sábado, 30 de maio de 2015

Maré de tautologias e desproporção

O Diário da República, do dia 29 de maio, publicou na sua I série o novo Estatuto dos Militares das Forças Armadas (EMFAR), que o Presidente da República, entretanto, promulgara. Ora, este novo normativo legal é encarado como “uma tragédia” por uma considerável franja de militares, nomeadamente oficiais e sargentos.
Entre outras medidas, o EMFAR estabelece que a idade de passagem à reforma suba dos 65 para os 66 anos, condições mais apertadas para pedir a passagem à reserva (conforme os postos, mas, em média, 60 anos de idade e 40 anos de serviço, cumulativamente, contra os atuais 55 de idade e 40 de serviço), a alteração da percentagem de bonificação do tempo de serviço de 15% para 10% e o aumento dos tempos mínimos de permanência para a promoção em alguns postos.
Estas alterações da condição militar aplicar-se-ão a partir de 2016.
Ora, como em muitos outros casos, também no atinente às forças armadas, Parlamento, Governo e Presidente da República não tiveram em consideração a especificidade da condição militar e a missão a que os militares são chamados, mesmo com especialíssimo risco de vida. Por outro lado, o EMFAR não prevê forma de conveniente uma suavização da prestação do serviço militar nos últimos anos de carreira, tendo em conta as naturais situações de desgaste, alquebramento e debilidade. É o predomínio do igualitarismo alastrante da parte do atual Governo, contra o postulado do tratamento diferente de entidades e situações diferentes, na lógica da equidade.
Como reação clara a este despeito institucional e protesto veemente, um conjunto de militares na reforma, dos três ramos das Forças Armadas, propuseram-se entregar, no próprio dia da publicação do novo EMFAR, ao Presidente da República e Comandante Supremo das Forças Armadas as medalhas ganhas em combate na guerra colonial, como forma de protesto pela promulgação deste novo Estatuto dos Militares. E pretendiam simultaneamente entregar um documento justificativo deste gesto.
A este respeito, o coronel Pereira Cracel, presidente da AOFA (Associação de Oficiais das Forças Armadas), declarou ao Observador on line: “Este ato tem um significado importantíssimo para os militares, pois são medalhas ganhas em situações de guerra. Alguns podiam não estar cá hoje”. O presidente da AOFA esclarece que o ato é “simbólico, em nome dos oficiais, dos outros militares e dos antigos combatentes, em todas as situações, muitos deles sem poderem exprimir o que lhes vai na alma devido às restrições a que são sujeitos os seus direitos de cidadania”. E acrescenta que “fazem-no, dando público testemunho do sentimento de profundo descontentamento que essa revisão vem provocar e alertando para as consequências não negligenciáveis sobre as próprias Forças Armadas, de que o Presidente da República é, por inerência, o Comandante Supremo”.
Mas os quatro militares – os coronéis Vargas Cardoso, do Exército, Tasso de Figueiredo, da Força Aérea, e Valadas Ganhão, em representação das forças armadas, acompanhados pelo já mencionado presidente da AOFA – que se deslocaram ao Palácio de Belém não conseguiram atingir o objetivo. Foram impedidos de entrar no palácio. As medalhas destes militares na reforma vão agora chegar ao presidente da República, mas por correio.
***
Perante o exposto, pode perguntar-se qual a razão de ser do título como que se encima esta reflexão.
Ora, a tautologia (do grego ταὐτολογία – “dizer a mesma coisa”) é, em retórica, um termo ou texto que expressa a mesma ideia de formas diferentes. Como vício da linguagem poderá ser considerada sinónimo de pleonasmo ou redundância. A origem do termo vem do grego tautó, que significa “a mesma coisa”, mais logos, que significa “assunto, tratado, palavra”. Portanto, tautologia é dizer sempre a mesma coisa em termos diferentes.
Na filosofia e em outras áreas das ciências humanas, diz-se que um argumento é tautológico quando se explica por si próprio, às vezes redundante ou falaciosamente. Por exemplo, dizer que “o mar é azul porque reflete a cor do céu e o céu é azul por causa do mar” é uma enunciação tautológica. Um exemplo de dito popular tautológico é “tudo o que é demais sobra”. Da mesma maneira, um sistema é caraterizado como tautológico quando não apresenta saídas à sua própria lógica interna.
E, em política, tautologia será a apresentação de uma explicação com dados que já todos conhecem, sem que se acrescente qualquer novidade informativa ou conceptual.
Assim, quando o Presidente da República, durante uma visita a Tabuaço, foi confrontado com o mal-estar dos militares a propósito da publicação da revisão do EMFAR, referiu que o diploma fora concertado entre o Governo e as chefias militares. Ora isso já toda a gente sabia. Restava saber se a matéria foi ou não concertada com as associações em causa. Mais: dada a obrigação constitucional da sujeição das forças armadas ao poder político, é muito raro as chefias militares oporem qualquer ponto de vista que vá em sentido contrário ao dos decisores políticos (que, no geral, parecem não gostar das forças armadas) – o que, a meu ver, se torna excessivo em termos de inibição. Penso que, embora os militares sejam chamados a imolar-se pela Pátria, se necessário, até à última gota de sangue, não se lhes pode exigir um martírio diário ou uma situação de humilhação. Antes de serem militares, são cidadãos e não “mancebos” no sentido romano.
Aliás, o Presidente da República atirou-nos com outro mimo tautológico nestes dias a propósito da recondução de Carlos Costa como governador do Banco de Portugal: o ser competente e ter sido nomeado por um Governo do Partido Socialista. Ora já todos sabemos da competência técnica do governador, pelo que é excrescente o Chefe de Estado mandar-nos ler o currículo desta personalidade, como sabemos que o governador foi nomeado em 2010 por causa do êxodo de Vítor Constâncio para o BCE. O que está em causa é simplesmente o desempenho dos últimos dois anos como escudo atrás do qual o governo escondeu a sua responsabilidade sobre a forte perturbação do sistema financeiro português. Aí o Presidente, até em termos semelhantes, esteve em linha com o Governo e a maioria parlamentar que o apoia, que se desculpou com a nomeação, em 2010, pelo Governo anterior e com o seu bom desempenho, à parte alguns erros de percurso.
No atinente à desproporção, basta reparar no seguinte:
A AOFA, no estrito respeito pela hierarquia, antes de os supramencionados militares se dirigirem para Belém, telefonou ao tenente-general Carvalho dos Reis, chefe da Casa Militar do Presidente da República, a avisá-lo do que iriam fazer.
Porém, ao chegarem às imediações do Palácio presidencial, os quatro militares depararam com um cordão policial que estava à sua espera como se de uma grandiosa manifestação se tratasse. Nem os deixaram passar a rua (vd JN, de hoje, dia 30 de maio).
Não há dúvida da desproporção: um cordão policial para impedir a aproximação de quatro homens, em comparação com uma poderosa força de intervenção policial que permitiu, em tempo, a escalada de acesso ao Parlamento, bem como, há uma quinzena, um subcomissário da PSP carregou sobre um adepto de clube que parece que o insultou e alegadamente o terá cuspido. Mas, também desproporcionadamente (em sentido contrário), o Corpo de Intervenção da PSP vai para o Marquês, no mesmo dia, com equipamento aligeirado, por ordem superior, como quem vai para uma festa – os ruidosos festejos do Benfica bicampeão.

Bem gostaria de que aquela fosse a minha polícia, aquele fosse o meu Parlamento, aquele fosse o meu Presidente. Será que estes vão mudar ou teremos que esperar outros ou forjá-los?!

Democracia e corrupção – democracia e eficácia

Francis Fukuyama veio a Portugal receber o prémio Global Issues Disntinguished Book de 2015, por ocasião das Conferências do Estoril na semana de 17 a 23 de maio, na sede da FLAD (Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento), que assinalaram os 30 anos da instituição.
O prémio visava distinguir esta insigne personalidade pela publicação do seu mais recente livro, Ordem Política e Decadência Política – Da Revolução Industrial à Globalização da Democracia, das edições D. Quixote, mas o seu autor acabou por ser o convidado inaugural do ciclo das preditas conferências, em que discursou por 10 minutos.
Em entrevista à revista Sábado, de 28 de maio – de que se respigam os aspetos que se reputam mais significativos – revelou Fukuyama que escreveu este livro e um outro, em parte, para reescrever o artigo “O Fim da História”, com base naquilo que hoje sabe sobre a natureza da política. Com efeito, há 26 anos (em 1989), escreveu o referido artigo, que, dado o seu caráter premonitório, lançou o articulista para “o estrelato dos pensadores políticos contemporâneos”. Posteriormente, em 1992, consolidou o seu pensamento com a obra “O Fim da História e o último homem”.
Previa este pensador norte-americano, nascido em Chicago e criado em Nova Iorque, que, com a derrota do comunismo, a democracia liberal se tornaria dominante (como se ela fosse a solução) e acabaria o conflito ideológico que marcou a segunda metade do século passado.
No seu livro de 1992, Francis Fukuyama sugere que, à medida que o século XXI se aproxima, regressemos a uma dupla questão que tem sido levantada pelos grandes filósofos do passado: a história da humanidade segue uma direção? E, se a resposta for afirmativa, qual será o seu fim? Depois, será oportuno que nos questionemos em que ponto nos encontramos em relação ao “fim da história”.
Em sua análise, o pensador apresenta elementos que sugerem a presença de duas poderosas forças na história humana: “a lógica da ciência moderna”; e “a luta pelo reconhecimento”. A primeira, na esteira do iluminismo, impele o homem a preencher o horizonte cada vez mais amplo de desejos através do processo económico racional; a outra, na linha de Hegel, é o próprio “motor da história”. Estas duas vertentes conduziriam, ao longo dos tempos, ao eventual colapso de ditaduras de direita e de esquerda, impelindo as sociedades, mesmo as culturalmente distintas, para a democracia capitalista liberal, vista como o estádio final do processo histórico. A questão principal surge então: “poderá a liberdade e a igualdade, tanto política como económica – o estado de coisas no presumível ‘fim da história’ –, criar uma sociedade estável em que o homem se sinta finalmente satisfeito”? Ou, pelo contrário, será que a condição espiritual deste “último homem”, privado de saídas para materializar a sua ânsia de poder, inevitavelmente o conduzirá, a ele e ao mundo, ao regresso ao caos e ao inútil derramamento de sangue?
A resposta do pensador é, simultaneamente, uma forte lição de filosofia da história e uma investigação que nos desafia a refletir sobre a questão suprema do sentido e do destino da sociedade e do homem.
Ora, tendo como marco histórico o quadriénio de 1989-1992, verifica-se que desde então muito mudou: houve a primeira guerra do Iraque, os atentados de 11 de setembro de 2001, a invasão do Afeganistão e o segundo conflito do Iraque (poderia ter acrescentado a desintegração de várias unidades políticas na Europa e em outras regiões do Globo). Porém, o articulista e escritor confessa que nunca pensou ser possível a “decadência política” e que a História recuasse, por não ter avaliado “corretamente a fragilidade das instituições” nem a dificuldade de criar um “Estado moderno”, um “Estado democrático não corrupto.
***
Sobre corrupção e democracia, admite que a corrupção é certamente a maior ameaça à democracia. No entanto, pensa que a corrupção resulta do “fraco desempenho dos Estados” e, em especial, na sua “incapacidade de proporcionar serviços básicos à população”, como educação, saúde. A este respeito dá o exemplo do Quénia: é uma democracia, mas não dispõe de infraestruturas. Torna-se quase impossível ir para o aeroporto, passa-se 4 horas por dia dentro do automóvel por não haver “estradas”.
Vai mesmo a ponto de contrariar a opinião de que o facto de um ex-primeiro-ministro estar detido por suspeitas de corrupção não significa, por si só, que a democracia esteja em perigo ou que não esteja a funcionar. Apesar de, em certa medida, ser “natural” a corrupção – já que “por natureza favorecemos os amigos e a família e não é natural termos um Estado que tenta ser imparcial e nos faça tratar estranhos como tratamos um familiar” – a verdade é que “um sinal de que a democracia funciona não é não ter corrupção”, mas “é ter um sistema judicial independente capaz de apanhar as pessoas e responsabilizá-las pelo seu comportamento”.
Concorda-se com Fukuyama no sentido de que a corrupção é uma natural tentação. Não obstante, não é aceitável que se não exija naturalmente do Estado que oriente os cidadãos e, por maioria de razão, os seus altos dirigentes e servidores no sentido da isenção e da imparcialidade. Caso contrário, estaremos a negar as suas principais funções: normativa, reguladora e sancionadora. Por outro lado, um Estado que se quer provedor dos cidadãos, maxime dos mais desfavorecidos, não pode deixar de combater por todos os meios a corrupção, inimiga da equidade e lesiva do bem comum (saindo prejudicados sobretudo os mais pobres).
Embora o insigne colunista e pensador ache natural que escolhamos aqueles em quem confiamos para trabalhar e negociar, todavia, o sistema do Estado moderno “requer um afastamento dessas ligações pessoais. Tanto assim é que, em Portugal, os deputados e os intervenientes em debates públicos devem fazer a denominada declaração de interesses.
E, para garantia de imparcialidade e isenção, nenhum titular de órgão ou agente da Administração Pública pode intervir em procedimento administrativo ou em ato ou contrato de direito público ou privado da Administração Pública nos seguintes casos:
a) Quando nele tenha interesse, por si, como representante ou como gestor de negócios de outra pessoa;
b) Quando, por si ou como representantes ou gestores de negócios de outra pessoa, nele tenham interesse o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, algum parente ou afim em linha reta ou até ao 2.º grau da linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem viva em economia comum ou com a qual tenha uma relação de adoção, tutela ou apadrinhamento civil;
c) Quando, por si ou como representante ou gestor de negócios de outra pessoa, tenha interesse em questão semelhante à que deva ser decidida, ou quando tal situação se verifique em relação a pessoa abrangida pela alínea anterior;
d) Quanto tenha intervindo no procedimento como perito ou mandatário ou haja dado parecer sobre questão a resolver;
e) Quando tenha intervindo no procedimento como perito ou mandatário o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, parente ou afim em linha reta ou até ao segundo grau da linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem viva em economia comum ou com a qual tenha uma relação de adoção, tutela ou apadrinhamento civil;
f) Quando se trate de recurso de decisão proferida por si, ou com a sua intervenção, ou proferida por qualquer das pessoas referidas na alínea b) ou com intervenção destas. (cf CPA, art.º 69.º).

E, em nome da imparcialidade, da isenção e da retidão de conduta, o titular de órgão ou agente deve pedir dispensa de intervir no procedimento quando ocorra circunstância pela qual possa razoavelmente suspeitar-se da sua isenção ou da retidão da sua conduta e, designadamente:
a) Quando, por si ou como representante ou gestor de negócios de outra pessoa, nele tenha interesse parente ou afim em linha reta ou até ao 3.º grau da linha colateral, ou tutelado ou curatelado dele, do seu cônjuge ou de pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges;
b) Quando o titular do órgão ou agente, o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, ou algum parente ou afim na linha reta, for credor ou devedor de pessoa singular ou coletiva com interesse direto no procedimento, ato ou contrato;
c) Quando tenha havido lugar ao recebimento de dádivas, antes ou depois de instaurado o procedimento, pelo titular do órgão ou agente, seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, parente ou afim na linha reta;
d) Se houver inimizade grave ou grande intimidade entre o titular do órgão ou agente, ou o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, e a pessoa com interesse direto no procedimento, ato ou contrato;
e) Quando penda em juízo ação em que sejam parte o titular do órgão ou agente, o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, parente em linha reta ou pessoa com quem viva em economia comum, de um lado, e, do outro, o interessado, o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, parente em linha reta ou pessoa com quem viva em economia comum. (cf CPA, art.º 73.º).
***
Insiste em que não pode haver alternativa à democracia. E face à objeção de que falharam os esforços de exportação da democracia para países de África e do Médio Oriente, esclarece que não sabe se falharam e que o problema não está na democracia, mas na ausência de um Estado moderno. E dá o exemplo do Zimbabwe, que não é uma democracia e é um Estado mal gerido e corrupto. Já, por exemplo, a China e Singapura têm um “Estado de qualidade”, pois conseguem “proporcionar serviços básicos”. Assim, o problema não está “entre democracias e governos autoritários, mas entre governos eficazes e governos ineficazes e corruptos”.
Sobre a putativa falha da exportação da democracia para os países onde ocorreram as designadas como “as primaveras árabes”, assegura que “esperar que aparecessem como que por magia num ano” as democracias “reflete uma falta de compreensão sobre como é difícil construir instituições democráticas”. Não havia nenhuma democracia em países árabes. E “a democracia requer instituições, partidos políticos, primado do direito, imprensa livre” – explica.
Entretanto, adverte que a construção e a consolidação da democracia levam tempo. Decorreram 130 anos entre a revolução francesa e a instauração do sufrágio universal na europa.
Pensa que erradamente Osama bin Laden e outros islamitas radicais interpretavam como uma forma de cruzada moderna a tentativa de exportar modelos democráticos para o mundo árabe. Mas isso não corresponde à verdade. As revoluções árabes foram de génese local e não importadas dos EUA. As populações estavam a odiar as ditaduras, mas o Ocidente apoiava o lado autoritário. As populações queriam a democracia, mas quase em lado nenhum a conseguiram (Fukuyama abre exceção para a Tunísia!). Pairou no mundo a ideia de que o Ocidente quis exportar a democracia para o Iraque. Mas essa foi a desculpa forjada quando se descobriu que não havia armas de destruição em massa, razão invocada para a invasão multinacional. Fukuyama não o refere, mas o grande motivo era o petróleo, ao passo que as armas foram o pretexto e a democracia foi o tardio rosto simpático da expedição militar, que induziu atuações nitidamente bárbaras.
Critica o Ocidente por sobrestimar o terrorismo como ameaça, quando este, na perspetiva do pensador, não coloca uma ameaça existencial permanente às sociedades ocidentais. Entende que “as ameaças de longo prazo são as tradicionais: estados poderosos como a China e a Rússia, que são centralizados e coerentes”.
Quanto ao Estado Islâmico (EI), aduz que só existe porque os EUA instauraram os governos sírio e iraquiano – governos que não têm legitimidade. Nega que esteja seriamente a expandir-se, argumentando que “um Estado é uma organização política capaz de exercer a soberania num determinado território” e o EI só consegue fazer isso numa pequena parte de terra de ninguém do Iraque e da Síria.
Finalmente, Fukuyama faz-nos voltar ao princípio: “As pessoas querem que as crianças aprendam a ler e a escrever; e, como o Estado não dá educação, voltam-se para as “madrassas” (?!) e caem na ideologia desses islamitas” fundamentalistas. E este Estado, com furor bélico, mas não centralizado e coerente, não consegue dar resposta consistente aos anseios das populações. Em todo o caso, “o aumento do islamismo no mundo reflete o fracasso dos governos em fornecer educação básica ao povo”.
***
Possa o contributo de Fukuyama abrir os olhos aos governantes e ao povo do Ocidente no sentido de: saber entender os perigos permanentes, existenciais e consistentes das ameaças transitórias, embora atraentes para os aderentes e violentas paras as vítimas; cuidar efetiva e eficazmente da educação, saúde e bem-estar de todos para que não se tenha a tentação de embarque em aventureirismos coletivos nem se abra o flanco a uma revolta militar como a portuguesa do 28 de maio (de há 89 anos) sob o pretexto de acabar com o caos público e forjar um pretenso bem-estar coletivo; ganhar a paciência da democracia e o gosto de intervir cívica e politicamente; e reforçar o prestígio e a eficácia das instituições democráticas.
O escol político marcou presença a ouvir o orador. Pergunto: Em demanda da consolidação pura e simples da democracia liberal assente num capitalismo sem rosto ou para interiorizar as obrigações fundamentais do Estado e o seu funcionamento?

- cf DL n.º 4/2015, de 7 de janeiro; revista Sábado, de 28 de maio; e entrevista a Francis Fukuyama em: sábado.pt

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Ideias da Câmara do Comércio e Indústria para Portugal

A Câmara do Comércio e Indústria Portuguesa (CCI) encomendou a um conjunto alargado de juristas e economistas um estudo denominado “Ideias para Portugal”, que contou com a participação de várias personalidades próximas do PS e do PSD, entre as quais Óscar Gaspar, Mário Centeno, Brilhante Dias, Luís Pais Antunes e Sofia Galvão.
Trata-se de um estudo que parece vir em contraponto com o cenário macroeconómico elaborado pelos sábios mobilizados por António Costa, vertido em relatório sob o título Uma Década Para Portugal, para servir de base de trabalho para desenho do programa eleitoral do PS.
“Ideias para Portugal” abrange uma série de áreas sobre as quais incide a governação e define uma série de caminhos possíveis para reformar o País (apresenta mais de uma centena de ideias), salientando-se três áreas: a da Segurança Social, proteção do emprego e mercado de trabalho; a da Saúde; e a da competitividade.
As reflexões para a área da Segurança Social e mercado de trabalho foram coordenadas por Luís Pais Antunes, advogado e antigo secretário de Estado da Segurança Social de governo do PSD/CDS; na área da competitividade, os trabalhos foram conduzidos por Pedro Madeira Rodrigues, da CCI; e, na área da saúde, a liderança foi confiada a Guilherme Magalhães, da José de Mello Saúde. Entre o painel de sábios consultados e citados na sessão de apresentação do estudo, constam nomes como o de Mário Centeno, que coordenou o já referido cenário macroeconómico para o PS (cuja menção pública causou mal-estar nos bastidores do Partido Socialista), Óscar Gaspar, Brilhante Dias, Jorge Bravo, Sofia Galvão, Henrique Gomes e Pitta e Cunha.
Segundo o que escreve o Diário Económico e o que se ouviu na RTP1, os peritos apontam quatro soluções possíveis para garantir a sustentabilidade da Segurança Social: o corte das pensões em pagamento, o aumento da idade da reforma, o reforço das fontes de financiamento e o alargamento da base contributiva. Além disso, defendem o fim dos regimes especiais (há corporações que têm condições de aposentação mais favoráveis que a generalidade), a criação de contas individuais (cada trabalhador desconta exclusivamente para as suas eventualidades) e a harmonização das taxas contributivas (contra a existência de muitos setores que não pagam a taxa social única completa).
No âmbito da competitividade empresarial, equacionam, entre outras medidas, a necessidade de reduzir “os exagerados impostos sobre o trabalho”.
No campo da saúde, preconizam, por exemplo, a separação das funções de financiamento da saúde das da prestação de cuidados, com o escopo de permitir que haja mais contratualização de serviços com o setor privado – mais entrega de serviços ao setor privado.
***
O mal-estar no PS pela menção pública de Centeno, sobretudo no atinente à defesa do corte de pensões, é contornado pelos responsáveis do estudo, que garantem que nenhum dos peritos ligados ao PS, oportunamente ouvidos, teve “qualquer responsabilidade” nas conclusões finais. Paes Antunes garante: “O texto é meu, ponto final. É da minha exclusiva responsabilidade”.
O ex-secretário de Estado da Segurança Social do Governo de Durão Barroso é efetivamente o coordenador das propostas de “Ideias para Portugal” nas áreas do Emprego e da Proteção Social. É certo que não esteve sozinho, pois, a fim de delinear o conjunto de medidas que garantem, na sua ótica, a sustentabilidade da Segurança Social, ouviu personalidades de várias áreas políticas. Entre elas, figura Mário Centeno, figura de proa no relatório Uma Década para Portugal.
Depois da sessão de apresentação do estudo “Ideias para Portugal”, que decorreu na manhã de hoje, 28 de maio, em Lisboa, choveram telefonemas e mensagens pedindo explicações para o facto de Centeno ser alegadamente coautor de um estudo que defendia preto no branco a “redução do valor médio das pensões em pagamento”. Rosário Gama, dirigente da APRE (Associação de Pensionistas, Reformados e Aposentados) e membro da comissão política do PS foi uma das recetoras das mensagens de indignação – refere Rosa Pedroso Lima no Expresso on line, hoje. 
Ora, Paes Antunes, ao garantir que o texto é seu e que não compromete rigorosamente nenhuma das outras personalidades com quem falou, não se limita a esclarecer o assunto. Tenta sobretudo pôr água na fervura “que ameaçava transbordar”. E, referindo-se ao caso concreto de Centeno, garante: “Até nem falei sobre Segurança Social com ele”. Assume, a propósito do texto final, que “este não é o resultado de um trabalho de reflexão de um grupo de pessoas; é só meu”.
Todavia, adianta ainda que “ninguém viu o documento, antes de o acabar”, mas também nenhum dos académicos auscultados “objetou a que fosse citado”. Segundo o que afirma, o texto original continha um esclarecimento que acabou por ser suprimido pelos organizadores e que acabou por dar origem às maiores dúvidas. Nesse esclarecimento se explicitava que o teor do documento e o que as medidas “possam ter de errado ou controverso – é da minha exclusiva responsabilidade, sendo injusto atribuí-las àqueles com quem, brevemente, troquei ideias sobre os temas em causa”. Por outro lado, “seria também injusto não mencionar todos aqueles que me deram o prazer de trocar algumas ideias sobre estes temas, em particular Fernando Ribeiro Mendes, Francisco Lima, Jorge Bravo, Jorge Gaspar, Mário Centeno, Miguel Teixeira Coelho, Pedro Portugal e Ricardo Campelo de Magalhães”. 
De modo similar se poderá falar dos militantes socialistas Eurico Brilhante Dias e Óscar Soares, citados no mesmo documento, mas na parte das medidas dedicadas à Saúde, coordenada por Guilherme Magalhães, que também recolheu as opiniões de personalidades diversas. Assim, não se pode atribuir àqueles dois militantes do PS, que figuram como “personalidades ouvidas”, a responsabilidade pela defesa da manutenção da ADSE como subsistema público de apoio na doença ou a defesa da “dedicação preferencial e não a exclusividade” dos profissionais de saúde no setor público.
***
Por seu turno, Raul Vaz, no Diário Económico on line, de hoje, lança a seguinte questão/repto: Importam-se de explicar o buraco da Segurança Social?
Em torno da questão, o colunista entende que tanto o Governo como o PS já perceberam que há “um buraco na Segurança Social” e “sabem que estão obrigados a explicar ao país a verdade a que temos direito”. Todavia, Vieira da Silva, que foi Ministro da área e que está por dentro do assunto, alinha-se com política oficial da direção do partido e avançou com a ideia de mais um Livro Branco.
Mas o estudo que António Costa encomendara a prestigiados economistas não permite mais ilusões. Basta lê-lo para perceber que é preciso mexer a sério no sistema de pensões.
E não precisamos de fazer do dito estudo um livro divinamente inspirado – uma Bíblia ou um Corão!
O Governo – no quadro do Passismo – diz Urbi et Orbi que o problema existe e que é grave e informou Bruxelas, através do Programa de Estabilidade, que “é preciso cortar 600 milhões nas pensões”. Mas, quando a ministra das Finanças disse, ipsis verbis, que a solução para a sustentabilidade do sistema a curto prazo “pode passar por cortar nas pensões em pagamento”, a campanha eleitoral entrou em aeremoto. Vieram logo em socorro da hipocrisia política Pedro Mota Soares, pelo CDS, e Marco António Costa, pelo PSD, a apagar o incêndio doméstico:
“Não, ninguém vai cortar nada sem um amplo consenso com o PS, sem um acordo na Concertação Social, sem uma proposta estruturada que ainda não existe, e sem ter em conta as linhas apontadas pelo acórdão do Tribunal Constitucional”.
Porém, ninguém da área governativa afastou liminarmente o corte nas atuais pensões, desde que integrado numa reforma estrutural do sistema.
Também o estudo de António Costa admite cortar pensões no futuro para compensar a baixa da TSU.
E que pensará o Presidente de todos os portugueses? E já agora, que dizem à matéria os candidatos presidenciais?
Estaremos perante casos de falta de coragem política ou perante falta de imaginação governativa?

Parem de mentir, de ocultar a verdade ou de dourar a pílula, senhores governantes e senhores candidatos a governantes!

Acolhimento a refugiados em Portugal

O que se tem passado no Mediterrâneo, que de berço-museu da civilização ocidental se transformou em hidrovala comum de inúmeros cadáveres, alertou a sensibilidade socialsolidária de muitos para o que ali se passa, mas também para o que sucede com as diferentes ondas de refugiados que se evadem dos seus contextos sociogeográficos por via das guerras, das perseguições étnicas e religiosas ou das catástrofes naturais.
A este respeito, a Comissão Europeia resolveu atribuir quotas a cada um dos Estados-Membros da UE, em conformidade com as possibilidades e as condições específicas de cada país. Como era de esperar, alguns Estados, que não os de menores recursos, preparam-se para contestar, aduzindo as suas razões, em grande parte de cariz eleitoralista, para não dizer xenófobo.
Em relação a esta matéria, por ocasião do encerramento da grande exposição “Da Alma de Portugal”, comemorativa dos 150 anos do Diário de Notícias (DN) e com o apoio exclusivo dos Jogos Santa Casa, o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Dr. Pedro Santana Lopes, fala sobre a ajuda que a instituição prepara para os refugiados e aquela que já presta diariamente a crianças, jovens, idosos e sem-abrigo.
E a grande afirmação que aflora na sua entrevista a André Macedo, diretor do DN, em que deu conta dos planos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa para receber refugiados em Portugal, é que “Já estamos a trabalhar para receber os refugiados. Temos de dar o exemplo.” Porém, admite que se trata de “um trabalho que vai durar anos”.
Dado o interesse da problemática, respigam-se os aspetos mais significativos da entrevista (vd DN on line, de hoje, 28 de maio).
***
Sobre o aumento estimado do número de refugiados que Portugal poderá receber em relação ao que estava previsto e tendo em conta o número de pessoas que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa apoia em regime de permanência, o provedor, que manifestara a intenção de receber uma parte substancial dos novos refugiados, explica-se: que manifestou essa abertura, falando na região de Lisboa, quando o número avançado era de cerca de 700; e que, de momento, o número de acolhidos pela instituição a que superintende já ultrapassa os dois mil.
Porém, observando o princípio das responsabilidades, assegura que hoje, por acordo entre a Santa Casa e o Governo, a Santa Casa tem efetivamente “essa responsabilidade mais do que qualquer entidade na região de Lisboa”, região para onde “se dirige a generalidade dos refugiados”. E é a Santa Casa a entidade que os deve acolher, o que já faz há muitos anos, “mas sempre com responsabilidades repartidas”. Mas “agora, a responsabilidade é praticamente exclusiva”, pois, a “questão dos refugiados envolve muitas vezes aspetos complexos”. Estes refugiados, “que alguns intelectuais políticos teimam, no bom sentido, em querer classificar como refugiados políticos”, são, acima de tudo, “refugiados económicos, sociais”. Por isso, postulam “uma resposta que não seja habitada pelos instintos egoísticos da parte de todos os que têm responsabilidades no continente europeu e, nomeadamente, na União Europeia”.
E aponta o dedo: “O Reino Unido disse logo que não queria receber mais. Outros países também torceram o nariz”. Mas “Portugal tem essa tradição, faz parte da identidade enquanto povo essa capacidade de acolher”. E, no contexto de Portugal, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa – bem como as outras Misericórdias e outras instituições como as Misericórdias (as IPSS) – tem uma obrigação acrescida.
Entretanto, o provedor garante que “já estamos a trabalhar nesse sentido”. Conta com um apoio financeiro significativo da UE para este processo de acolhimento de refugiados, que, neste momento, se cifra em cerca de seis mil euros por cada refugiado.
A Santa Casa tem vindo a identificar os espaços onde os receber (em Lisboa, fora de Lisboa, em colaboração com a rede da união das misericórdias e com as autarquias), os recursos humanos disponíveis e aqueles que é necessário recrutar para as diferentes áreas, e também a fazer o estudo repartido por camadas geracionais, por famílias, para casos em que as pessoas chegam sozinhas, sem o respetivo agregado familiar. É o trabalho de preparação para “para estarmos prontos quando nos disserem que eles vão começar a chegar”.
***
No atinente à dinâmica do trabalho, pressupõe que irá “durar anos”. É necessário colocar a “questão da coordenação”, prover à “integração social dos refugiados”, organizar “o processo educativo para os mais jovens, preparar o estudo das hipóteses de equivalência ou de regimes excecionais”. Se é certo que “a Santa Casa tem algum know-how na matéria”, também é verdade que “este caso é absolutamente excecional e liga-se com pessoas que também não são de língua portuguesa”, que “é também um aspeto que tem de ser cuidado”. Mostra-se também convencido de que as expectativas dos refugiados serão muito baixas neste momento: “querem é que uns braços os recebam”.
Quanto ao facto de Portugal não possuir a mesma capacidade de acolhimento, do ponto de vista económico, que os países do Norte da Europa, o que induziria grande parte dos novos refugiados a demandar esses países, Santa Lopes admite que “sim”. Todavia, e “não comparando de todo”, considera que, “tal como acontece com esta falange imensa de turistas que cada vez mais nos visita, quando conhecerem Portugal vão-se esquecer do Norte da Europa rapidamente”. Por outro lado, assegura que “estamos a preparar-nos para os receber como deve ser”, achando que “temos de dar este exemplo”. E continua a apontar o dedo à Europa, pensando “que fica muito mal haver uma só voz [que seja] na União Europeia que diga: Eu não quero”. Trata-se de “um continente que andou por todo o mundo, à descoberta de novos povos”. Não lhe fica bem, que, “agora perante este drama”, haja “uma voz que diga: não quero”.
***
No concernente à experiência que a Santa Casa tem para receber e ao trabalho desenvolvido no dia a dia, assegura que se trabalha muito nesta zona de Lisboa com idosos, com uma população de sem-abrigo, que aumentou muito com a crise, e também com crianças.
A este respeito, expande as suas declarações de modo bem informal:
Tenho 500 filhos na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Fora da Santa Casa tenho cinco; na Santa Casa são 500. Também com jovens, com os sem-abrigo. E trabalhamos muito com pessoas de idade. Temos uma tarefa para décadas, que é mudar aquilo que nós chamamos o paradigma do envelhecimento. É acabar com aquilo que todos nós sabemos, conhecemos e rejeitamos e, quando vemos, dizemos assim: “Quando chegar àquela idade eu não quero”.
Todavia, não resiste a falar do Norte da Europa e sobre as caraterísticas das suas populações:
No Norte da Europa há mais exercício, as pessoas são mais como uma linha, não têm tantas artroses, não têm tanta gordura. Porque têm alimentação mais regrada, porque fazem mais exercício desde cedo.
Já em Portugal, “as pessoas chegam a uma certa idade e já não se conseguem mexer, as famílias têm dificuldade em tomar conta delas e são postas num lar ou centro de dia”.
Ora este modelo tem de ser posto em causa. E, nas palavras do provedor, “a Santa Casa cada vez mais o põe em causa e trabalha numa perspetiva de intergeracionalidade”.
E dá exemplo de tipologias de experiências-piloto na lógica intergeracional e intercultural:
Uma casa polivalente: para pessoas aposentadas, um espaço, tem de ter sempre apartamentos para universitários ou às vezes para agregados familiares a meio do percurso normal de vida. Depois temos um espaço comum, em refeições, em leisure (distração, entretenimento), onde as pessoas podem estar juntas a tomar o pequeno-almoço, à hora de jantar. E depois, ao mesmo tempo, estamos a desenvolver metodologias, programas de trabalho que levem, imagine, os mais novos, logo de manhã, a puxarem pelos mais idosos e irem fazer exercício físico. À noite, a capacidade também dos mais idosos de se “vingarem”, a contar um episódio das suas vidas que lhes possa servir de lição.
E adianta que “estamos a fazer isso já com pessoas que estão nas suas casas”.
Depois, aduzindo que não podem construir-se os novos espaços todos de uma vez, explicita:
Há um lar que temos no Palácio dos Marqueses de Minas, no Bairro Alto, que vai mudar para outro espaço da Santa Casa. O novo espaço, que já existe – este não é construído de novo –, já vai ser habitado nessa lógica. Tudo o que fazemos hoje em dia, quer seja construção nova quer seja nos espaços que já temos, é obrigatório ser nessa lógica de comunhão intergeracional. Têm de acabar estes estigmas: “Ali é a casa dos velhos, ali é a casa dos mais novos”.
***
No respeitante ao trabalho que tem sido feito com os sem-abrigo de Lisboa, assegura que se trata de um trabalho que, “infelizmente, continuará a existir sempre”. Porém, refere que, se nos ativermos aos dados estatísticos, de há dois anos para agora, diminuiu em cerca de 10% o número de sem-abrigo que se encontram nas ruas de Lisboa. No entanto, esta diminuição não se pode atribuir à recuperação económica, mas a uma “razão, que é óbvia”: A maior parte saiu da Baixa por causa dos turistas. Foram para outras zonas da cidade, como Benfica, Amoreiras. Não querem a agitação dos turistas. Isto vai continuar.
Está convicto de que não há hipótese de os sem-abrigo algum dia acabarem, “até porque há pessoas que fazem aquela opção e nós temos de respeitar”.
Acrescenta que “nós melhorámos muito e estamos a melhorar, em articulação com a câmara”.
Contrariando a tendência de algumas instituições lutarem vergonhosamente entre si “por espaço de comando”, noticia que “entre a câmara e a Santa Casa há imensa colaboração”. Conta mesmo o caso da mitra:
No Beato, há uma coisa chamada mitra, de que todos já ouvimos falar. Um pouco antes do meu mandato [como provedor], a mitra e outros equipamentos passaram para a Santa Casa. É impressionante como as sociedades vivem sem saberem o que têm no meio. Nenhum de nós faz ideia daquilo que estava lá. Dezenas de pessoas – ainda estão algumas – que não vinham fora daqueles portões, algumas há décadas. Aquilo era ainda um pouco ao abrigo do estatuto da mendicidade, do anterior regime. E ficava no meio de Lisboa.
***
Confessa que, em quase quatro anos como provedor, ficou muito surpreendido com a vulnerabilidade das pessoas, afirmando que é precisa alguma resistência psicológica para fazer o dia adia numa instituição como esta, no meio de uma crise como aquela que atravessamos, pois há muitos pedidos, muito desespero.

É, pois, importante que os poderes e a sociedade civil estejam totalmente abertos ao sofrimento alheio e ao bem comum! 

Crianças como objeto mercantil

Passa na Internet, pela mão da jornalista da TVI Alexandra Cristina Guerreiro Palma Borges, uma petição pública contra a escravatura do século XXI e a favor da libertação de todas as crianças escravas do lago Volta, no Gana. Os seus destinatários são, em Portugal, a Assembleia da República e o Primeiro-Ministro e, a nível internacional, o Tribunal internacional dos direitos humanos e a UNICEFF.
Com efeito, o que se passa naquela região do mundo é extremamente escandaloso e condenável. Crianças de 3 e 4 anos são vendidas, no Gana, pela insignificante quantia de 30 euros a traficantes pelos próprios pais, que assim renunciam à paternidade. Depois, são revendidas para serem escravizadas na faina da pesca no lago Volta, o maior lago artificial do mundo.
Esta forma de escravidão – o tráfico de crianças – num tempo em que o progresso faz impar de orgulho a gente bem falante dos séculos da pós-modernidade, faz-nos regressar aos tempos de má memória da revelha antiguidade em que uns tinham que ser escravos para que outros pudessem pensar ou ao mundo bíblico veterotestamentário e mesmo ao dos contemporâneos de Cristo, em que as crianças não eram consideradas como seres humanos com personalidade e capacidade e, tal como as mulheres, nem sequer eram contadas (vd Mt 14,21; 15,38).
Depois, num século em que todos enchem a boca e os documentos com a dignidade da pessoa humana e com o respeito pela vida humana condigna (desde a conceção até à morte natural), conquistado que foi o quadro dos direitos humanos (1948) e, em especial, os direitos da criança (1959), com a convenção sobre os direitos da criança (1989), vários grupos humanos recebem as crianças a troco de dinheiro (muito ou pouco: é sempre iníquo). E são os pais que as vendem e sabem que elas vão ser revendidas. Ali, no Gana, é para o trabalho; noutros lugares, são compradas e revendidas para a exploração sexual; noutros ainda é para a morte, para a ablação de órgãos e fabrico de alguns produtos ditos de beleza. Já Bento XVI, mas sobretudo a agora o Papa Francisco insistem nesta cruzada contra o flagelo das novas/velhas formas de escravidão.
É o reino da hipocrisia, é o reino do divórcio entre o que se prega, declara e convenciona e o mercantilismo que lucro impõe ao arrepio da dignidade, do respeito e do cumprimento das leis.
As preditas crianças do Gana trabalham 14 horas ao dia, em sete dias por semana, quer faça chuva quer faça sol e estejam ou não doentes. E estão totalmente desumanizadas: são conhecidas por Kobies e Kofies, conforme o dia da semana em que foram vendidas; desconhecem a sua idade, a sua identidade; muitas acabam afogadas no lago Volta; e algumas são assassinadas pelos próprios pescadores que as atiram vivas aos crocodilos. 
A opinião pública fica estarrecida com o que se tem passado no Mediterrâneo – a caminhada de homens, mulheres e crianças para a exploração da parte de grupos de traficantes ou para a morte no mar, na convicção esperançosa de que viriam a ter o sustento através do trabalho justamente compensado. Não sei, contudo, se a opinião pública – civilizada, democrática, solidária e cristã – está disponível para condenar a velha e nova modalidade de escravização de crianças, tal como a pululante escravização e coisificação de mulheres em várias partes do mundo, ser voz ativa e força eficaz para travar, minorar e anular as situações de escravidão.
***
A promotora da petição pública em causa esclarece que “resgatar uma criança destas não resolve o problema porque, no dia seguinte, os pescadores colocam duas novas crianças no seu lugar...e a infância continua a ser roubada a estas crianças, um pouco, todos os dias, perante o olhar passivo de muita gente que prefere não ver”. 
Depois, coloca o dedo na ferida da ineficácia das leis, à semelhança do que se passa em diversos países sobre diversas matérias em confronto com as leis que enquadram a sua regulamentação:
“Apesar de a escravatura e tráfico infantis estarem criminalizados na legislação do país, a verdade é que não há um único traficante ou pescador na cadeia” – sublinha. 
Aquilo que pode contribuir para acabar com esta e outras modalidades de escravatura e comercialização de seres humanos no século XXI é a indignação de cada um e do coletivo e a divulgação, por todos os meios, deste atentado e de outros como este aos direitos humanos. 
É a INDIFERENÇA globalizada que está a matar as crianças do Gana. É urgente ajudá-las. E uma das formas de ajuda é a assinatura da petição promovida pela referida jornalista, que irá chegar às mais altas instâncias nacionais e internacionais. Ao ter conhecimento do que se está a passar, ninguém vai querer tornar-se num cúmplice silencioso de toda esta situação e de situações similares.
***
A nível nacional, os destinatários são o Parlamento e o Governo. Além de constituírem peças com voz internacional que influencie o rumo do devir no mundo, são órgãos de soberania que podem e devem estar com atenção à necessidade de melhorar as nossas leis e demais disposições regulamentares atinentes aos direitos humanos e à promoção da dignificação da pessoa humana e, em especial, as crianças. Ademais, devem criar e manter mecanismos de fiscalização suficientemente eficazes para que as leis se cumpram, sobretudo quando estão em causa as questões da dignidade humana e os direitos humanos.
Depois, é necessário recalibrar as medidas. Em Portugal, condena-se e bem, mas pratica-se a exploração do trabalho infantil, sem que as competentes entidades intervenham eficazmente. Mas reina a hipocrisia: confunde-se “exploração do trabalho infantil” com “trabalho da criança ao pé dos pais”, exercitado parcamente segundo as condições de idade, compleição física e psíquica e, sobretudo com a “educação pelo trabalho”. Impede-se a criança ou o adolescente da propedêutica a uma profissão, mas faz-se o concurso do jovem autarca e o “faz de conta” dos meninos empresários e, sobretudo, exploram-se rudemente as crianças em spots publicitários e em telenovelas.
Mais: as crianças não trabalham, mas entregam-se tempo infindo e de forma absorvente a computador, Internet, playstation, etc. Através da música em tom demasiado volumoso – música ambiente ou através dos auscultadores – criaremos gerações com risco mais provável de surdez; e, mantendo as crianças e adolescentes em espaços demasiado fechados, criaremos adultos com o risco mais provável de miopia.
Achamos que as crianças têm de brincar mais, caso contrário não têm infância de jeito e não aprendem a pensar; e inseriu-se como quase essencial uma forte componente lúdica na educação e no ensino, quase a ponto de fazer esquecer que o ensino exige esforço e trabalho. Todavia, não sei se um docente, se enveredar por uma docência a partir da componente lúdica, não ficará torpedeado por alguma franja considerável da opinião pública, designadamente pais e colegas.
Com efeito o reino da hipocrisia torna-se demasiado excludente. O que nós pensamos tem de fazer lei e, se for mau, será sempre desculpável, mas com alguma celeridade proscrevemos o que provém da iniciativa alheia.
***
Talvez seja necessário e oportuno voltar à Bíblia para interiorizar a dignidade do ser humano e a justa igualdade básica entre homem mulher – o ser humano como indivíduo e em relação:
Depois, Deus disse: “Façamos o ser humano à nossa imagem, à nossa semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre todos os répteis que rastejam pela terra” (não para que domine sobre o outro homem, digo eu). Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher. Abençoando-os, Deus disse-lhes: “Crescei, multiplicai-vos, enchei e submetei a terra. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se movem na terra”. Deus disse: “Também vos dou todas as ervas com semente que existem à superfície da terra, assim como todas as árvores de fruto com semente, para que vos sirvam de alimento. E a todos os animais da terra, a todas as aves dos céus e a todos os seres vivos que existem e se movem sobre a terra, igualmente dou por alimento toda a erva verde que a terra produzir”. E assim aconteceu. Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa. (Gn 1,26-31).
A alegoria seguinte ensina que, se a mulher tivesse sido formada da cabeça do homem (varão), seria superior a ele; se tivesse sido formada do calcanhar do homem, seria inferior; mas, como saiu do seu lado, da costela, de ao pé do coração, é igual ao homem (varão), é semelhante a ele, da mesma semente e é capaz de colaborar com ele (auxiliar) e unir-se a ele:
O homem designou com nomes todos os animais domésticos, todas as aves dos céus e todos os animais ferozes; contudo, não encontrou auxiliar semelhante a ele. Então, o SENHOR Deus fez cair sobre o homem um sono profundo; e, enquanto ele dormia, tirou-lhe uma das suas costelas, cujo lugar preencheu de carne. Da costela que retirara do homem, o SENHOR Deus fez a mulher e conduziu-a até ao homem. Então, o homem exclamou: “Esta é, realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher, visto ter sido tirada do homem!”. Por esse motivo, o homem deixará o pai e a mãe, para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne. (Gn 2,20-24).
Quanto à criança, ela resulta da união do homem e da mulher – é filho ou filha – tendo, pois, a semelhança com Deus, a semente de Deus, que origina a diversificação na igualdade fraterna:
Adão conheceu Eva (quer dizer: teve relações carnais com ela), sua mulher. Ela concebeu e deu à luz Caim, e disse: “Gerei um homem (um ser à imagem e semelhança de Deus) com o auxílio do SENHOR”. Depois, deu também à luz Abel, irmão de Caim. Abel foi pastor, e Caim, lavrador. (Gn 4,1-2).
Depois, Jesus Cristo, perante a resistência dos próprios discípulos, eleva a criança à capacidade de possuidora do Reino dos Céus:
Apresentaram-lhe, então, umas crianças, para que lhes impusesse as mãos e orasse por elas, mas os discípulos repreenderam-nos. Jesus disse-lhes: “Deixai as crianças e não as impeçais de vir ter comigo, pois delas é o Reino dos Céus” (Mt 19,13-14; Mc 10,13-16; Lc 18,15-16).
Em Marcos vai mais longe ao apontar a pequenez como paradigma de acesso ao Reino: “Em verdade vos digo: quem não receber o Reino de Deus como um pequenino, não entrará nele” (Mc 10,15). Com efeito, é a partir das crianças que Jesus define a grande condição de pertença ao Reino dos Céus (vd Mt 18,1-5; cf Mc 9,33-37; Lc 9,46-48; Jo 13,20):
Os discípulos aproximaram-se de Jesus e perguntaram-lhe: “Quem é o maior no Reino do Céu?”. Ele chamou um menino, colocou-o no meio deles e disse: “Em verdade vos digo: Se não voltardes a ser como as criancinhas, não podereis entrar no Reino do Céu. Quem, pois, se fizer humilde como este menino será o maior no Reino do Céu. Quem receber um menino como este, em meu nome, é a mim que recebe”.
***

Talvez, se os intervenientes na causa pública interiorizassem a doutrina, a escravidão acabasse.

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Os 10% e dois terços de Costa

Depois do estudo macroeconómico que os economistas convocados para o efeito pelo PS apresentaram e que o secretário-geral, embora não o considere a “Bíblia”, entende encorpar, em sua maioria, no programa eleitoral do PS, a apresentar publicamente a 6 de junho, apareceu já o projeto de programa. Este esboço programático, que mereceu a aprovação unânime no órgão partidário que o apreciou, apresenta um conjunto 21 opções governativas distribuídas por cinco áreas temáticas. Algumas são objeto de crítica acerba de militantes que, por motivos de agenda pessoal, não estiveram presentes, mas que, segundo dizem, teriam votado contra.
Dispensando-me de produzir um juízo global sobre o documento, até porque o que vai servir de discussão política será o programa eleitoral a apresentar no princípio de junho, quero destacar as questões atintes à Segurança Social e às obras públicas.
***
Também a mim me suscitam fortes dúvidas as opções que se relacionam com a alegada e estafada (in)sustentabilidade da Segurança Social. É óbvio que a Segurança Social tem que estar em risco, mercê da negligência e das opções políticas oscilantes. Assim, deixar que prescrevam regularmente dívidas de trabalhadores e/ou empresários à Segurança Social por falta de cobrança coerciva, que sejam utlizados fundos (regulares e especiais) do Instituto de Segurança Social para compra de dívida pública, que se distribuam sem fiscalização suficientemente eficaz verbas de rendimento social de inserção ou de subsídios de desemprego, que o Estado venha capturar os fundos de pensões de instituições privadas com o compromisso de assunção do pagamento de pensões futuras, ou que ocorra a retenção indevida de verbas devidas à Segurança Social nos casos em que o Estado funciona como entidade patronal para com trabalhadores do regime geral – tudo isto e o mais que se desconhece constitui fator de empobrecimento do mecanismo de capitalização da Segurança Social.
Por outro lado, ter o Governo optado por, a partir de uma determinada data, fechar a porta de inscrição dos funcionários públicos na CGA (Caixa Geral de Aposentações), devendo os mesmos ser inscritos do regime geral de segurança social, implica que o Estado deixe de contar exclusivamente com as contribuições dos atuais subscritores da CGA, mas abra cada vez mais os cofres do Orçamento do Estado para o pagamento das pensões de aposentação dos atuais e antigos servidores do Estado. Aqui não se pode colocar honestamente o problema da (in)sustentabilidade, a não ser na ótica de políticos hábeis na confusão de narizes temáticos.
De modo semelhante se deve concluir quanto à ADSE. O Governo deixou de obrigar à permanência neste subsistema de saúde por parte dos atuais funcionários públicos, por considerar que o subsistema funciona como um seguro de saúde. Sendo assim, os atuais subscritores podem sair e optar por um seguro de saúde, por sua conta e risco. A isto acresce o facto de, há uns anos a esta parte, a maior parte dos novos trabalhadores da administração pública deixar de estar inscrita na ADSE por via da sua inserção no regime geral de segurança social. Ora, a maior parte dos atuais subscritores de longo tempo de contribuição não está em condições de abandonar o subsistema e passar para uma seguradora, face à faixa etária a que pertencem. Por seu turno, os mais novos são tentados a sair da ADSE, pois encontram seguradoras que os acolhem com uma contrapartida contributiva mais em conta. Ora, o Estado, como pessoa de bem, não podia baralhar assim os seus servidores. Depois, é de perguntar como se atrevem a garantir que a ADSE subsiste unicamente com a comparticipação dos seus subscritores, quando muitos dos atuais a abandonam e os novos são cada vez menos.
Já em 2002-2004, quando se procedeu à alteração de cálculo das pensões de aposentação, eu achava preferível aumentar a contribuição dos subscritores da CGA. O aumento das contribuições fez-se, mas o somatório da pensão vem sendo drasticamente alterado para menos.
Não vejo como a redução da TSU, seja do lado do trabalhador seja do lado do patrão, seja dos dois lados não possa ajudar a pôr em causa a sustentabilidade da Segurança Social. Já o assaz propalado plafonamento das contribuições a que venha a corresponder um similar plafonamento das pensões não adianta nem atrasa em nada a questão da sustentabilidade da Segurança Social. Porém, António Costa insiste na redução da TSU da parte dos trabalhadores e propõe a retirada de 10% do fundo de estabilização da Segurança Social para os programas de reabilitação urbana e, simultaneamente, garante não pôr em causa a sustentabilidade da Segurança Social, porque se diversificam as suas fontes de financiamento. Todavia, não explica quais serão essas fontes alternativas de financiamento. É certo que o aumento do emprego, e também o resultante da execução de programas de reabilitação urbana, aumenta as contribuições para a Segurança Social – bem como é certo que, se o trabalhador dispuser de mais dinheiro (por via da redução da TSU), o consumo aumentará e, por consequência, a receita fiscal indireta – mas apenas se forem anuladas todas as situações de negligência e de más opções políticas acima elencadas.
***
Entretanto, a intenção do PS de estabelecer a exigência legal de os programas plurianuais de investimento em obras públicas dependerem da aprovação parlamentar, por maioria qualificada de 2/3, parece resultar de uma preocupação genuinamente democrática. Com efeito, apesar de a Assembleia da República (e, por consequência, o governo que dela emana) ser eleita para um mandato de quatro anos, sucede que um governo, ainda que não disponha de maioria absoluta, possa assumir, em nome do Estado, compromissos de longo prazo que se alarguem para além do limite temporal da legislatura em que ao Governo é dado governar, condicionando a liberdade de ação dos governos subsequentes. Daí surge a consequência de que não só os governos subsequentes se veem obrigados a respeitar compromissos financeiros e outros assumidos por governos anteriores, como tais compromissos mobilizam recursos de que o governo em funções não pode dispor para cabal execução dos programas próprios.
Todavia, optar pela ideia do PS de simplesmente fazer depender a execução de um programa plurianual de obra pública da aprovação de maioria qualificada de dois terços dos deputados da Assembleia da República não resolve, em meu entender, a questão. A definição das Grandes Opções do Plano e a Lei do Orçamento do Estado, embora sejam concebidas para a vigência de um ano económico, comportam opções plurianuais. Contudo, ninguém até ao momento equacionou a hipótese de exigir uma maioria qualificada de dois terços dos deputados para a aprovação daqueles diplomas, bastando já as dificuldades que emergem em caso de governo minoritário. E são estes diplomas e outros que abrangem matérias conexas com eles que habitualmente são objeto da disciplina partidária, cuja não observância implica penalização para os deputados desalinhados do respetivo grupo parlamentar.
Não faz, pois, sentido exigir aquela maioria para obras públicas e não para a restante matéria orçamental de implicação plurianual. Ademais, faria depender a política de investimento público – crucial na perspetiva explícita do PS para o impulso à economia – das boas graças do principal partido da oposição ou, como opina José Vítor Malheiros (vd Público, de hoje, 26 de maio), estaremos perante “a maioria qualificada e o risco do centrão eterno”. Eu penso que, a ser assim, corremos o risco de não haver obras públicas em tempo útil. Veja-se o que passa com as leis eleitorais ou a que determina a limitação de mandatos para presidentes de órgãos executivos.  
É certo que, conforme desenvolve o colunista acima referenciado, um governo pode ver-se obrigado a cumprir o programa do governo anterior e impedido de cumprir o seu, frustrando as legítimas aspirações do povo soberano e baralhando a lógica da escolha democrática. Porém, não se coloca, a meu ver, um problema de “abuso de confiança” ou de “abuso de poder”, já que, se cada governo é eleito para governar apenas quatro anos e não mais, também os eleitores, aquando da votação, sabem quais as obras que estão em projeto ou em curso, podendo fazer a sua justa avaliação. Depois, queiramos ou não, há por regra uma certa solidariedade sucessiva na governação, que, a não ser em período revolucionário, ninguém põe em causa. Ou seja, todos os governos assumem na sua gestão compromissos de implicação plurianual que obrigam os governos seguintes. Mas este jogo tem usualmente vencedores alternados, que tacitamente aceitam entre si estas vicissitudes da democracia, que beneficia umas vezes uns e outras vezes outros. E isto não ocorre apenas nos investimentos em obras públicas. A produção legislativa é habitualmente plurianual, melhor sem limite temporal, de acordo com o velho princípio, leges a se sunt perpetuae.
O colunista do Público assinala com razão, a diferença existente entre uma lei e um contrato: “é fácil mudar a lei, mas é quase impossível alterar o contrato que ela permitiu”. Se “a lei protege o contrato”, ela não se protege “a si própria”. Em regra, “mesmo que seja alterada a lei ao abrigo da qual um contrato foi celebrado, este permanece válido na generalidade dos casos”. É óbvio que a proteção da lei aos contratos (pactos, acordos e tratados – pacta sunt servanda) visa proteger a confiança – e sem esta a vida em sociedade seria problemática – mas também origina quadros de proteção jurídica que abrigam certos atos iníquos que escapam, durante longos períodos de tempo, ao escrutínio de uma ação política atenta. E a confiança não pode obter-se a qualquer preço.
O mesmo acontece com os tratados da União Europeia, subscritos por “governos em nome dos Estados membros da UE sem discussão interna e sem um processo democrático prévio, mas que aprisionam no seu espartilho jurídico as vontades dos povos desses países, de facto pouco ou nada soberanos”. Penso que mesmo aqui, embora se tenha cometido o erro de não submeter a referendo as grandes opções europeias, não há uma responsabilidade exclusiva do Governo. Que está a fazer o Presidente, que ratifica os tratados? Porque não suscitam os deputados o conveniente debate parlamentar prévio?
Quanto à alegada proteção privilegiada da lei aos contratos e não a si própria, há que perguntar porque é que a lei não prevê a denúncia sem penalização dos contratos logo que se detete grave prejuízo para alguma das partes, mormente quando o bem comum fica gravemente lesado. A contrario, pergunte-se qual a razão por que o Estado remete para as Calendas gregas os contratos sociais e/ou de administração com os seus servidores e os cidadãos em geral. Não estaremos antes perante um fenómeno de hipocrisia política ou perante o grave cenário do estado fraco com os poderosos e forte com os fracos?
Por isso, não percebo a preocupação do PS, como não percebo, a não ser à luz das questões acima levantadas, o Governo quando aborda publicamente a problemática das “parcerias público-privadas celebradas em nome do Estado português (tanto por governos do PS como do PSD), e cuja vigência se estende por vezes por períodos de 30 e 40 anos, com rendimentos garantidos à custa do erário público e sem riscos para as empresas amigas que deles beneficiaram”. Também o caso dos contratos swap, “com os mesmos resultados e uma proteção jurídica semelhante” é escandaloso, já que vai surgindo pela mão de quadros técnicos que estavam na oposição e só gritaram “Fogo!” quando chegaram ao Governo. Depois, falamos da promiscuidade… E porque não se questiona o calculismo, a insuficiência de caráter e de patriotismo? Ademais, se é legítima a pretensão do PS na exigência de maioria absoluta para as grandes opções, porque não a estende a outras medidas, por exemplo, às atinentes à Justiça, às privatizações, à Educação? Todavia, eu penso não se dever alargar o âmbito das matérias que obriguem a maioria qualificada de dois terços, desde que superior à maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções, para lá das leis de revisão constitucional (bem como para a confirmação de leis vetadas que versem algumas matérias – art.º 136.º/3 e art.º 279.º/4) e do estabelecido no art.º 168.º/6 da CRP:
A lei respeitante à entidade de regulação da comunicação social; as normas que disciplinam a renovação sucessiva de mandatos dos titulares de cargos políticos executivos; a lei que regula o exercício do direito de voto dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro, devendo ter em conta a existência de laços de efetiva ligação à comunidade nacional; as leis atinentes à composição da Assembleia da República e as que definem os círculos eleitorais e o número de deputados por círculo; a lei que regule a eleição dos órgãos autárquicos, os requisitos da sua constituição, funcionamento e destituição; as restrições ao exercício de direitos por militares e agentes militarizados dos quadros permanentes em serviço efetivo, bem como por agentes dos serviços e forças de segurança; e as disposições dos estatutos político-administrativos das regiões autónomas que enunciem as matérias que integram o respetivo poder legislativo.
De resto, como opina Malheiros, obrigar demasiadas decisões a maiorias qualificadas terá como consequência a paralisia de governo ou a criação do “centrão eterno”, em que todas as decisões seriam tomadas e negociadas e objeto de contrapartidas mútuas entre os maiores partidos, colocando-os nas mãos um do outro. Mesmo a maioria qualificada resultante da maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções, requerida para as leis orgânicas nos termos do art.º 168.º/5 da CRP, também traz as suas dificuldades. Porém, o que tem de ser tem muita força. E há matérias bem importantes que bem exigem a presença dos deputados.

Como muito bem refere Malheiros, “a política precisa de consensos, mas precisa igualmente de confronto, de contraditório, de debate, de discussão, de alternativas, de escolhas. A democracia é o regime da escolha livre entre diferentes alternativas e, se não for isso, não será nada. A escolha de um governo ou de um partido deve ser a escolha de algo, em detrimento de outra coisa. Obrigar um partido a diluir a sua identidade, as suas propostas, em nome do consenso ou da maioria qualificada não é, por princípio, a melhor opção, porque reduz de facto o leque de escolhas e, sendo assim, empobrece a democracia”. Ao invés, “as outras propostas do PS neste mesmo domínio (transparência, discussão pública, recurso a organizações científicas) parecem muito mais eficazes (e importantes do ponto de vista simbólico, digo eu), do ponto de vista do aprofundamento da democracia, do que esta maioria qualificada”.