quinta-feira, 19 de novembro de 2015

A Igreja na alegoria da “porta”

O Papa Francisco, na sua catequese semanal do dia 18 de novembro, colocou a Igreja e as famílias na rota do acolhimento da misericórdia. Começando por verificar que chegámos ao limiar do Jubileu da Misericórdia, apresenta-nos, não a “porta santa” física do jubileu, mas “a grande porta da misericórdia de Deus”. É aquela porta que “acolhe o nosso arrependimento dando-nos a graça do perdão divino”.
Porém, para atinarmos com esta grande porta “generosamente aberta”, devemos reconhecer todos que somos pecadores, uma vez que “tem cada um de nós coisas que nos pesam”. Depois, é a própria misericórdia que nos encoraja a cruzar o limiar da sua porta. E é a misericórdia de Deus que O leva a nunca se cansar de perdoar e de esperar por nós. “Ele guarda-nos e está sempre próximo de nós”.  
Francisco, por outro lado, não deixa de apontar o papel do Sínodo dos Bispos, do passado mês de outubro, no encorajamento às famílias e à Igreja a encontrarem-se na soleira da porta aberta do Deus misericordioso. Ensina o Papa que a Igreja é encorajada a abrir as suas portas para sair com o Senhor ao encontro dos filhos e filhas que estão no caminho, às vezes inseguros e mesmo perdidos, nestes tempos difíceis. Por seu turno, as famílias, particularmente as famílias cristãs, são encorajadas a abrir a sua porta ao Senhor, que aguarda pacientemente o momento de entrar, trazendo a sua bênção e amizade.
Este apontamento de Francisco às famílias faz-nos lembrar a passagem do Apocalipse com palavras dirigidas à Igreja de Laodiceia: Olha que Eu estou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, Eu entrarei na sua casa e cearei com ele e ele comigo” (Ap 3.20). Fazer Deus participante da nossa mesa e Ele fazer-nos participantes da sua mesa – a comum comensalidade – constitui o expoente máximo da intimidade de Deus com o homem, a família humana e a Igreja. É o sinal benevolente da misericórdia de Deus confiada à Igreja, família de famílias e locus da comunhão de Deus com os homens e dos homens uns com os outros em Deus Pai, em Cristo, pelo Espírito Santo.
Vêm também à nossa memória as palavras do Mestre a propósito do dinamismo do amor de Deus que, graças à sua misericórdia, nunca nos deixa na orfandade ou em qualquer abandonado, gravadas pelo Evangelho de São João:
“Se alguém me tem amor, há de guardar a minha palavra; e o meu Pai o amará, e Nós viremos a ele e nele faremos morada. Quem não me tem amor não guarda as minhas palavras; e a palavra que ouvis não é minha, mas é do Pai, que me enviou.” (Jo 14,23-24).

E tanto faz dizer que Deus é misericórdia porque é amor como dizer que Deus é amor porque é misericórdia. Ele até mostra o seu poder quando se mostra misericordioso e perdoa (da Liturgia).
Entretanto, temos de perceber e aceitar, segundo o Bispo de Roma, que, se a porta da misericórdia divina está sempre aberta, “também as portas das nossas igrejas, as portas das nossas comunidades, as portas das nossas paróquias, as portas das nossas instituições, as portas das nossas dioceses “devem estar abertas”, para que “assim todos possamos sair a levar aos outros esta misericórdia de Deus”. Do seu lado, o Jubileu patenteia “a grande porta da misericórdia divina” e, ao mesmo tempo, postula a abertura das “pequenas portas das nossas igrejas para deixar entrar o Senhor”, para que se cumpra a Sua vontade plasmada nas passagens o Apocalipse e do Evangelho de João acima transcritas, bem como para “deixar sair o Senhor” sempre que O tenhamos “prisioneiro das nossas estruturas, do nosso egoísmo e de tantos outros fatores limitadores”. De acordo com estas passagens citadas e com a prerrogativa de liberdade com que o homem, criado à imagem e semelhança de Deus, foi dotado, o Senhor, quando bate à porta, não a forçando, mas pedindo autorização para entrar.
Entretanto, o Pontífice coloca-nos perante a situação de o Senhor bater à porta do nosso coração. E que faremos? Estaremos em consonância com a última visão do autor do Livro do Apocalipse que assim profetiza o estado da Cidade de Deus: “As suas portas não se fecharão de dia, pois nela não haverá noite!”? Com efeito, Deus colocou-nos num mundo em que as portas não se fecham à chave. Porém, a tendência vai no sentido de que a situação de portas blindadas se torna normal. Por isso, o Papa faz o lancinante apelo a que não nos verguemos à ideia de aplicar este mecanismo de portas blindadas à nossa vida e à vida da família, da cidade, da sociedade – em especial à vida da Igreja. Na verdade, “uma Igreja inóspita, tal como uma família fechada sobre si mesma, mata o Evangelho e torna árido o mundo” – ensina o Pontífice.
***
A assunção da alegoria das “portas” – limiares, passagens, fronteiras – torna-se crucial (e eloquente, acrescente-se) nos dias de hoje. Com efeito, a porta é para guardar, mas não para repelir. Depois, uma porta nunca deve ser forçada, muito menos arrombada. Deve, antes, pedir-se licença dado que “a hospitalidade brilha na liberdade do acolhimento e torna-se obscura na prepotência da invasão”. Mas, se ninguém bate à porta? Deve abrir-se com frequência para ver se lá fora está alguém à espera e talvez sem a coragem ou até sem a força para bater à porta. E Francisco interroga-se sobre “quantas pessoas não haverá que perderam a confiança e não têm a coragem de bater à porta do nosso coração cristão, às portas das nossas igrejas”. Assim, é urgente que nunca mais aconteça que estejam ali sem coragem, porque lhes tirámos a confiança.
Porque a porta diz muito do que é a casa e também a Igreja (e, quando se fala de igrejas aqui, tem-se em vista sobretudo as comunidades, de que torna símbolo o templo e a sua gestão), “a gestão da porta requer discernimento e deve inspirar grande confiança”.
A este respeito, o Papa tem uma palavra de gratidão para com todos os guardiões das portas – dos condomínios, das instituições civis e das próprias igrejas (aqui, “templos”), pelo humanismo destas pessoas e pelo simbolismo e função das portas. Muitas vezes – refere – a prontidão e a gentileza da receção oferecem uma imagem de humanidade e de acolhimento a toda a casa, logo a partir da entrada. Há que aprender com estes homens e com estas mulheres, que são guardiões e guardiãs dos lugares de encontro e de acolhimento da cidade do homem.  
Na verdade, bem sabemos – continua – que nós próprios somos os guardiões e servos da Porta de Deus. Ora, a porta de Deus chama-se Jesus e é Ele que lança a sua luz sobre todas as portas da vida, compreendidas entre o nascimento e a morte. A este respeito, no quadro do discurso do rebanho e do Bom Pastor, Jesus assegurou: “Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim estará salvo; há de entrar e sair e achará pastagem.” (Jo 10,9). Ele é efetivamente a porta por onde nos faz entrar e sair. Porém, é de considerar que o rebanho de Cristo, a casa de Deus não é uma prisão, mas um abrigo.
Por outro lado, Jesus demarca-se do mercenário, que não dá a vida pelas ovelhas, mas quer o soldo, e do ladrão, que não entra pela porta, mas por outro lado (flanco, janela, teto…), porque tem intenções funestas, ou seja, entrar no aprisco para enganar as ovelhas e aproveitar-se delas.  
Ora, nós devemos passar pela porta e escutar a voz do Bom Pastor, pois, ao sentirmos, o seu tom de voz, estamos seguros e salvos; podemos entrar sem medo e sair sem perigo.
No discurso do Bom Pastor, diz o Papa, também se evoca o perfil do guardião do rebanho (o porteiro), que tem o encargo de abrir a porta ao bom pastor (cf Jo 10,2). Com efeito, se o guardião do aprisco escuta a voz do pastor, abre e faz entrar todas as ovelhas que o pastor traz, mesmo as que se tinham perdido no bosque e que o pastor andou a recuperar. Não é o guardião, que ouve a voz do pastor – o secretário paroquial ou a secretaria da paróquia –, que escolhe as ovelhas. Estas são todas convidadas, são escolha do pastor. Nestes termos, garante o Bispo de Roma, a Igreja a porteira, e não a patroa, da Casa do Senhor.
Depois, aponta o exemplo da Família de Nazaré, que sabe muito bem o que representa uma porta aberta ou fechada para quem espera um filho e não encontra um abrigo para ele, para o livrar do perigo. Ao invés, as famílias cristãs fazem do limiar da sua casa um pequeno-grande sinal da Porta da misericórdia e do acolhimento de Deus. E é em nome da imensidão desta grande misericórdia que todos e todas as famílias hão de exigir de todos, nomeadamente da autoridades públicas, o respeito pelos direitos da infância (a jornada dos direitos da criança decorrerá no próximo dia 20) e se reconhecem no dever de proteger as crianças e colocar o bem das mesmas acima de qualquer outro critério, de modo que não voltem a ser submetidos a quaisquer formas de escravidão, maus-tratos, exploração e mesmo recrutamento militar. Ninguém pode esquecer o dever de ajudar as famílias a garantir a todos, filhos e filhas, o direito à escola e à educação.
Por outro lado, é próprio da Igreja dever e desejar ser reconhecida em todos os cantos da Terra – diz o Papa – como a “guardiã” de um Deus que bate à porta, como o “acolhimento” de um Deus que não fecha a porta na cara de ninguém com o pretexto de esse ou essa não ser da casa.
É neste espírito que se viverá o Jubileu que se aproxima: será a porta santa, a porta da grande misericórdia de Deus e, por conseguinte, a porta do nosso coração para todos recebermos o perdão de Deus e, ao mesmo tempo, darmos à nossa volta o nosso perdão, acolhendo a todos os que baterem à nossa porta.
Na certa que a memória da apresentação de Maria, a celebrar a 21 de novembro, levará a Igreja a redescobrir e a agradecer ao Senhor a riqueza da vocação dos homens e das mulheres que, na vida eremítica ou do mosteiro, dedicam a vida a Deus na viva contemplação, de modo que, pela oração e operativo silêncio, cumpram a sua nobre missão de proximidade com Deus, intercedendo por que as famílias, as igrejas (comunidades) escancarem as suas portas espirituais e físicas para que Deus entre e saia como Lhe aprouver e todas as ovelhas, escolhidas e convidadas pelo Pastor, passem à vontade pela porta do aprisco, à voz do seu Pastor e Guia.
É o desígnio da misericórdia que faz que Deus e homem não sejam os extremos duma oposição, mas se procurem desde sempre, porque Ele reconhece no homem a Sua própria imagem, e o homem só se reconhece a si mesmo olhando para Ele. Na realidade, a misericordiosa comunhão entre divino e humano, realizada plenamente em Jesus, é a nossa meta, o ponto de chegada da História, segundo o desígnio do Pai. É a bem-aventurança do encontro entre a nossa debilidade e a sua grandeza, a nossa pequenez e a sua misericórdia, que nos preencherá totalmente.
2015.11.18 – Louro de Carvalho


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