sábado, 14 de novembro de 2015

Os leigos não são fiéis “de segunda”

É esta a principal enunciação da mensagem do Papa Francisco para a jornada de estudos em torno do decreto conciliar Apostolicam Actuositatem (AA), sobre o apostolado dos Leigos, organizada pelo Pontifício Conselho para os Leigos em parceria com a Universidade Pontifícia da Santa Cruz.
Com efeito, a 18 de novembro, passa o cinquentenário da promulgação do referido decreto conciliar pelo Papa Paulo VI. E a jornada referida ocorreu a 12 de novembro, passado, em torno do tema “Vocação e missão dos leigos – 50 anos do decreto Apostolicam Actuositatem”, documento de um Concílio que, no dizer de Paulo VI, que a ele presidiu e acompanhou nas três das suas quatro sessões, teve o caráter “de um grande e triplo ato de amor: a Deus, à Igreja, à humanidade” – evento extraordinário de graça.
Francisco recorda que o Concílio Vaticano II não olha para os leigos como se eles fossem membros de “segunda categoria” ao serviço e em função da hierarquia como simples executores de “ordens de cima”. São, antes, na condição de discípulos de Cristo, que na força do seu Batismo e da sua inclusão natural “no mundo”, chamados a animar todo o ambiente, toda a atividade e toda a relação humana segundo o espírito evangélico, levando a luz, a esperança e a caridade recebidas de Cristo aos lugares que, de outra forma, permaneceriam alheios à ação de Deus e abandonados à miséria da condição humana.
Esta renovada atitude de amor que inspirava os padres conciliares, segundo o Papa, levou também, entre seus múltiplos frutos, a uma nova forma de olhar para a vocação e missão dos leigos na Igreja e no mundo, com “magnífica expressão nas duas grandes constituições conciliares”: a dogmática Lumen Gentium (LG), sobre o ser da Igreja, e a pastoral Gaudium et Spes (GS), sobre a Igreja no mundo atual.
Sobre o ser e o estatuto do leigo, a Lumen Gentium ensina que os leigos são fundamentalmente membros da Igreja – Povo de Deus:
“Todas as coisas que se disseram a respeito do Povo de Deus se dirigem igualmente aos leigos, aos religiosos e aos clérigos, algumas, contudo, pertencem de modo particular aos leigos, homens e mulheres, em razão do seu estado e missão; e os seus fundamentos, devido às circunstâncias especiais do nosso tempo, devem ser mais cuidadosamente expostos” (LG 30).
E estabelece a limitação dos pastores (bispos, presbíteros e diáconos) e sua relação com os leigos:
“Os sagrados pastores conhecem perfeitamente quanto os leigos contribuem para o bem de toda a Igreja. Pois aqueles sabem que não foram instituídos por Cristo para se encarregarem por si sós de toda a missão salvadora da Igreja para com o mundo, mas que o seu cargo sublime consiste em pastorear de tal modo os fiéis e de tal modo reconhecer os seus serviços e carismas, que todos, cada um segundo o seu modo próprio, cooperem na obra comum.” (LG 30).
Os leigos contribuem para a edificação e crescimento da Igreja:
“É necessário que todos, ‘praticando a verdade na caridade, cresçamos de todas as maneiras para aquele que é a cabeça, Cristo; pelo influxo do qual o corpo inteiro, bem ajustado e coeso por toda a espécie de junturas que o alimentam, com a ação proporcionada a cada membro, realiza o seu crescimento em ordem à própria edificação na caridade’ (Ef 4,15-16).” (LG 30).
Que se entende por leigos?
De modo negativo (o que não são):
“Por leigos entendem-se aqui todos os cristãos que não são membros da sagrada Ordem ou do estado religioso reconhecido pela Igreja” (LG 31).
De modo afirmativo e positivo (o que são: de laikós, adjetivo grego – membro do laós, povo):
“Os fiéis que, incorporados em Cristo pelo Baptismo, constituídos em Povo de Deus e tornados participantes, a seu modo, da função sacerdotal, profética e real de Cristo, exercem, pela parte que lhes toca, a missão de todo o Povo cristão na Igreja e no mundo” (LG 31).
Também João Paulo II, na sua exortação apostólica Christifideles Laici (CL), de 30 de dezembro de 1988, retoma a noção de leigos da LG, justificando:
“Ao responder à pergunta quem são os fiéis leigos, o Concílio, ultrapassando anteriores interpretações prevalentemente negativas, abriu-se a uma visão decididamente positiva e manifestou o seu propósito fundamental ao afirmar a plena pertença dos fiéis leigos à Igreja e ao seu mistério e a índole peculiar da sua vocação, a qual tem como específico ‘procurar o Reino de Deus tratando das coisas temporais e ordenando-as segundo Deus’.” (CL, 9).
Qual é a sua marca?
É própria e peculiar dos leigos a característica secular” (LG 31).
Enquanto a função primordial dos pastores é garantir a sã doutrina, presidir à celebração dos divinos mistérios e coordenar a ação hodegética ou a caminhada comum (sinodalidade), “é próprio do estado dos leigos viver no meio do mundo e das ocupações seculares”, pelo que “eles são chamados por Deus para, cheios de fervor cristão, exercerem como fermento o seu apostolado no meio do mundo” (AA 2), na certeza de que a todos os fiéis (pastores e leigos) incumbe “o glorioso encargo de trabalhar para que a mensagem divina da salvação seja conhecida e recebida por todos os homens em toda a terra” (AA3).
E a Gaudium et Spes adverte:
“Os leigos, que devem tomar parte ativa em toda a vida da Igreja, não devem apenas impregnar o mundo com o espírito cristão, mas são também chamados a serem testemunhas de Cristo, em todas as circunstâncias, no seio da comunidade humana” (GS 43).
Referindo-se às duas preditas Constituições conciliares, o Papa diz que estes documentos “consideram os fiéis leigos dentro duma visão de conjunto do Povo de Deus, ao qual pertencem junto com os membros da ordem sagrada e com os religiosos, participando da forma que lhes é própria da função sacerdotal, profética e real de Cristo”. E reconhece que este ensinamento conciliar que fez crescer na Igreja a formação dos leigos, já deu tantos frutos até aqui.
Porém, Francisco sente para si e para os demais pastores a interpelação do Concílio Vaticano II, que, como todo o concílio
“Interpela cada geração de pastores e de leigos porque é um dom inestimável do Espírito Santo, a ser acolhido com gratidão e sentido de responsabilidade: tudo o que nos foi dado pelo Espírito e transmitido pela santa Mãe Igreja deve sempre ser entendido de novo, assimilado e concretizado na realidade”.
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Talvez, por isso, seja conveniente continuar a ler a fundamentação do apostolado laical, como integrando todo o complexo do apostolado eclesial e não como corpo ou ação à parte:
“A Igreja nasceu para tornar todos os homens participantes da redenção salvadora e, por eles, ordenar efetivamente a Cristo o universo inteiro, dilatando pelo mundo o seu reino para glória de Deus Pai. Toda a atividade do Corpo místico que a este fim se oriente chama-se “apostolado”. A Igreja exerce-o de diversas maneiras, por meio de todos os seus membros, já que a vocação cristã é também, por sua própria natureza, vocação ao apostolado.” (AA2).
O apostolado é tão essencial à Igreja como a ação ao corpo vivo (não se deve esquecer que Igreja é Povo de Deus e Corpo de Cristo) e todos estão constituídos no dever de se implicarem nele:
“Do mesmo modo que num corpo vivo nenhum membro tem um papel meramente passivo, mas antes, juntamente com a vida do corpo, também participa na sua atividade, assim também no Corpo de Cristo, que é a Igreja, todo o corpo ‘cresce segundo a operação própria de cada um dos seus membros’ (Ef 4,16). Mais ainda: é tanta neste corpo a conexão e coesão dos membros (cf Ef 4,16) que se deve dizer que não aproveita nem à Igreja nem a si mesmo aquele membro que não trabalhar para o crescimento do corpo, segundo a própria capacidade.” (AA2).
Na convicção de que “existe na Igreja diversidade de funções, mas unidade de missão”, os Bispos discerniam na aula conciliar que:
“Aos Apóstolos e seus sucessores, confiou Cristo a missão de ensinar, santificar e governar em seu nome e com o seu poder. Mas os leigos, dado que são participantes do múnus sacerdotal, profético e real de Cristo, têm um papel próprio a desempenhar na missão do inteiro Povo de Deus, na Igreja e no mundo. Exercem, com efeito, apostolado com a sua ação para evangelizar e santificar os homens e para impregnar e aperfeiçoar a ordem temporal com o espírito do Evangelho; deste modo, a sua atividade nesta ordem dá claro testemunho de Cristo e contribui para a salvação dos homens. E, sendo próprio do estado dos leigos viver no meio do mundo e das ocupações seculares, eles são chamados por Deus para, cheios de fervor cristão, exercerem como fermento o seu apostolado no meio do mundo.” (AA 2).
Por seu turno, a exortação apostólica de Paulo VI Evangelii Nuntiandi (EN), de 8 de dezembro de 1975 (há quarenta anos), insere a missão dos leigos no contexto da ação de toda a Igreja:
“A Igreja é ela toda inteiramente evangelizadora. Ora isso quer dizer que, para com o conjunto do mundo e para com cada parcela do mundo onde ela se encontra, a Igreja se sente responsável pela missão de difundir o Evangelho.” (EN, 60).
E especifica a missão evangelizadora dos leigos, diferente, mas não inferior à da Hierarquia, que se fundamenta na sua vocação específica:
“Os leigos, a quem a sua vocação específica coloca no meio do mundo e à frente de tarefas as mais variadas na ordem temporal, devem também eles, através disso mesmo, atuar uma singular forma de evangelização” (EN, 70).
Definido claramente a sua tarefa, em contraposição com a da Hierarquia, Paulo VI ensina:
“A sua primeira e imediata tarefa não é a instituição e o desenvolvimento da comunidade eclesial; esse é o papel específico dos Pastores, mas sim, o pôr em prática todas as possibilidades cristãs e evangélicas escondidas, mas já presentes e operantes, nas coisas do mundo. O campo próprio da sua atividade evangelizadora é o mesmo mundo vasto e complicado da política, da realidade social e da economia, como também o da cultura, das ciências e das artes, da vida internacional, dos ‘mass media’ e, ainda, outras realidades abertas para a evangelização, como sejam o amor, a família, a educação das crianças e dos adolescentes, o trabalho profissional e o sofrimento.” (EN, 70).
Depois, o Papa Montini postula a mobilização e a capacitação dos leigos para a missão:
“Quanto mais leigos houver impregnados do Evangelho, responsáveis em relação a tais realidades e comprometidos claramente nas mesmas, competentes para as promover e conscientes de que é necessário fazer desabrochar a sua capacidade cristã muitas vezes escondida e asfixiada, tanto mais essas realidades, sem nada perder ou sacrificar do próprio coeficiente humano, mas patenteando uma dimensão transcendente para o além, não raro desconhecida, se virão a encontrar ao serviço da edificação do reino de Deus e, por conseguinte, da salvação em Jesus Cristo” (EN, 70).
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É capaz de ser interessante visitar também, a este respeito, o Código de Direito Canónico (CDC), que, tendo em conta a personalidade e capacidade jurídica dos fiéis, define o côngruo estatuto de cada fiel e grupo de fiéis.
O cânone 204 parte da condição de base ou comum de todos os membros do povo de Deus e chama-lhes fiéis (Christifideles – fiéis de Cristo). Veja-se o seu § l:
“Fiéis são aqueles que, por terem sido incorporados em Cristo pelo baptismo, foram constituídos em povo de Deus e por este motivo se tornaram a seu modo participantes do múnus sacerdotal, profético e real de Cristo e, segundo a própria condição, são chamados a exercer a missão que Deus confiou à Igreja para esta realizar no mundo”.
Não distinguindo, como faz o Concílio, entre leigos, clérigos e religiosos, cân. 207 especifica, no § 1, a distinção entre clérigos (bispos, presbíteros e diáconos) e leigos (clerici et laici):
“Por instituição divina, entre os fiéis existem os ministros sagrados, que no direito se chamam também clérigos; os outros fiéis também se designam por leigos”.
E o § 2 declara que os religiosos (verdadeiros cultores da Igreja e do Reino) são leigos e clérigos:
“De ambos estes grupos existem fiéis que, pela profissão dos conselhos evangélicos por meio dos votos ou outros vínculos sagrados, reconhecidos e sancionados pela Igreja, se consagram a Deus de modo peculiar, e contribuem para a missão salvífica da Igreja; cujo estado, embora não diga respeito à estrutura hierárquica da Igreja, pertence contudo à sua vida e santidade”.
Quanto às obrigações e direitos comuns, há que ter em conta os câns. 208 a 223, de que se destacam o seguintes aspetos:
- A verdadeira igualdade no concernente à dignidade e atuação;
- A liberdade de escolha do estado de vida;
- A obrigação de manter sempre a comunhão com a Igreja;
- A obrigação de prover às necessidades de Igreja;
- A obrigação de promover a justiça social e de auxiliar os pobres com os seus próprios recursos;
- O dever de promover ou manter a ação apostólica;
- O esforço por levar uma vida santa e promover o incremento da Igreja e a sua contínua santificação;
- O direito de prestar culto a Deus e de seguir uma forma própria de vida espiritual, consentânea com a doutrina da Igreja;
- O direito à boa fama e à intimidade;
- O direito à educação cristã;
- A possibilidade de livremente fundar e dirigir associações para fins de caridade ou de piedade ou para fomentar a vocação cristã no mundo, e de reunir-se para prosseguirem em comum esses mesmos fins;
- A justa liberdade de investigação e de expor prudentemente as suas opiniões acerca das matérias em que são peritos, observada a devida reverência para com o magistério da Igreja.
Em especial, no cân. 211, estabelece-se:
“Todos os fiéis têm o dever e o direito de trabalhar para que a mensagem divina da salvação chegue cada vez mais a todos os homens de todos os tempos e do mundo inteiro”.
Quantos aos aspetos específicos dos fiéis leigos, vêm os cânones 224 a 231, estipulando-se genericamente, no cân. 224, o seguinte:
“Os fiéis leigos, além das obrigações e dos direitos comuns a todos os fiéis e dos que se estabelecem em outros cânones, têm as obrigações e gozam dos direitos referidos nos cânones deste título”.
Neste âmbito, destaca-se o cân. 225, que fundamenta o que estabelece, como se pode ver:
 § 1: Os leigos, uma vez que, como todos os fiéis, são deputados para o apostolado em virtude do batismo e da confirmação, têm a obrigação geral e gozam do direito de, quer individualmente quer reunidos em associações, trabalhar para que a mensagem divina da salvação seja conhecida e recebida por todos os homens e em todas as partes da terra; esta obrigação torna-se mais urgente nas circunstâncias em que só por meio deles os homens podem ouvir o Evangelho e conhecer a Cristo.
- § 2: Têm ainda o dever peculiar de, cada qual, segundo a própria condição, imbuir e aperfeiçoar com espírito evangélico a ordem temporal, e de dar testemunho de Cristo especialmente na sua atuação e no desempenho das suas funções seculares.
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Decidida e claramente o ser diferente não significa ser inferior ou superior!

2015.11.13 – Louro de Carvalho

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