segunda-feira, 2 de novembro de 2015

O Estado Social na ótica de Isabel Jonet

É notável o trabalho de Isabel Jonet à frente dos bancos alimentares em Portugal. Não quereria que o seu mérito fosse posto em causa em razão de algumas afirmações que profere de vez em quando, por se revestirem de alguma controvérsia e até inverdade. E, do meu ponto de vista, tal não era necessário.
Muito embora cada cidadão seja livre de expressar as suas ideias e de selecionar o modo e o momento da sua pronúncia, teria preferido que esta benemérita senhora, em vez de o fazer no dia de hoje, 2 de novembro, tivesse dado a entrevista ao JN antes das eleições legislativas ou então, se é para mobilizar as boas vontades para a próxima campanha do Banco Alimentar, poderia fazê-lo lá mais para o fim do mês. Não corria do risco de as pessoas se esquecerem e aproveitava, na mesma, a ocasião em que a maior parte dos trabalhadores e pensionistas recebe a sua compensação pecuniária pelo trabalho que vêm prestando ou que prestaram em tempos que já lá vão.
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Mas eu tenho de me pronunciar sobre os conteúdos das suas declarações, que têm todos ou quase todos a ver com o Estado Social.
Não é aceitável o modo como distingue caridade e solidariedade. Não se pode reduzir a caridade ao “amor”, se entendido de forma exclusivamente abstrata ou se entendido como a esmola eventual ou a consecução de uma estrutura social que suscite a vontade do cidadão para contribuir periodicamente de forma esmoler para a sobrevivência de outrem.
A caridade, entendida no sentido cristão, é o amor para com o próximo assumido, vivido e exercido à imagem da gratuitidade de Deus e do seu Cristo, como Este mandou e fez – com todas as consequências de abnegação, oblação e contributo para a promoção do reconhecimento da dignidade dos outros como concidadãos e irmãos, a começar pelos mais desprotegidos. Esta atitude implica a resposta pronta a situações urgentes e de carência e a promoção de aquisição consolidada de ferramentas da parte de cada um para a procura autónoma de meios de vida pessoal, familiar, profissional e social.
Entendida no sentido social, a caridade assume as caraterísticas ora enunciadas e com aquela motivação do lado dos cristãos. Todavia, estende-se aos não cristãos e aos não crentes, mas que têm o sentido do outro, o sentido da comunidade. Dantes, chamava-se-lhe beneficência e benemerência; há uns tempos a esta parte, passou a chamar-se-lhe solidariedade (do latim, solidus – consistente, inabalável, inteiro, seguro). Ora, este vocábulo aplica-se à atitude de abertura ao outro, à comunidade, à sociedade; aplica-se à ação de generosidade, dádiva, empréstimo, mutualidade; e aplica-se ao efeito, ao resultado, à situação. A solidariedade é o fator de coesão social (do latim, cohaesio – aderência, associação íntima), como o é de coesão grupal, familiar, profissional e política.
Por aqui se vê que nem a caridade social fica vedada ao Estado e aos seus operadores nem a solidariedade é exclusiva do mesmo Estado. Muito menos as empresas, as IPSS, as associações, as sociedades, as fundações e outras agremiações exercem a solidariedade por conta de umas gotinhas derramadas generosamente lá do alto pelo Estado. A nossa experiencia empresarial, mutualista, associativa e societária mostra bem o alcance da caridade e da solidariedade. O único reparo que se pode fazer em parte é ficar-se pela resposta às emergências, pela dimensão assistencialista, pela eventualidade, pela burocracia e nem sempre dar a cana para a pesca do peixe e ensinar a pescar.
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Concordo com a benemérita, quando relativiza a retoma da economia, apontando-lhe a fragilidade e o facto de não ter chegado às famílias. Não obstante, não se percebe como aceita pacificamente as conclusões contraditórias de um estudo que revela que “as pessoas não têm mais rendimentos, mas sentem-se menos pobres”. Não é, de todo, a assistência que os bancos alimentares e outras entidades de solidariedade, bem como um RSI dado pelo Estado, que lhes dará a sensação de menor pobreza, a não ser em casos de necessidade pouco acentuada. Com efeito, pessoas que torcem o nariz a qualquer dádiva (em bom estado de conservação) permitem a formulação de dúvida sobre as suas reais necessidades.
É razoável declarar que é fundamental manter os empregos às pessoas, mas não é aceitável a não objeção à tentativa da consecução da produtividade e da competitividade com base nos baixos salários ou na precariedade laboral e sem a promoção do esforço da harmonização da vida profissional com a vida familiar.
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Apesar de considerar que as matérias já abordadas configuram, já por si, dimensões importantes do Estado Social, devo referir-me ao conceito de Estado Social expresso por Isabel Jonet.
Acreditar “num Estado Social que chegue verdadeiramente a quem dele necessita” ou afirmar que “o Estado Social tem que ser para os mais fracos dos mais fracos” é esquecer a realidade social e as responsabilidades do Estado.
Não discuto, de momento, as funções constitucionais do Estado nem as teorias sobre o papel do Estado. Tenho que me ater às responsabilidades inerentes ao estado a que o Estado chegou. Eu explico. Se governos sucessivos instituíram, quase em regime de exclusividade, um sistema nacional de saúde, um sistema educativo público, um mecanismo de captação de todos ou quase todos os meios de contribuição para a Segurança Social e Fundos de Pensões ou a apropriação de muitos bens culturais – não se pode agora vir a obrigar ou sequer a propor aos atuais utentes uma contrapartida financeira substancial como condição para auferir destes serviços da parte do Estado (sobretudo essenciais). Qualquer reperspetivação das responsabilidades estatais, resultante do consenso democrático possível, deve atingir apenas os novos utentes/contribuintes.
Quero dizer que, em especial, em relação à proteção social, o Estado tem agido mal ao meter no mesmo saco os pensionistas que o são em razão do regime de contribuição para a Segurança Social e os que auferem de uma pensão social de cidadania a que o Estado tem de prover, até porque, em tempos, não exigiu a contribuição previdencial ou os hoje pensionistas sociais não tinham capacidade financeira contributiva. No primeiro caso, o Estado recebedor tem de cumprir sob pena de inobservância da justiça comutativa, por força do princípio do ut des, e desembolsar a partir dos fundos da Segurança Social e, de futuro, das verbas do orçamento do Estado (OE) em relação aos funcionários públicos, uma vez que barrou as inscrições na Caixa Geral de Aposentações; em relação aos pensionistas sociais, as pensões devem ser cobertas por verbas do OE. De resto, não faz sentido, nesta fase da vida contributiva dos beneficiários da ADSE, remetê-los para um seguro de saúde, ainda que voluntariamente, correndo o risco de asfixiar esta organização e apressando, em relação aos que permaneçam, o recurso ao OE.
É certo que Isabel Jonet defende o acesso de todos à educação, mas entende que “a frequência na educação é que pode ser proporcional ao rendimento de cada família”. A isto eu gosto de responder: que ninguém obrigou o Estado a assumir por inteiro os encargos com a educação; e que, embora o princípio do cliente-pagador da educação pudesse, no limite, ser aceitável, deveria ser criado um mecanismo de verdadeiro escrutínio à real situação económica das famílias, já que, a manter-se a situação atual da fé exclusiva na declaração de rendimentos, sucederá que outros, como eu, vivendo de pouco acima do ordenado médio, continuarão a pagar os serviços públicos como ricos, ao passo que outros, 3 ou 4 vezes mais ricos, mas cujos rendimentos são só parcialmente declarados, continuarão a beneficiar da ação social escolar, a bolsa de estudo, as taxas moderadoras em saúde, etc. – e são notórios os seus sinais de riqueza!
Depois, a mencionada benemérita quer sugerir um alívio dos encargos com o Estado Social? Comece, a título de exemplo, por exigir: o verdadeiro escrutínio da condição económica de cada família; a assunção dos encargos com a educação por parte das famílias na escola privada; a capacitação de atendimento dos estabelecimentos públicos de saúde e o emagrecimento dos auxílios aos hospitais privados; a valorização da escola pública; a educação para a saúde, para a poupança e para a racional orientação de vida; a anulação da duplicação de serviços públicos do mesmo tipo na mesma localidade (exemplo: matrizes prediais nos serviços de finanças e registos prediais nas conservatórias); a eliminação do apoio público a bancos e outras empresas privadas, sobretudo quando, por via de administração ruinosa e enganosa, os capitais se evadem aos milhares e aos milhões; a cassação das pensões obscenamente milionárias, sobretudo se resultantes de diminuto tempo de regime contributivo; a proibição pura e simples da encomenda de serviços do Estado, nomeadamente no atinente a matéria legislativa, a sociedades privadas de advogados, de arquitetos, de engenheiros e de economistas; e o combate cerrado à corrupção, à economia paralela e à fuga de capitais.
É óbvio que o Estado Social tem que tratar como primeira prioridade “os mais fracos dos mais fracos”, mas não pode ficar-se por aí. A classe média baixa e a média-média é diariamente exaurida até ao tutano em impostos, taxas, taxinhas e tarifas e contributos para instituições de benemerência, associações, ONG, Cáritas, Cruz Vermelha, campanhas de angariação de fundos e também os bancos alimentares. E já agora para onde vãos pesadíssimos impostos?
O Estado Social também tem de pagar aos seus servidores. Ou quererá Isabel Jonet que sejam as empresas ou os peditórios à classe média a pagar aos deputados, aos membros do Governo, ao Presidente da República, aos magistrados e aos diretores-gerais e equiparados?
Ademais, dizer que “tínhamos um modelo de sociedade baseado numa esperança de vida de 60 anos” e que “hoje não são raros os idosos que com 90 anos” suscita-me a resposta no sentido de que a grande maioria dos sexagenários ainda se encontra a trabalhar e os nonagenários já poucos alimentos consomem. Depois, se não fossem os pensionistas a obviar ao desemprego de filhos e à alimentação, alojamento, educação e saúde dos netos, a crise teria sido de efeitos muito maiores. E a maior parte dos componentes da crise deve-se à rutura ética de muitos e poderosos.
Bem gostaria que os construtores de opinião pública fossem mais cordatos, sensatos e conhecedores daquela sabedoria feita de ciência e ponderação! E talvez o colapso do Estado de Direito Democrático e Social se retardasse pelo menos uma boa dúzia de lustros…

2015.11.02 – Louro de Carvalho

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