domingo, 1 de novembro de 2015

Sob o signo das Bem-aventuranças…

Recordo o episódio da entrada de um padre nas suas paróquias, que se apresentou por si próprio, sem o dedo indicador de algum dignitário da cúria episcopal ou de algum hierarca local. Porém, a homilia da Eucaristia que marcou a sua posse como pároco centrou-se no Evangelho das bem-aventuranças (vd Mt 5,1-12). Era o dia 1 de novembro de 1979, da Solenidade de todos os Santos.
Também me vem à memória o caso do cónego José Cardoso de Almeida, cujo Evangelho da última missa que celebrou era o das bem-aventuranças. Era o III Domingo do Tempo Comum do ano A (29 de janeiro de 1984) e ele faleceu na manhã de 30 de janeiro, o dia seguinte.
Parece-me auspicioso o facto de o Evangelho das bem-aventuranças marcar o termo da vida terrena de um padre especial, no caso, um cónego que se dedicou à inovação na pastoral das catequeses, alargando-a, contra a inércia de hábito ancestral, a todas as idades e criando manuais para os próprios pais – isto sem falar da dedicação às causas da pastoral familiar e juvenil.
Sobre as vantagens, para as respetivas comunidades, da proclamação do Evangelho das bem-aventuranças no momento da tomada de posse de um jovem pároco, talvez Deus possa dizer melhor do que eu, bem como as mesmas comunidades. Mas a mim parece-me que para Deus nada acontece por acaso, não fosse Ele capaz de escrever direito por linhas tortas, quando nós, ao invés, escrevemos torto por linhas direitas.
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Focando-nos na Solenidade de Todos os Santos, convém referir, em primeiro lugar, que Aquele que é Santo, Senhor e Altíssimo é Jesus Cristo (Tu solus Sanctus, tu solus Dominus, tu solus Altissimus), como se canta ou reza nas missas das Solenidades e das Festas litúrgicas. Porém, como Jesus veio ao mundo para que todos tenham a vida e a tenham em abundância (cf Jo 10,10), mandou que fôssemos santos ou perfeitos à imagem do Pai Celeste: “Sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai celeste” (Mt 5,48). E o apóstolo São Pedro, na sua primeira carta, na exortação à santidade, recomenda:
“De ânimo preparado para servir e vivendo com sobriedade, ponde a vossa esperança na dádiva que vos vai ser concedida com a manifestação de Jesus Cristo. Como filhos obedientes, não vos conformeis com os antigos desejos do tempo da vossa ignorância; mas, assim como é santo Aquele que vos chamou, sede santos, vós também, em todo o vosso proceder, conforme diz a Escritura: Sede santos, porque Eu sou santo.” (1Pe 1,13-16).

O passo da Escritura que Pedro tem em mente é o seguinte, do Levítico: “Santificai-vos e sede santos, porque Eu sou o SENHOR, vosso Deus” (Lv 20,7).
Ora, na esteira do convite veterotestamentário, retomado em Mateus e na primeira carta de Pedro, a Igreja católica tem pregado a vocação universal à santidade. Em especial, o capítulo V da Constituição Dogmática sobre a Igreja, Lumen Gentium, do Concílio Vaticano II, afirma-a categoricamente:
Todos na Igreja, quer pertençam à Hierarquia quer por ela sejam pastoreados, são chamados à santidade, segundo a palavra do Apóstolo: ‘esta é a vontade de Deus, a vossa santificação’ (1Ts 4,3; cf Ef 1,4). Esta santidade da Igreja incessantemente se manifesta, e deve manifestar-se, nos frutos da graça que o Espírito Santo produz nos fiéis.” (LG, 39). […] “É, pois, claro a todos, que os cristãos de qualquer estado ou ordem, são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade. Na própria sociedade terrena, esta santidade promove um modo de vida mais humano. Para alcançar esta perfeição, empreguem os fiéis as forças recebidas segundo a medida em que as dá Cristo, a fim de que, seguindo as Suas pisadas e conformados à Sua imagem, obedecendo em tudo à vontade de Deus, se consagrem com toda a alma à glória do Senhor e ao serviço do próximo. Assim crescerá em frutos abundantes a santidade do Povo de Deus, como patentemente se manifesta na história da Igreja, com a vida de tantos santos.” (LG, 40).

Nestes termos, tem de entender-se a santidade das pessoas humanas como derivada da santidade de Deus ou de Deus encarnado e espelhado em Cristo, o Santo, e como participante nela. Neste aspeto, o Missal Romano prescreve a seguinte fórmula oracional para acompanhar a mistura de água com o vinho (matéria do Sacrifício juntamente com o pão), no momento da apresentação das oferendas: “Pelo mistério desta água e deste vinho sejamos participantes da divindade d’Aquele que assumiu a nossa humanidade”.
Como devemos prestar atenção ao princípio lex orandi lex credendi, temos de aceitar que, sendo a água símbolo da condição humana e o vinho o símbolo da divindade, Cristo encarnou (assumiu a nossa natureza humana) para nos fazer participantes da Sua divindade e, como é óbvio, da Sua santidade. É o coroamento da obra divina: criou-nos e eleva-nos.
O cardeal português Dom José Saraiva Martins, que presidiu à Congregação para as Causas dos Santos (Santa Sé), antecedendo o cardeal Angelo Amato, em recente entrevista à agência Ecclesia, falou da santidade e da Solenidade de Todos os Santos.
Sobre a santidade, diz que ela “consiste, essencialmente, na imitação de Cristo, que é a santidade de Deus encarnada no tempo e na história, em viver segundo o Evangelho”. Dando-nos conta de Deus e sendo coerentes com a nossa fé, nós que somos filhos de Deus, devemos imitá-Lo.
Depois, contrariando que a santidade seja uma coisa extraordinária ou privilégio de alguns, assegura que é um dado comum, firmado na vocação universal, em consonância com o Concílio vaticano II, que muito claramente declarou que “todos estão chamados à santidade”. “Os santos” – explicita – “não foram pessoas extraordinárias; eram homens, pessoas como nós, mas propuseram-se a viver em profundidade, na sua vida comum, ordinária, no exercício da sua profissão, a imitar a Cristo para puderem dizer como São Paulo:Eu vivo, mas não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20).
O eminente purpurado português tem um conhecimento particular e aprofundado de muitos exemplos de fiéis que viveram o ideal de santidade ao longo da história. Porém, esclarece, falando da Solenidade de todos os Santos, que não são santos apenas as pessoas que foram canonizadas ou beatificadas ou que estão a caminho do reconhecimento canónico do estatuto oficial de santidade, como os ditos veneráveis servos de Deus. Esses ou essas são homens ou mulheres – jovens e donzelas, velhos e crianças – que são propostos pela autoridade da Igreja como exemplo aos demais cristãos em algum ou alguns dos aspetos da santidade. E provêm da vida clerical, religiosa, missionária ou laical; da confissão clara da fé, do martírio, do zelo apostólico, da vida contemplativa, da vida familiar ou da vida de dedicação e apoio aos mais pobres e desfavorecidos nas vias da educação, saúde e ação social.
A este respeito, Dom José Saraiva Martins adianta que nos últimos anos a Igreja fez saltos consideráveis na diversificação e mundialização dos exemplos de santidade a propor à admiração e imitação dos fiéis.
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Porém, os santos são todos aqueles e aquelas que vivem a sério a condição de filhos de Deus, reconhecendo em si mesmos o amor paternal de Deus e o replicam no próximo, seja ele quem for. Nunca é demais recordar as palavras do apóstolo São João, que servem de pano de fundo à vida do cristão na Terra: Vede que amor tão grande o Pai nos concedeu, a ponto de nos podermos chamar filhos de Deus; e realmente o somos!” (1Jo 3,1).
Uma das condições para chegar a esta vivência da filiação divina e da fraternidade universal é cumprir os mandamentos propostos por Deus no antigo Testamento e sintetizados nos evangelhos sinóticos:
“Constando-lhes que Jesus reduzira os saduceus ao silêncio, os fariseus reuniram-se em grupo. E um deles, que era legista, perguntou-lhe para o embaraçar: Mestre, qual é o maior mandamento da Lei? Jesus disse-lhe: Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente. Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas.” (Mt 22,34-40; cf Mc 12,28-34; Lc 10,25-28).

Por seu turno, o apóstolo São João também glosa a temática dos mandamentos com as palavras de Jesus antes de partir para o Pai, mas acrescenta à Lei dois elementos de novidade neotestamentária: “Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros; que vos ameis uns aos outros assim como Eu vos amei. Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros.”. A novidade consiste em amar como Cristo ama e em ser esta a marca do discípulo de Cristo para o mundo. Ou seja, este é o sinal eficaz da santidade do seguidor de Cristo.
E é esta força da filiação divina, da fraternidade e do amor em Cristo que nos faz suportar e ultrapassar a grande tribulação e lavar as nossas túnicas e branqueá-las no sangue redentor do Cordeiro de Deus (cf Ap 7,14).
Porém, a versão mais ajustada da Lei enquanto caminho ou estrada de seguimento de Jesus e, por consequência, da santidade, é balizada pelas Bem-aventuranças ensinadas aso discípulos diante da multidão (vd Mt 5,1-10), verdadeira marca do Novo Testamento:
Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus.
Felizes os que choram, porque serão consolados.
Felizes os mansos, porque possuirão a terra.
Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados.
Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.
Felizes os puros de coração, porque verão a Deus.
Felizes os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus.
Felizes os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus.

E não se pode esquecer a garantia explicitada por Cristo na conclusão da perícopa das bem-aventuranças no Sermão da Montanha sobre a perseguição, o insulto, a calúnia e o martírio por causa de Jesus e dos Seu Evangelho (e não por causa do egoísmo ou da inflexibilidade teimosa do discípulo):
“Felizes sereis, quando vos insultarem e perseguirem e, mentindo, disserem todo o género de calúnias contra vós, por minha causa. Exultai e alegrai-vos, porque grande será a vossa recompensa no Céu; pois também assim perseguiram os profetas que vos precederam.” (Mt 5,11-12).
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Assim, a Solenidade de Todos os Santos celebra universalmente a glória de todos aqueles e aquelas que almejaram este desígnio e trilharam esta estrada – tenham ou não as honras dos altares, sejam conhecidos ou não sejam. Basta que se tenham comportado neste mundo como verdadeiros concidadãos do céu, caminhando no Espírito com Jesus para o Pai. Faz, por isso, sentido a liturgia desta solenidade ter o seguinte prefácio:
“Senhor, Pai santo, Deus eterno e omnipotente, é verdadeiramente nosso dever, é nossa salvação dar-Vos graças, sempre e em toda a parte: Hoje nos dais a alegria de celebrar a cidade santa, a nossa mãe, a Jerusalém celeste onde a assembleia dos Santos, nossos irmãos, glorificam eternamente o vosso nome. Peregrinos dessa cidade santa, para ela caminhamos na fé e na alegria, ao vermos glorificados os ilustres filhos da Igreja, que nos destes como exemplo e auxílio para a nossa fragilidade. Por isso, com todos os Anjos e Santos, proclamamos a vossa glória, cantando numa só voz: Santo, Santo, Santo, Senhor Deus do Universo...” (Do Prefácio da Solenidade de Todos os Santos).

2015.11.01 – Louro de Carvalho

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