Recordo
o episódio da entrada de um padre nas suas paróquias, que se apresentou por si próprio,
sem o dedo indicador de algum dignitário da cúria episcopal ou de algum
hierarca local. Porém, a homilia da Eucaristia que marcou a sua posse como
pároco centrou-se no Evangelho das bem-aventuranças (vd
Mt 5,1-12). Era o dia
1 de novembro de 1979, da Solenidade de todos os Santos.
Também
me vem à memória o caso do cónego José Cardoso de Almeida, cujo Evangelho da
última missa que celebrou era o das bem-aventuranças. Era o III Domingo do
Tempo Comum do ano A (29 de janeiro de 1984) e ele faleceu na manhã de 30 de
janeiro, o dia seguinte.
Parece-me
auspicioso o facto de o Evangelho das bem-aventuranças marcar o termo da vida
terrena de um padre especial, no caso, um cónego que se dedicou à inovação na
pastoral das catequeses, alargando-a, contra a inércia de hábito ancestral, a
todas as idades e criando manuais para os próprios pais – isto sem falar da
dedicação às causas da pastoral familiar e juvenil.
Sobre
as vantagens, para as respetivas comunidades, da proclamação do Evangelho das bem-aventuranças
no momento da tomada de posse de um jovem pároco, talvez Deus possa dizer
melhor do que eu, bem como as mesmas comunidades. Mas a mim parece-me que para
Deus nada acontece por acaso, não fosse Ele capaz de escrever direito por linhas
tortas, quando nós, ao invés, escrevemos torto por linhas direitas.
***
Focando-nos
na Solenidade de Todos os Santos,
convém referir, em primeiro lugar, que Aquele que é Santo, Senhor e Altíssimo é
Jesus Cristo (Tu
solus Sanctus, tu solus Dominus, tu solus Altissimus), como se canta ou reza nas missas
das Solenidades e das Festas litúrgicas. Porém, como Jesus veio ao mundo para
que todos tenham a vida e a tenham em abundância (cf
Jo 10,10), mandou
que fôssemos santos ou perfeitos à imagem do Pai Celeste: “Sede perfeitos como é perfeito o vosso
Pai celeste” (Mt 5,48). E o apóstolo São Pedro, na sua primeira carta, na exortação
à santidade, recomenda:
“De ânimo
preparado para servir e vivendo com sobriedade, ponde a vossa esperança na
dádiva que vos vai ser concedida com a manifestação de Jesus Cristo. Como
filhos obedientes, não vos conformeis com os antigos desejos do tempo da vossa
ignorância; mas, assim como é santo Aquele que vos chamou, sede santos,
vós também, em todo o vosso proceder, conforme diz a Escritura: Sede
santos, porque Eu sou santo.” (1Pe
1,13-16).
O passo da
Escritura que Pedro tem em mente é o seguinte, do Levítico: “Santificai-vos e sede santos, porque Eu sou
o SENHOR, vosso Deus” (Lv 20,7).
Ora,
na esteira do convite veterotestamentário, retomado em Mateus e na primeira
carta de Pedro, a Igreja católica tem pregado a vocação universal à santidade. Em
especial, o capítulo V da Constituição Dogmática sobre a Igreja, Lumen Gentium, do Concílio Vaticano II,
afirma-a categoricamente:
“Todos
na Igreja, quer pertençam à Hierarquia quer por ela sejam pastoreados, são
chamados à santidade, segundo a palavra do Apóstolo: ‘esta é a vontade de Deus,
a vossa santificação’ (1Ts 4,3; cf Ef 1,4). Esta santidade da Igreja
incessantemente se manifesta, e deve manifestar-se, nos frutos da graça que o
Espírito Santo produz nos fiéis.” (LG, 39). […] “É,
pois, claro a todos, que os cristãos de qualquer estado ou ordem, são chamados
à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade. Na própria sociedade
terrena, esta santidade promove um modo de vida mais humano. Para alcançar esta
perfeição, empreguem os fiéis as forças recebidas segundo a medida em que as dá
Cristo, a fim de que, seguindo as Suas pisadas e conformados à Sua imagem,
obedecendo em tudo à vontade de Deus, se consagrem com toda a alma à glória do
Senhor e ao serviço do próximo. Assim crescerá em frutos abundantes a santidade
do Povo de Deus, como patentemente se manifesta na história da Igreja, com a
vida de tantos santos.” (LG, 40).
Nestes
termos, tem de entender-se a santidade das pessoas humanas como derivada da
santidade de Deus ou de Deus encarnado e espelhado em Cristo, o Santo, e como
participante nela. Neste aspeto, o Missal Romano prescreve a seguinte fórmula
oracional para acompanhar a mistura de água com o vinho (matéria
do Sacrifício juntamente com o pão),
no momento da apresentação das oferendas: “Pelo
mistério desta água e deste vinho sejamos participantes da divindade d’Aquele
que assumiu a nossa humanidade”.
Como
devemos prestar atenção ao princípio lex
orandi lex credendi, temos de aceitar que, sendo a água símbolo da condição
humana e o vinho o símbolo da divindade, Cristo encarnou (assumiu
a nossa natureza humana)
para nos fazer participantes da Sua divindade e, como é óbvio, da Sua santidade.
É o coroamento da obra divina: criou-nos e eleva-nos.
O cardeal português Dom José Saraiva Martins, que
presidiu à Congregação para as Causas dos Santos (Santa Sé), antecedendo o cardeal Angelo Amato, em recente
entrevista à agência Ecclesia, falou da
santidade e da Solenidade de Todos os Santos.
Sobre a santidade, diz que ela “consiste,
essencialmente, na imitação de Cristo, que é a santidade de Deus encarnada no
tempo e na história, em viver segundo o Evangelho”. Dando-nos conta de Deus e sendo
coerentes com a nossa fé, nós que somos filhos de Deus, devemos imitá-Lo.
Depois,
contrariando que a santidade seja uma coisa extraordinária ou privilégio de
alguns, assegura que é um dado comum, firmado na vocação universal, em consonância
com o Concílio vaticano II, que muito claramente declarou que “todos estão chamados
à santidade”. “Os santos” – explicita – “não foram pessoas extraordinárias;
eram homens, pessoas como nós, mas propuseram-se a viver em profundidade, na
sua vida comum, ordinária, no exercício da sua profissão, a imitar a Cristo
para puderem dizer como São Paulo: “Eu vivo, mas não sou eu que vivo, é Cristo
que vive em mim” (Gl 2,20).
O eminente purpurado português tem um conhecimento particular
e aprofundado de muitos exemplos de fiéis que viveram o ideal de santidade ao
longo da história. Porém, esclarece, falando da Solenidade de todos os Santos,
que não são santos apenas as pessoas que foram canonizadas ou beatificadas ou
que estão a caminho do reconhecimento canónico do estatuto oficial de santidade,
como os ditos veneráveis servos de
Deus. Esses ou essas são homens ou mulheres – jovens e donzelas, velhos e crianças
– que são propostos pela autoridade da Igreja como exemplo aos demais cristãos em
algum ou alguns dos aspetos da santidade. E provêm da vida clerical, religiosa,
missionária ou laical; da confissão clara da fé, do martírio, do zelo apostólico,
da vida contemplativa, da vida familiar ou da vida de dedicação e apoio aos
mais pobres e desfavorecidos nas vias da educação, saúde e ação social.
A este respeito, Dom José Saraiva Martins adianta que nos últimos anos
a Igreja fez saltos consideráveis na diversificação e mundialização dos exemplos
de santidade a propor à admiração e imitação dos fiéis.
***
Porém, os santos são todos aqueles e aquelas que vivem a
sério a condição de filhos de Deus, reconhecendo em si mesmos o amor paternal
de Deus e o replicam no próximo, seja ele quem for. Nunca é demais recordar as palavras
do apóstolo São João, que servem de pano de fundo à vida do cristão na Terra: “Vede que amor tão grande o Pai nos concedeu, a ponto de nos podermos
chamar filhos de Deus; e realmente o somos!” (1Jo 3,1).
Uma
das condições para chegar a esta vivência da filiação divina e da fraternidade
universal é cumprir os mandamentos propostos por Deus no antigo Testamento e
sintetizados nos evangelhos sinóticos:
“Constando-lhes que Jesus reduzira os
saduceus ao silêncio, os fariseus reuniram-se em grupo. E um deles, que
era legista, perguntou-lhe para o embaraçar: Mestre, qual é o maior mandamento da Lei? Jesus disse-lhe: Amarás
ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a
tua mente. Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é
semelhante: Amarás ao teu próximo
como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os
Profetas.” (Mt 22,34-40; cf Mc 12,28-34; Lc 10,25-28).
Por seu turno, o apóstolo São João também glosa a temática
dos mandamentos com as palavras de Jesus antes de partir para o Pai, mas acrescenta
à Lei dois elementos de novidade neotestamentária: “Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros; que vos ameis
uns aos outros assim como Eu vos amei. Por
isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos
outros.”. A novidade consiste em amar como Cristo ama e em ser esta a marca
do discípulo de Cristo para o mundo. Ou seja, este é o sinal eficaz da
santidade do seguidor de Cristo.
E é esta força da filiação divina, da fraternidade e do amor em
Cristo que nos faz suportar e ultrapassar a grande tribulação e lavar as nossas
túnicas e branqueá-las no sangue redentor do Cordeiro de Deus (cf Ap
7,14).
Porém, a versão mais ajustada da Lei enquanto caminho ou
estrada de seguimento de Jesus e, por consequência, da santidade, é balizada
pelas Bem-aventuranças ensinadas aso discípulos diante da multidão (vd Mt 5,1-10),
verdadeira marca do Novo Testamento:
Felizes os pobres em espírito, porque
deles é o Reino dos Céus.
Felizes os que choram, porque serão
consolados.
Felizes os mansos, porque possuirão a
terra.
Felizes os que têm fome e sede de justiça,
porque serão saciados.
Felizes os misericordiosos, porque
alcançarão misericórdia.
Felizes os puros de coração, porque verão
a Deus.
Felizes os pacificadores, porque serão
chamados filhos de Deus.
Felizes os que sofrem perseguição por
causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus.
E não se pode esquecer a garantia explicitada
por Cristo na conclusão da perícopa das bem-aventuranças no Sermão da Montanha
sobre a perseguição, o insulto, a calúnia e o martírio por causa de Jesus e dos
Seu Evangelho (e não por causa do egoísmo ou da inflexibilidade
teimosa do discípulo):
“Felizes sereis, quando vos insultarem e
perseguirem e, mentindo, disserem todo o género de calúnias contra vós, por
minha causa. Exultai e alegrai-vos, porque grande será a vossa
recompensa no Céu; pois também assim perseguiram os profetas que vos
precederam.” (Mt 5,11-12).
***
Assim, a Solenidade de Todos os Santos celebra universalmente
a glória de todos aqueles e aquelas que almejaram este desígnio e trilharam
esta estrada – tenham ou não as honras dos altares, sejam conhecidos ou não
sejam. Basta que se tenham comportado neste mundo como verdadeiros concidadãos do
céu, caminhando no Espírito com Jesus para o Pai. Faz, por isso, sentido a
liturgia desta solenidade ter o seguinte prefácio:
“Senhor, Pai santo, Deus eterno e
omnipotente, é verdadeiramente nosso dever, é nossa salvação dar-Vos graças,
sempre e em toda a parte: Hoje nos dais a alegria de celebrar a
cidade santa, a nossa mãe, a Jerusalém celeste onde a assembleia dos Santos,
nossos irmãos, glorificam eternamente o vosso nome. Peregrinos dessa cidade
santa, para ela caminhamos na fé e na alegria, ao vermos glorificados os
ilustres filhos da Igreja, que nos destes como exemplo e auxílio para a nossa
fragilidade. Por isso, com todos os Anjos e Santos, proclamamos a
vossa glória, cantando numa só voz: Santo, Santo, Santo, Senhor Deus do
Universo...” (Do Prefácio da Solenidade de Todos os Santos).
2015.11.01 – Louro de Carvalho
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