Após
as eleições legislativas do passado dia 4 de outubro, disse-se um pouco de
tudo. Algumas coisas que foram ditas são óbvias, outras quase inéditas e outras
desconcertantes.
A
votação popular não deu a maioria de votos a nenhuma das forças políticas
partidárias que se apresentaram ao escrutínio eleitoral e, por consequência do
estabelecido no nosso ordenamento constitucional, não resultou um partido ou
coligação que tivesse uma maioria parlamentar que sustentasse um governo capaz
de fazer passar o seu programa perante o veredicto dos deputados. Não aconteceu
apenas a não formação de uma maioria parlamentar natural, mas também não se formou
uma maioria relativa negociadora.
Das
eleições legislativas já resultaram vários governos minoritários à esquerda (PS) e à direita (PSD), mas nenhum deles foi
confrontado pela aprovação de uma moção de rejeição do seu programa (pela
maioria dos deputados em efetividade de funções).
É
certo que, em 1978, um governo de iniciativa presidencial (mas
não resultante diretamente das eleições de 1976), chefiado por Nobre da Costa, viu rejeitado o seu
programa na Assembleia da República. Os tempos são e eram efetivamente outros,
mas não se pode, a este nível, nem invocar a tradição constitucional, como
alguns fizeram, nem pura e simplesmente ignorá-la ou negá-la como outros também
fizeram. Mesmo o dizer-se que foi a primeira vez que a eleição do presidente da
Assembleia da República recaiu num deputado não proposto pelo partido mais
votado é complicado, já que, em 2011, também a primeira figura proposta pelo
partido mais votado não foi eleita. Assunção Esteves foi a segunda escolha,
porque a coligação pós-eleitoral não se entendeu em torno de Fernando Nobre.
Depois,
o debate público rodou, a meu ver mal, em torno da legitimidade política ou não
de a coligação Paf se apresentar para gerar um governo minoritário ou da mesma
legitimidade ou não da constituição de uma maioria construída à esquerda
liderada pelo segundo partido mais votado. Agora até se diz que três perdedores
(PS+BE+PCP+PEV) não podem fazer um ganhador!
Não
vale argumentar que a direita não tinha legitimidade política para gerar um
governo minoritário. Pode é ser o seu líder apontado como não se tendo munido
da habilidade ou da vontade de garantir o apoio a esse governo. Não se pode,
por outro lado, aduzir que a maioria de esquerda foi constituída já depois das
eleições, pois já houve duas maiorias de direita constituídas após o ato
eleitoral (2002 e 2011).
Há
neste rescaldo eleitoral algo de novo, quiçá preparado cavalheirescamente
durante o período eleitoral: da mudança de alvo privilegiado nalguns discursos
de campanha da parte de algumas agremiações políticas passou-se à
disponibilidade de concertação negociada em torno do Partido Socialista. E o
secretário-geral do PS declarou que o partido não alinharia numa coligação
negativa para derrubar um governo minoritário sem dispor de alternativa
credível de governo.
Constituirá
o entendimento das esquerdas a aliança contra naturam, o convénio de ocasião, a
aposta conjunta no combate à tentativa da constituição de um governo de
direita? Não se sabe. Todavia, não se pode ignorar o fenómeno. E essa
ignorância aconteceu, como se verá a seguir.
***
E quem é que ganha
eleições legislativas?
Uns
dizem, pela lógica do voto popular, que é o partido mais votado; outros dizem,
argumentando com a norma constitucional do artigo 149.º da CRP, que é aquele
que tiver um número maior de deputados na Assembleia da República.
Ora,
como a CRP não o define, parece-me que ganha as eleições a força partidária –
partido, coligação ou frente partidária – que tenha um número suficiente de
deputados para garantir a formação de um governo de legislatura. Não sendo
atingido este objetivo, ninguém em rigor, pode reivindicar em absoluto uma
vitória eleitoral clara. Não obstante, uns aproximam-se mais do objetivo que
outros e não se podem ignorar importantes ganhos relativos, como o aumento do
número de votos e/ou de deputados, a manutenção da fidelização do eleitorado, a
subida da fasquia percentual do número de votos, a implantação nalgum círculo
eleitoral, o impedimento da maioria absoluta de alguma força partidária, etc.
No
caso das eleições autárquicas, a lei eleitoral é clara: ganha as eleições a
força política (partido, coligação, frente partidária ou
grupo de cidadãos independentes)
que obtiver mais votos e, necessariamente, mais mandatos; e o cidadão que
encabeça a lista da força política que obtiver o maior número de votos/mandatos
será respetivamente o Presidente da Câmara Municipal ou o Presidente da Junta
de Freguesia, conforme se trate de eleição para o município ou para a
freguesia. E note-se que as eleições para a freguesia são apenas para a
assembleia de freguesia. E o dito cidadão da lista mais votada preside à primeira
sessão da assembleia de freguesia, até que termine a eleição interna dos
restantes membros da Junta de Freguesia.
Porém,
para as eleições legislativas nada está definido, a não ser que se elegem
deputados, pelo que falar de eleições para primeiro-ministro ou para o governo
é concluir abusivamente do articulado constitucional. Por isso, não me
arrependo das críticas que fiz à iniciativa do PS em ter lançado as eleições
para apuramento de um candidato a primeiro-ministro.
O
n.º 1 do artigo 187.º da CRP apenas exige, para a nomeação do primeiro-ministro
por parte do Presidente da República, a audição prévia dos partidos com assento
parlamentar e que sejam tidos em conta os resultados eleitorais. Porém, esta
última é uma indicação genérica.
Não
vale, pois, agitar a simples ideia de que foi impedido de governar quem
efetivamente ganhou as eleições, ou vir agora carpir-se de a Constituição,
dadas as suas omissões, permitir quase tudo. Quem é que não se lembra das
críticas recorrentes ao texto constitucional por ser demasiado extenso e
excessivamente regulamentador?
Nem
vale argumentar que os eleitores que votaram no PS não votaram no entendimento
à esquerda ou que não votaram no entendimento à direita. Por outro lado,
ninguém abriu totalmente o jogo aos eleitores, até porque isso seria perigoso e
relativamente comprometedor.
Sendo
legítimo fazer leituras diversificadas dos resultados eleitorais à luz da nossa
CRP, são certas duas coisas: os portugueses não quiseram a governança
maioritária da PaF e não deram a suficiente confiança ao PS para governar; a
vontade dos portugueses, como foi expressa nas urnas, possibilita diversas
hipóteses de governo – minoritário, com abstenções violentas, ou maioritário
com participação, ou ao menos apoio, em sistema de arco-íris.
Muito
me admirou o facto de, segundo muitas sondagens (se as sondagens
valem o que valem, constituem um indicador a ter em conta), muitos dos portugueses (a
maior parte) manifestarem
a esperança de que António Costa fosse primeiro-ministro, mas não dariam o voto
ao PS.
***
Que se passou a
seguir?
Passos
Coelho e Paulo Portas, porque o artigo 22.º da lei eleitoral para a Assembleia
da República estabelece que as coligações eleitorais se desfazem com a eleição,
acorreram à celebração de um acordo de governo. Esqueceu-se Passos do segundo
partido mais votado e de que o acordo assinado com o parceiro não garantia uma
solução maioritária de governo.
Por
seu turno, o Presidente da República encarregou Passos Coelho de avaliar as
possibilidades da criação de condições para a formação de uma solução
governativa estável e duradoura. Além da crítica de que foi objeto por se
apressar a coloquiar com Passos Coelho, antes de ouvir os partidos com assento
parlamentar, irritou a potencial maioria de esquerda (que
nunca fora real como agora)
ao traçar os balizamentos da participação no governo ou na constituição de uma
maioria de incidência parlamentar, designadamente o europeísmo, o equilíbrio
das contas públicas, a política de alianças e os diversos compromissos
internacionais, de que destacou a CPLP e o ainda inexistente tratado do
comercio transatlântico.
Como
consequência, assistiu-se ao recrudescimento da posição da esquerda e ao, ainda
que moroso, desenvolvimento de vários painéis de negociações: do PS com o BE,
com o PCP e, mais tarde, também com o PEV, marcadas pela negociação difícil,
mas com a afirmação inequívoca da sua progressividade com vista a um certo
sucesso. Por outro lado, entabularam-se negociações do PS com a PaF, com
acusações recíprocas e cujo resultado deu em nada.
E
a crispação política, que, entretanto, se gerou em torno da tradição e não
tradição, da legitimidade e não legitimidade e da leitura da Constituição versus recurso à sabedoria política,
acentuou-se quando o Presidente da República indigitou Passos Coelho como
primeiro-ministro e reiterou o essencial do seu discurso anterior, embora com
amenização do tom, depois de ter declarado publicamente que não retirava uma
única linha ao que tinha dito anteriormente. E foi criticado por ter declarado
tratar-se da formação que ganhou as eleições e que as demais forças políticas
não lhe apresentaram uma solução governativa, estável, duradoura e credível,
como se a coligação o tivesse feito.
E,
embora fosse geralmente aceitável como legítima a indigitação daquele
primeiro-ministro, começou a receber-se o elenco governativo com a sensação
mista da ineficácia e do sinal tido como de agrado ao PS pela criação de pastas
simpáticas, mas sem orçamento e com misturas esquisitas em termos da acoplação
de competências no mesmo ministério. Por outro lado, a crítica pareceu-me
intempestiva quer no atinente à demora em constituir a equipa governativa quer
no atinente à apresentação o programa de governo (não
estavam a ser ultrapassados os prazos constitucionais) – até porque os acordos à
esquerda não estavam a dar sinais de conclusão e o PS mantinha-se dividido na
estratégia. E aqui pergunto-me: E, se o
Presidente tivesse optado por indigitar de imediato como primeiro-ministro o
secretário-geral do PS?
***
O
plenário da Assembleia da Republica até ao debate do programa do governo só
reuniu para a verificação de poderes e para a eleição do presidente e líderes das
bancadas parlamentares, o que deu a sensação da inexistência ou da ineficácia deste
órgão de soberania. E a eleição do presidente deu azo à crispação num grau a
que já não estávamos habituados. O próprio presidente eleito resolveu
inusitadamente a partir da sua cadeira presidencial (que
não da bancada do seu partido)
responder ao tom e conteúdos dos discursos do Presidente da República.
O
debate do programa do governo foi aceso e crispado. Porém, mais do que os conteúdos,
o debate centrou-se ou nas pessoas ou na legitimidade política a partir da
leitura dos resultados eleitorais, de que, desnecessariamente, parece ter aflorado
a emergência da usurpação do poder por parte de uns e de outros. Por outro lado,
a discussão derivou para a bondade ou iniquidade do programa do governo que não
existe, mas que todos trataram como se já existisse – tudo a partir dos fumos
que se vislumbravam dos instrumentos dos acordos interpartidários que se vinham
congeminando à esquerda, agitando-se todos os fantasmas já conhecidos a um lado
e a outro. Até o silêncio do secretário-geral o PS foi passível de bordoada,
assim como o facto de os acordos interpartidários não posarem para a fotografia!
Esperava
que o Presidente da Assembleia da República, dada a sua notável experiência política
e governativa, estivesse mais à vontade na gestão do plenário e lidasse melhor
com os imprevistos (tem de caminhar um bocado mais). Como é que não decide,
logo que lho sugerem, proceder à votação por fila, ao dar conta que o sistema
eletrónico não funcionava? E, ao fazer a contagem na primeira fila, manda ingenuamente
que os deputados que votam contra carreguem no botão (que
não funciona)!
Registo
como razoável, em termos de conteúdo, que não de forma, a chamada de atenção da
Ministra das Finanças para as consequências orçamentais de novas políticas e as
suas repercussões internacionais. Recebi como irónica a afirmação do Primeiro-Ministro
de que não é todos os dias que se deita abaixo um governo sufragado pelo voto
popular. E, do lado do Vice-Primeiro-Ministro, registo duas tiradas de mau
gosto: a advertência de que, quando o futuro Primeiro-Ministro se vir enredado nas
exigências dos parceiros de entendimento e nas constrições europeias, não venha
pedir socorro à coligação de direita; e a denominação de geringonça, em
abstrato, ao entendimento à esquerda e ao futuro governo.
Acho
que até poderá ter razão, mas devia esperar pelo programa. E, após consulta a
um bom dicionário de Língua Portuguesa, “geringonça” dá um pouco para tudo. Infelizmente,
geringonça política não é somente o que António Costa confecionou com a
Catarina, o Jerónimo e a Heloísa. Há mais e muito mais, Senhor Presidente,
Senhoras Deputadas e Senhores Deputados!
2015.11.11 –
Louro de Carvalho
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