não para o encarregar de formar governo, mas para “desenvolver esforços tendo em vista apresentar uma
solução governativa estável, duradoura e credível”.
Por outro lado, o homem que antigamente nunca se
enganava e raramente tinha dúvidas agora ficou com seis dúvidas sobre o teor
dos “documentos, distintos e assimétricos, subscritos entre o Partido
Socialista, o Bloco de Esquerda, o Partido Comunista Português e o Partido
Ecologista Os Verdes”.
Mais: o Presidente, que não dispôs de documento de
qualquer acordo de governação celebrado entre PSD e PP, mas adornou o encargo a
Passos de uma alocução ao país, embora controversa, desta vez, talvez porque
nem todos sejam iguais, resolveu divulgar um documento escrito com as ditas seis
dúvidas “quanto à estabilidade e à durabilidade de um governo minoritário do
Partido Socialista, no horizonte temporal da legislatura”:
a) Aprovação
de moções de confiança;
b) Aprovação
dos Orçamentos do Estado, em particular o Orçamento para 2016;
c) Cumprimento das regras de disciplina orçamental
aplicadas a todos os países da Zona Euro e subscritas pelo Estado Português,
nomeadamente as que resultam do Pacto de Estabilidade e Crescimento, do Tratado
Orçamental, do Mecanismo Europeu de Estabilidade e da participação de Portugal
na União Económica e Monetária e na União Bancária;
d) Respeito pelos compromissos internacionais de
Portugal no âmbito das organizações de defesa coletiva;
e) Papel do Conselho Permanente de Concertação Social,
dada a relevância do seu contributo para a coesão social e o desenvolvimento do
País;
f)
Estabilidade do sistema financeiro, dado o seu papel fulcral no financiamento
da economia portuguesa.
É óbvio que os ditos
documentos são assimétricos, já que, sendo o PS um partido de centro esquerda e
os outros três colocados à esquerda do PS, não é viável falar de qualquer
simetria. Por outro lado, há artistas que são peritos no tratamento da
assimetria como forma artística (e a
política, baseada na ciência, também tem a sua componente artística). E, quando a haver um só
documento ou documentos distintos, isso já foi mais que debatido em público e,
sobretudo, não deve o Presidente imiscuir-se no relacionamento entre os
partidos.
***
Colocam alguns a questão da
legitimidade constitucional desta solicitação de aclaração. Do meu ponto de
vista, ela não colide com a Constituição, mas também não traz quaisquer
garantias adicionais a decisão presidencial, a não ser a sua caprichosa
consciência política. A insegurança que o Presidente denunciou desde o
princípio, manter-se-á, até porque, se os subscritores dos acordos, que se
estribam nos pontos de convergência e mantém o rol de divergências de princípio,
não iriam adiantar mais nada de significativo em 24 horas. E Costa deu uma lição
de rapidez, respondendo de imediato e por escrito, falando com os comparsas,
mas sem publicar a carta de resposta.
Quanto às dúvidas em si,
pergunto-me pela razão de ser de algumas. Assim:
A questão das moções de
confiança é estranha, pois, a apresentação de moção de confiança é da
iniciativa do governo, que pode não utilizar este instrumento. Se o Presidente
questionasse o quarteto partidário sobre moções de censura, ainda se
entenderia. Mas ninguém lhe garante o consórcio de quadriénio, dada a
imprevisibilidade das circunstâncias futuras. A própria dupla Passos-Portas
criou a crise de 2013 e não consta que Aníbal tenha agora sofrido o transe da
dúvida frente à PaF.
Quanto aos orçamentos, já
foi dito que o de 2016 estava garantido e os outros seriam objeto de negociação
ao tempo. Ademais, isto de orçamento já não preocupa deveras o presidente: a
troika já se foi embora e, se o orçamento fosse problema, as eleições teriam
ocorrido mais cedo. Hoje só a Comissão Europeia e a Zona Euro é que estão
interessadas em orçamentos…
Neste contexto de
relaxamento, é incongruente que o Chefe de Estado venha exigir o “cumprimento das regras de disciplina orçamental”,
quando ele as dificultou ao perder tempo na marcação de eleições, na “indigitação”
de Passos e agora na “indicação” de Costa.
Também já se sabe que alguns partidos não concordam
com a política de alianças, mas, embora continuem a ser vozes críticas, não
denunciarão essa política. É a experiência que o demonstra. Não concordam com a
UE, mas estão lá, têm lá os seus deputados!
Que se saiba, ninguém contesta o papel do Conselho de
Concertação Social a ser ouvido nas matérias a ele respeitantes, mas o
Parlamento e o Governo não podem prescindir das suas prerrogativas legislativas
e de superintendência na administração pública. Só que os elementos da Concertação
Social não podem substituir-se aos partidos ou a sua posição sobrepor-se à
deles, o que o Presidente parece ter dado a entender no curso das audições a
que precedeu.
No atinente à Banca, são as circunstâncias que vão
ditar a posição do Governo. O XIX Governo terá protegido mais o sistema
financeiro perante as necessidades de capitalização dos bancos ou perante o
descalabro do BES/GES? Não constituiu o recurso ao Fundo de Resolução uma
nacionalização indireta, que vamos continuar a pagar de uma forma ou de outra?
Finalmente, soubemos que
hoje “o Presidente da República decidiu,
ouvidos os partidos políticos com representação parlamentar, indicar o Dr.
António Costa para Primeiro-Ministro”.
Também aqui temos diferenças em relação ao tratamento
dado a Passos e a Costa. Costa não mereceu a moldura duma alocução ao país, mas
um comunicado conciso. Além disso, Costa não foi indigitado, mas indicado.
Ora, mais do que a diferença semântica, deve anotar-se
a diferença simbólica e as consequências práticas. Indigitar significa pegar
numa coisa ou pessoa com os dedos e colocá-la no sítio que se pretende; indicar
é apontar com o dedo indicador para a coisa ou pessoa que está a vista de
todos. Ou seja, Costa será Primeiro-Ministro, não por vontade pessoal e
política do Presidente, mas por quase imposição das circunstâncias. Ou seja,
apesar de muitos dos auditados não concordarem com a solução Costa e comparsas, também não
aconselharam um governo de gestão – o que o Chefe de Estado poderia legitimar,
até porque, mal comparados os tempos como o fez em relação a 2009, também agora
veio dizer que liderou um governo gestão por cinco meses (só que o seu
programa não fora rejeitado… e encetaram-se as diligências para a dissolução do
Parlamento e nova consulta popular marcada).
Veja-se que o comunicado apresenta esta como a única
solução viável e como parece lamentar “a impossibilidade, ditada pela
Constituição, de proceder, até ao mês de abril do próximo ano, à dissolução da
Assembleia da República e à convocação de eleições legislativas”.
Agora percebem-se duas coisas: se fosse possível a
dissolução, era preferível brincar às dissoluções e às eleições, provavelmente
até o povo votar como o Presidente quisesse; e a clarificação das seis dúvidas
visa a desresponsabilização do Presidente em relação ao futuro e atribuir o
ónus do futuro para o indicado primeiro-ministro. Será que também vai ser
“nomeado” e “empossado” ou será “designado” e “colocado ao serviço”?
Surgiu ontem, dia 23, um dicionário de Cavaco, em que
figuram nomes e expressões nominais, como “documento”, “dúvidas”, “esforços”,
“clarificação formal”, “crise política criada”; adjetivos, como “decisivo”,
distintos e assimétricos”, “omissas”, “estável, duradoura e credível”; e verbos,
como “encarregar”. Hoje poderia acrescentar-se o verbo “indicar”. Quanto ao
resto aguardemos.
***
Enfim, quanto mais estabilidade se, prega, mais
instabilidade se gera.
Mas desta vez, o país (e a Europa) pôde esperar…
2015.11.24 –
Louro de Carvalho
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