quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Sobre a capciosa escolha de palavras…

Referi-me há dias à diferença entre os verbos “indigitar” e “indicar” e verberei a diferenciação da escolha de um e de outro em relação a duas personalidades políticas adversárias com vista ao preenchimento do cargo de primeiro-ministro.
Agora que, na cerimónia da tomada de posse do Governo, o discurso de Cavaco Silva utiliza a palavra “poderes” e o de Costa utiliza a palavra “competências”, fiquei com “dúvidas”, que desejei que se dissipassem, ou colocaram-se-me (levantaram-se-me) “questões”, para as quais deveria encontrar resposta satisfatória. Face a esta situação, lembrei-me de consultar a Constituição, que, para lá de constituir a nossa Lei Fundamental, também serve de tira-teimas quando surgem divergências no modo de entender a coisa pública.
Sobre as palavras “poder” e “poderes”, a Constituição, na sua Parte III, estabelece a “organização do poder político” e o artigo 108.º estipula, no âmbito da “Titularidade e exercício do poder”, que “o poder político pertence ao povo e é exercido nos termos da Constituição”. Depois, o n.º 2 do art.º 111.º faz referência a órgãos de “poder local”, como a outros órgãos, e o Título VIII da Parte III define a matéria referente ao “poder local”.
Estas disposições deixam-nos a ideia de que há dois tipos de poder: o poder soberano e o poder local. Da caraterização das regiões autónomas resulta, neste contexto, uma certa indefinição, já que não se trata de órgãos de soberania – pois o n.º 3 do art.º 225.º estabelece que “a autonomia político-administrativa regional não afeta a integridade da soberania do Estado e exerce-se no quadro da Constituição” – mas o art.º 227.º estabelece os poderes das regiões autónomas.
Também, no quadro do poder local, que, nos temos constitucionais, compreende a existência de autarquias locais (vd art.º 235.º/1) – no continente, freguesias, municípios e regiões administrativas (vd art.º 236.º/1); e nas regiões autónomas, freguesias e municípios (vd art.º 236.º/2) – se prevê que “a organização das autarquias locais compreende uma assembleia eleita dotada de poderes deliberativos e um órgão executivo colegial perante ela responsável” (vd art.º 240.º/1).
Curiosamente a nossa Constituição não fala de “separação e interdependência dos poderes”, mas de separação e interdependência dos órgãos de soberania (vd art.º 111.º/1), que são: “o Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo e os Tribunais” (vd art.º 110/1). Estes são órgãos do poder – poder soberano ou exercido a partir do topo do Estado – e são dotados de poderes, mas que não se esgotam nos poderes nem configuram todos os poderes. Assim, o n.º 2 do art.º 111.º estipula que “nenhum órgão de soberania, de região autónoma ou de poder local pode delegar os seus poderes noutros órgãos, a não ser nos casos e nos termos expressamente previstos na Constituição e na Lei”.
Também são, então, poderes os das regiões autónomas e os das autarquias locais. Todos estes poderes constituem o poder político – soberano e de outro teor – e é todo o poder político (e só o poder político e não outros como o religioso, o parental, científico, técnico…) que “pertence ao povo e é exercido nos termos da Constituição” (vd art.º 108.º).
A Constituição fala explicitamente de poderes dos deputados (vd art.º 156.º) e de poderes das regiões autónomas (vd art.º 227.º). Porém, mesmo quando se refere aos órgãos de soberania, tal como a outros órgãos do Estado, a Lei Fundamental utiliza a designação de “competências”.
As competências, por um lado, lado configuram as formas de exercício do poder, mas, por outro, implicam direitos, a que não se deve renunciar, e deveres, a que não se pode escapar. Assim consideradas, as competências são o poder em ação emoldurado pelas categorias de dever e direito e podem configurar a prática de atos próprios ou em relação com outros órgãos ou com outros agentes.
Assim, por exemplo, o Presidente tem itens de competência quanto a outros órgãos (vd art.º 133.º), de competência para a prática de atos próprios (vd art.º 134.º) e de competência nas relações internacionais (vd art.º 135.º). E, de modo semelhante se referem “competência” e “competências” no respeitante aos outros órgãos do poder soberano, regional ou local. Até o Conselho de Estado, que não é um órgão de poder, mas “o órgão político de consulta do Presidente da República” (vd art.º 141.º), vê consagrado um conjunto de itens atinentes à sua competência (vd art.º 145.º).
A Constituição, além disso, utiliza o verbo “poder”, quando admite a possibilidade da prática de um ato, como a promulgação ou veto (vd art.º 136.º) e o mesmo verbo na forma negativa quando determina a impossibilidade ou a limitação da prática de um ato, como o caso da dissolução da Assembleia da República (vd art.º 172.º) em determinados momentos.
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Considerando o exposto, há que perguntar quem tem razão na escolha dos vocábulos no discurso da posse do XXI Governo Constitucional: Cavaco ou Costa?
Por mais estranho que pareça, devo dizer que ambos têm a sua razão. É certo que a relação Cavaco-Costa tem sido bastante crispada, com a mostra de desconfianças mútuas, embora com maior visibilidade e insistência da parte do Presidente. No entanto, o Presidente, que sempre ancorou o seu discurso na lógica do poder (até à sua ascensão ao cargo de primeiro-ministro o poder era encarado como prerrogativa de todos os órgãos de soberania, ao passo que a sua linguagem passou a fazer crer que chegar ao poder era chegar ao governo), fala da situação de intangibilidade dos seus poderes, com exceção temporária do poder de dissolução do Parlamento. É excrescente esta referência à não existência temporal desta prerrogativa, que, pela sua recorrência nos últimos tempos, dá a entender, que, a ser possível neste momento, seria utilizada, nitidamente contra o Parlamento, quiçá contra o Governo ora empossado.
Por outro lado, a referência aos poderes presidenciais poderia ter sido feita num contexto mais plausível da afirmação da lealdade institucional para com o Governo e na cooperação para a solução dos problemas que advenham. E, quando mais adiante porfia que tudo fará para lograr um conjunto de linhas circunscreventes da crise, é caso para perguntar o que é que pode fazer em concreto, além do poder de veto e de submissão ao Tribunal Constitucional da apreciação da constitucionalidade de algumas normas oriundas quer do Parlamento quer do Governo, bem como da magistratura de influência.
Por seu turno, António Costa, utiliza a palavra “competências”, quer referindo-se ao Presidente, quer ao Governo, à Assembleia da República e aos Tribunais. O Governante, que acabou de ser empossado, utilizou um vocabulário mais próximo da letra da Constituição, pois, ainda está na fase de lançamento da governação e praticamente ainda não no seu exercício pleno. Por outro lado, tentou esclarecer publicamente as dúvidas surgidas no documento emitido pela Presidência da República no passado dia 23, sobretudo no atinente ao papel do Conselho de Concertação Social, à disciplina orçamental e aos compromisso internacionais, bem como na convicção da reunião de condições de estabilidade. De moções de confiança e orçamentos, nada tinha a dizer.
Se Cavaco, foi impertinente na reiteração das linhas vermelhas ou na porfia da vigilância sobre o Governo, também Costa foi curto ao referir que o Governo é responsável politicamente perante a Assembleia da República, esquecendo que, segundo o teor do art.º 190.º, “o Governo é responsável perante o Presidente da República e a Assembleia da República”. É certo que o n.º 1 do art.º 191.º, quando define a responsabilidade do Primeiro-Ministro, aporta o segmento discursivo da responsabilidade política do Governo: “o Primeiro-Ministro é responsável perante o Presidente da República e, no âmbito da responsabilidade política do Governo, perante a Assembleia da República” (sic). Porém, não me parece que fique diminuída a responsabilidade do Governo perante o Presidente, mediante a personalidade do Primeiro-Ministro.
Não se distingue explicitamente de que tipo é a responsabilidade do art.º 190.º. Mas certamente que é política e institucional. A forma de perceber esta responsabilidade é que será diferente: a iniciativa da formação constitucional do Governo é do Presidente, tendo em conta as condições plasmadas no art.º 187.º; e à Assembleia da República cabe deixar passar ou rejeitar o programa do Governo. A demissão do Governo tem origem no Parlamento pela aprovação da moção de rejeição do seu programa ou de uma moção de censura ou pela não provação de uma moção de confiança. Tem, excecionalmente, origem na apresentação ao Presidente da República do pedido de demissão do Primeiro-Ministro ou, mais excecionalmente ainda, por iniciativa do Presidente para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas (vd art.º 195.º).
Ademais, no âmbito da responsabilidade do Primeiro-Ministro perante o Presidente da República, cabe ao Primeiro-Ministro informar o Presidente “acerca dos assuntos respeitantes à condução da política externa e interna do país” (vd alínea c do n.º 1 do art.º 201.º).
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Já agora, a referência a duas palavras utilizadas pelo Chefe de Estado: “questões” e “dissipar”. Diz o Presidente a determinado passo, sobre os acordos relativos à governação:
“Os referidos documentos são omissos quanto a alguns pontos essenciais à estabilidade política e à durabilidade do Governo, suscitando questões que, apesar dos esforços desenvolvidos, não foram totalmente dissipadas”.

Ora, o Presidente, que nunca tinha dúvidas, resolveu ver questões suscitadas. Porém, as questões não se dissipam, têm (ou não têm) resposta adequada ou satisfatória. O que se dissipam são efetivamente as dúvidas, que foi o que o Presidente teve ou quis ter e não as deu como dissipadas. De qualquer forma, criou uma ambiguidade. E, se tinha dúvidas políticas ou questões a levantar (não falo de convicções ou simpatias), deveria esperar mais umas horas ou dias até ver tudo esclarecido. Não lhe ficou bem essa referência. Não vá acontecer que um dos fautores de insegurança seja o próprio garante da estabilidade!
Depois, já me aborrecem os novos ciclos políticos: em 4 de outubro, começou um novo ciclo político; agora, começou um novo ciclo político; e, a 9 de março, começará um novo ciclo político. Isto faz-me lembrar a cidade em que o I Encontro de Jovens se realizou umas 10 vezes!
Finalmente, não vejo razão para crítica à marcação da hora da posse do Governo. O Presidente do Parlamento deveria ter aceitado a sugestão do PCP. Constitucional e protocolarmente, o Presidente da República precede a Assembleia da República. É questão simbólica, nada mais.  

2015.11.26 – Louro de Carvalho

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