Referi-me
há dias à diferença entre os verbos “indigitar” e “indicar” e verberei a
diferenciação da escolha de um e de outro em relação a duas personalidades
políticas adversárias com vista ao preenchimento do cargo de primeiro-ministro.
Agora
que, na cerimónia da tomada de posse do Governo, o discurso de Cavaco Silva
utiliza a palavra “poderes” e o de Costa utiliza a palavra “competências”,
fiquei com “dúvidas”, que desejei que se dissipassem, ou colocaram-se-me (levantaram-se-me) “questões”, para as quais deveria
encontrar resposta satisfatória. Face a esta situação, lembrei-me de consultar
a Constituição, que, para lá de constituir a nossa Lei Fundamental, também
serve de tira-teimas quando surgem divergências no modo de entender a coisa pública.
Sobre
as palavras “poder” e “poderes”, a Constituição, na sua Parte III, estabelece a
“organização do poder político” e o artigo 108.º estipula, no âmbito da
“Titularidade e exercício do poder”, que “o poder político pertence
ao povo e é exercido nos termos da Constituição”. Depois, o n.º 2 do art.º
111.º faz referência a órgãos de “poder local”, como a outros órgãos,
e o Título VIII da Parte III define a matéria referente ao “poder
local”.
Estas
disposições deixam-nos a ideia de que há dois tipos de poder: o poder soberano
e o poder local. Da caraterização das regiões autónomas resulta, neste
contexto, uma certa indefinição, já que não se trata de órgãos de soberania –
pois o n.º 3 do art.º 225.º estabelece que “a autonomia político-administrativa
regional não afeta a integridade da soberania do Estado e exerce-se no quadro
da Constituição” – mas o art.º 227.º estabelece os poderes das regiões
autónomas.
Também,
no quadro do poder local, que, nos temos constitucionais, compreende a
existência de autarquias locais (vd art.º 235.º/1) – no continente, freguesias,
municípios e regiões administrativas (vd art.º 236.º/1); e nas regiões autónomas,
freguesias e municípios (vd art.º 236.º/2) – se prevê que “a organização
das autarquias locais compreende uma assembleia eleita dotada de poderes
deliberativos e um órgão executivo colegial perante ela responsável” (vd
art.º 240.º/1).
Curiosamente
a nossa Constituição não fala de “separação
e interdependência dos poderes”,
mas de separação e interdependência dos órgãos de soberania (vd
art.º 111.º/1), que
são: “o Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo e os
Tribunais” (vd art.º 110/1).
Estes são órgãos do poder – poder soberano ou exercido a partir do topo do
Estado – e são dotados de poderes, mas que não se esgotam nos poderes nem
configuram todos os poderes. Assim, o n.º 2 do art.º 111.º estipula que “nenhum órgão de soberania, de região
autónoma ou de poder local pode
delegar os seus poderes noutros
órgãos, a não ser nos casos e nos termos expressamente previstos na Constituição
e na Lei”.
Também
são, então, poderes os das regiões autónomas e os das autarquias locais. Todos
estes poderes constituem o poder político – soberano e de outro
teor – e é todo o poder político (e só o poder político e
não outros como o religioso, o parental, científico, técnico…) que “pertence ao povo e é exercido nos termos da Constituição” (vd
art.º 108.º).
A
Constituição fala explicitamente de poderes dos deputados (vd
art.º 156.º) e de poderes
das regiões autónomas (vd art.º 227.º). Porém, mesmo quando se refere
aos órgãos de soberania, tal como a outros órgãos do Estado, a Lei Fundamental
utiliza a designação de “competências”.
As
competências, por um lado, lado configuram as formas de exercício do poder,
mas, por outro, implicam direitos, a que não se deve renunciar, e deveres, a
que não se pode escapar. Assim consideradas, as competências são o poder em
ação emoldurado pelas categorias de dever e direito e podem configurar a
prática de atos próprios ou em relação com outros órgãos ou com outros agentes.
Assim,
por exemplo, o Presidente tem itens de competência
quanto a outros órgãos (vd art.º 133.º), de competência para a prática de atos próprios (vd
art.º 134.º) e de competência nas relações internacionais
(vd
art.º 135.º). E, de
modo semelhante se referem “competência” e “competências” no respeitante aos
outros órgãos do poder soberano, regional ou local. Até o Conselho de Estado,
que não é um órgão de poder, mas “o órgão político de consulta do Presidente da
República” (vd art.º 141.º),
vê consagrado um conjunto de itens atinentes à sua competência (vd
art.º 145.º).
A
Constituição, além disso, utiliza o verbo “poder”, quando admite a
possibilidade da prática de um ato, como a promulgação ou veto (vd
art.º 136.º) e o
mesmo verbo na forma negativa quando determina a impossibilidade ou a limitação
da prática de um ato, como o caso da dissolução da Assembleia da República (vd
art.º 172.º) em determinados
momentos.
***
Considerando
o exposto, há que perguntar quem tem razão na escolha dos vocábulos no discurso
da posse do XXI Governo Constitucional: Cavaco ou Costa?
Por
mais estranho que pareça, devo dizer que ambos têm a sua razão. É certo que a
relação Cavaco-Costa tem sido bastante crispada, com a mostra de desconfianças
mútuas, embora com maior visibilidade e insistência da parte do Presidente. No
entanto, o Presidente, que sempre ancorou o seu discurso na lógica do poder (até
à sua ascensão ao cargo de primeiro-ministro o poder era encarado como
prerrogativa de todos os órgãos de soberania, ao passo que a sua linguagem
passou a fazer crer que chegar ao poder era chegar ao governo), fala da situação de
intangibilidade dos seus poderes, com exceção temporária do poder de dissolução
do Parlamento. É excrescente esta referência à não existência temporal desta
prerrogativa, que, pela sua recorrência nos últimos tempos, dá a entender, que,
a ser possível neste momento, seria utilizada, nitidamente contra o Parlamento,
quiçá contra o Governo ora empossado.
Por
outro lado, a referência aos poderes presidenciais poderia ter sido feita num
contexto mais plausível da afirmação da lealdade institucional para com o
Governo e na cooperação para a solução dos problemas que advenham. E, quando
mais adiante porfia que tudo fará para lograr um conjunto de linhas
circunscreventes da crise, é caso para perguntar o que é que pode fazer em
concreto, além do poder de veto e de submissão ao Tribunal Constitucional da
apreciação da constitucionalidade de algumas normas oriundas quer do Parlamento
quer do Governo, bem como da magistratura de influência.
Por
seu turno, António Costa, utiliza a palavra “competências”, quer referindo-se
ao Presidente, quer ao Governo, à Assembleia da República e aos Tribunais. O
Governante, que acabou de ser empossado, utilizou um vocabulário mais próximo
da letra da Constituição, pois, ainda está na fase de lançamento da governação
e praticamente ainda não no seu exercício pleno. Por outro lado, tentou
esclarecer publicamente as dúvidas surgidas no documento emitido pela
Presidência da República no passado dia 23, sobretudo no atinente ao papel do
Conselho de Concertação Social, à disciplina orçamental e aos compromisso
internacionais, bem como na convicção da reunião de condições de estabilidade. De
moções de confiança e orçamentos, nada tinha a dizer.
Se
Cavaco, foi impertinente na reiteração das linhas vermelhas ou na porfia da
vigilância sobre o Governo, também Costa foi curto ao referir que o Governo é
responsável politicamente perante a Assembleia da República, esquecendo que,
segundo o teor do art.º 190.º, “o Governo é responsável perante o Presidente da
República e a Assembleia da República”. É certo que o n.º 1 do art.º 191.º,
quando define a responsabilidade do Primeiro-Ministro, aporta o segmento
discursivo da responsabilidade política do Governo: “o Primeiro-Ministro é
responsável perante o Presidente da República e, no âmbito da responsabilidade
política do Governo, perante a Assembleia da República” (sic). Porém, não me parece que fique
diminuída a responsabilidade do Governo perante o Presidente, mediante a personalidade
do Primeiro-Ministro.
Não
se distingue explicitamente de que tipo é a responsabilidade do art.º 190.º.
Mas certamente que é política e institucional. A forma de perceber esta
responsabilidade é que será diferente: a iniciativa da formação constitucional
do Governo é do Presidente, tendo em conta as condições plasmadas no art.º
187.º; e à Assembleia da República cabe deixar passar ou rejeitar o programa do
Governo. A demissão do Governo tem origem no Parlamento pela aprovação da moção
de rejeição do seu programa ou de uma moção de censura ou pela não provação de
uma moção de confiança. Tem, excecionalmente, origem na apresentação ao
Presidente da República do pedido de demissão do Primeiro-Ministro ou, mais
excecionalmente ainda, por iniciativa do Presidente para assegurar o regular
funcionamento das instituições democráticas (vd art.º 195.º).
Ademais,
no âmbito da responsabilidade do Primeiro-Ministro perante o Presidente da República,
cabe ao Primeiro-Ministro informar o Presidente “acerca dos assuntos
respeitantes à condução da política externa e interna do país” (vd
alínea c do n.º 1 do art.º 201.º).
***
Já
agora, a referência a duas palavras utilizadas pelo Chefe de Estado: “questões”
e “dissipar”. Diz o Presidente a determinado passo, sobre os acordos relativos
à governação:
“Os referidos documentos são omissos quanto a
alguns pontos essenciais à estabilidade política e à durabilidade do Governo,
suscitando questões que, apesar dos
esforços desenvolvidos, não foram totalmente dissipadas”.
Ora,
o Presidente, que nunca tinha dúvidas, resolveu ver questões suscitadas. Porém,
as questões não se dissipam, têm (ou não têm) resposta adequada ou
satisfatória. O que se dissipam são efetivamente as dúvidas, que foi o que o
Presidente teve ou quis ter e não as deu como dissipadas. De qualquer forma,
criou uma ambiguidade. E, se tinha dúvidas políticas ou questões a levantar (não
falo de convicções ou simpatias),
deveria esperar mais umas horas ou dias até ver tudo esclarecido. Não lhe ficou
bem essa referência. Não vá acontecer que um dos fautores de insegurança seja o
próprio garante da estabilidade!
Depois,
já me aborrecem os novos ciclos políticos: em 4 de outubro, começou um novo ciclo
político; agora, começou um novo ciclo político; e, a 9 de março, começará um
novo ciclo político. Isto faz-me lembrar a cidade em que o I Encontro de Jovens
se realizou umas 10 vezes!
Finalmente,
não vejo razão para crítica à marcação da hora da posse do Governo. O Presidente
do Parlamento deveria ter aceitado a sugestão do PCP. Constitucional e protocolarmente,
o Presidente da República precede a Assembleia da República. É questão simbólica,
nada mais.
2015.11.26 –
Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário