domingo, 8 de novembro de 2015

Não à empresarialização e à burocratização da justiça

Como já vem sendo hábito de há uns anos a esta parte, o Conselho Superior da Magistratura (CSM) organizou para os dias 6 e 7 de novembro mais um encontro anual, que desta vez, decorreu em Penafiel (Comarca do Porto Este), no Penafiel Park Hotel & Spa.
Com efeito, o X Encontro Anual do Conselho Superior da Magistratura, que se desenvolveu em torno do tema “Gestão estratégica dos Tribunais”, teve o apoio da Câmara Municipal de Penafiel e da Presidência do Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este, contou com a participação de magistrados judiciais portugueses (a maioria), espanhóis e franceses e os subtemas temas abordados estão relacionados com o novo modelo de gestão dos tribunais. Ademais, a representação do Conselho Superior da Magistratura foi presidida pelo seu presidente, Juiz Conselheiro António Henriques Gaspar, que também é presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), o qual fez, na sessão solene de abertura pertinentes afirmações, que serão destacadas mais adiante.
Por seu turno, o encerramento dos trabalhos coube ao vice-presidente do Conselho Superior da Magistratura, Juiz Conselheiro António Joaquim Piçarra.
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Os subtemas abordados em alinhamento como o tema da “Gestão Estratégica dos Tribunais” foram distribuídos por 3 painéis temáticos, com rubricas introduzidas pelos intervenientes previamente designados, seguidos de debate moderado por personalidades antecipadamente conhecidas e do âmbito da magistratura judicial. Assim, os painéis foram os seguintes:
- “Gestão processual e atividade do Juiz”, desdobrado em: “Os objetivos processuais e a avaliação de desempenho”; “Os valores processuais de referência como instrumento de gestão”; e “Os valores processuais de referência: critérios.
- A Experiência comparada na gestão dos tribunais”, desdobrado em: “A experiência da Nueva Oficina Judicial de Espanha”; e “A implementação da Loi Organique pour les Lois de Finances (Le programme Justice – Judiciaire)”.
- “Papel, dimensão, limites e coordenação das competências intervenientes na gestão do Tribunal”, desdobrado em: “O Juiz Presidente e os Vogais do Conselho Superior da Magistratura”; “Os Juízes em exercício de funções jurisdicionais e a gestão dos tribunais”; e “O Juiz Presidente e os Juízes em exercício de funções jurisdicionais”.
Também no primeiro dia, foi organizado um painel-debate, subordinado à temática Gestão do Tribunal e qualidade da Justiça”, com intervenção de vários magistrados judiciais, mas sob a moderação de Mariana Oliveira, jornalista do Público.
Os pontos agendados para reflexão neste painel/debate foram os seguintes:
- A gestão do tribunal e o planeamento estratégico
. Os objetivos processuais
. Os valores processuais de referência
. A avaliação do desempenho do tribunal e do juiz
- A qualidade do sistema de justiça
. Independência judicial
. Acesso à Justiça
. Recursos humanos, materiais e tecnológicos
- O cidadão e a justiça
. Transparência e prestação de contas
. Informação e comunicação
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Além das intervenções oportunas sobre o tema aglutinador do X Encontro, ressaltou a contestação da reforma judicial em curso, ou seja, o facto de os juízes estarem contra a empresarialização da justiça.
Foram diversas as vozes que se ergueram em Penafiel contra a reforma da justiça imposta há um ano pelo Governo defunto. O próprio Presidente do STJ e do CSM teceu considerações contra a atual reforma:
“Os conceitos nómadas como a eficiência, eficácia e produtividade, se forem considerados numa lógica empresarial donde foram importados, não são prestáveis para a definição dos princípios que devem enquadrar as práticas na administração da justiça”.
Segundo Henriques Gaspar, não podem transpor-se para a justiça os modelos da gestão empresarial, dado que a justiça e a empresa têm “ritmos, regras e exigências” diferentes.
Por outro lado, penso, o desígnio e os objetivos da empresa e da justiça são diferentes e podem mesmo ser divergentes. A empresa visa o lucro, pelo que aposta na eficiência e eficácia, embora deva pautar-se por critérios de ética e equidade, ao passo que o escopo da justiça é realizar o direito, aplicando a lei e zelando pela equanimidade. Cabe ainda à justiça, como supletiva das insuficiências políticas e administrativas, constituir-se como retorno ao legislador para que este melhore a própria lei e se aperfeiçoe a realização do direito. Cabe ainda à justiça avaliar a justeza, a equidade e a sanidade da empresa; e não compete à empresa avaliar a justiça, embora possa eventualmente reclamar e recorrer das decisões dos operadores da justiça.
Por aqui se vê que não pode a empresa ditar os princípios da justiça, mesmo que apenas no âmbito da administração e gestão. A administração e gestão da justiça devem ser o espelho da própria justiça e não compaginadoras dos seus ditames.
Por isso, o presidente do STJ declara com toda a razão que “não pode [a justiça] ser colonizada por valores setoriais, técnicas, imposições, finalidades ou até a inspiração do modelo managerial das empresas”.
E, sobre a gestão dos tribunais, Henriques Gaspar entende que “a definição e a verificação dos níveis de cumprimento de objetivos têm como finalidade sentir os níveis de eficiência da organização enquanto tal e não a avaliação individual dos juízes”.
Porém, mais contundente nas críticas se levantou a voz de Maria José Costeira, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), ao garantir que “os juízes estão contra a reforma de uma forma cada vez mais violenta” e que “os juízes não estão interessados em participar na reforma porque não estão a ser chamados para participar”.
A nova Secretária de Estado da Justiça, Teresa Anjinho, apesar das críticas e reclamações que ouviu da parte dos magistrados sobre a reforma da justiça, fez uma “avaliação positiva da reforma judicial em vigor”, pois, segundo ela, “melhorou claramente a gestão dos tribunais e o conhecimento concreto dos problemas”.
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É caso para perguntar em que ficamos.
Se o presidente do STJ faz o discurso que fez é porque efetivamente a justiça corre riscos efetivos de empresarialização – o que não se afigura como singular novidade dado o contexto pseudoempresarializante dos serviços do Estado nos últimos tempos. E, ao olharmos para o que se passa no mundo empresarial não é descabido temer pela falência do Estado e da justiça que este tem de administrar.
Todavia, não é suportável a posição da presidente da ASJP, não só porque os juízes não podem estar de forma cada vez mais violenta contra uma reforma judicial (mas devem fazer imperar a forçada razão, sob pena de deixarem de ser juízes e passarem a pistoleiros e mesmo guerrilheiros), mas também porque, embora seja racional e importante a sua participação, a bondade da reforma não se circunscreve ao facto se os juízes participarem nela.
Porém, nada me estranha nesta posição corporativa. Com efeito, do meu ponto de vista, são efetivamente os magistrados e os funcionários judiciais que mais contribuem para o descrédito da justiça. São eles que a tornam excessivamente solene, burocrática, pesada, quase inacessível, lenta, ineficaz e desigual.
Veja-se o aparato de uma audiência em tribunal. A título de exemplo: só as vestes intimidam um cidadão que por ali passe pela primeira vez; a maneira como se recebe o juiz, que se senta primeiro que os demais, é anacrónica; o poder do juiz a chamar a atenção de todos por tudo e por nada é excessivamente discricionário; o responder de pé ao meritíssimo é constrangedor; a extensão e hermetismo do texto de sentenças e acórdãos são fonte de dúvidas e perplexidades; e a ligeireza de alguns comentários transposta para estes documentos banaliza a administração da justiça.
Dizem que os juízes se limitam a aplicar a lei. Não o creio tout court. Quantas vezes não suscitam o incidente da inconstitucionalidade e/ou da ilegalidade do normativo a aplicar! E, pelo menos, na fundamentação de sentença ou de acórdão não fazem constantes apelos à jurisprudência e à doutrina? Ora, a jurisprudência provém dos tribunais superiores e a doutrina, como ciência da lei, provém dos especialistas.
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Por tudo isto, há que ter uma justiça que realize o direito definido na lei e que, pelo efeito de retorno, dê ao legislador a possibilidade de melhorar a lei, para que se realize em pleno o direito. Em conformidade com este pressuposto, é de rejeitar em absoluto a empresarialização da justiça, mas também a sua burocratização e excessiva solenidade, já que a justiça é a realização suprema do direito, da democracia e da sociedade.
Por outro lado, é de aceitar e estender aos tribunais o que a Procuradora-Geral da República defendeu na cidade da Guarda, a 6 de novembro, ao advogar que os funcionários do Ministério Público têm de ser “mais especializados” (através da formação inicial e da formação contínua e especializada) e ao exigir “um maior cuidado e um maior rigor no acesso à profissão”.
Não será também necessário exigir “um maior cuidado e um maior rigor no acesso à profissão” por parte dos magistrados judiciais e do ministério público? Bastarão os critérios académicos e psicotécnicos? E porque não os critérios de ética e humanismo?

2015.11.07 – Louro de Carvalho

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