No primeiro domingo de maio, a
mulher mãe está de parabéns. Festeja-se a sua condição de mãe como única, mesmo
que tenha resultado de vários episódios de maternidade. A um tempo se
homenageia a mãe que vive rodeada dos seus filhos e aquela que os tem
fisicamente longe do quotidiano e se honram a memórias daquelas mães que já nos
contemplam a partir do empíreo da eternidade.
É a celebração do dom da
maternidade e da postura e ações que a maternidade implica e convoca,
necessária sobretudo num tempo de crise da natalidade, na depreciação da
maternidade, na criação de inúmeros óbices ao seu condigno exercício – que
resultam das estruturas injustas da sociedade, do excesso de mercantilização da
vida e também (porque não
dizê-lo?) do comodismo e da incapacidade de ultrapassagem das
dificuldades da parte de algumas mulheres, que recusam a maternidade ou não
sabem lidar bem com ela.
Por outro lado, é preciso
reconhecer que, em todos e cada um dos dias do ano, a mãe merece atenção,
carinho, cuidados e veneração.
No âmbito da comemoração do Dia da Mãe, a Comissão Episcopal do
Laicado e Família (CELF), da CEP, em
comunicado adrede preparado, “saúda todas as mães e compartilha a enorme
alegria e gratidão que esta data significa para elas e para as suas famílias”.
Recordando que o primeiro amor que a pessoa experimenta usualmente é o do pai e
da mãe, acentua que “é no seu olhar amoroso, raiz e fundamento da vida, que o
filho reconhece a sua individualidade e vai construindo e assumindo a sua
própria história”. Porém, o documento sublinha que “é sobretudo no sorriso
materno que a criança encontra a primeira e feliz mensagem de acolhimento” e,
nela, a afirmação do valor da vida, a valia da “confiança tranquila e serena
numa verdadeira relação de amor”, da força sustentacular da existência humana e
espiritual por parte da doação generosa do amor materno, oferecido sem limites
e sem reservas.
Oportunamente, a CELF faz suas as palavras do Papa
Francisco que afirma que “as mães são o antídoto mais forte contra o
individualismo egoísta”, pois, enquanto “indivíduo” significa o “que não se
pode dividir”, as mães “dividem-se” a partir de quando “recebem um filho para o
dar ao mundo e fazer crescer”.
Ou dito de outro modo, as mães multiplicam as suas
palavras de reforço amoroso, oferecem os seus gestos de entrega e dedicação,
desdobram-se em tarefas e atividades para que nada falte, sobretudo quando a
debilidade, a saúde, a educação ou o bem-estar o exigem. São mestras na
resistência à fadiga e às adversidades, na paciência silenciosa, na organização
do tempo que parece sempre estar a faltar, no estabelecimento de cumplicidades
com o fruto de suas entranhas, na proliferação de recomendações e conselhos, na
construção do caráter, na invenção de recursos e de soluções e na intervenção
audaz quando o perigo espreita. E raramente exigem correspondência, gratidão ou
cobram qualquer tipo de contrapartidas.
Alguém afirmou
recentemente que “a mãe tem um papel único” e que “isso torna ainda mais
difícil e exigente para a mulher conjugar tudo o que ela sente como um pelouro
dela própria” (vd Paula Martinho da Silva, in Ecclesia, 3 de maio). Por isso, a CELF não perde o ensejo de destacar “o
valor fundamental das mães na família, na sociedade e na Igreja”, e de “lembrar
que o seu estatuto e missão bem merecem a melhor atenção a nível político,
legislativo, laboral e social, para que se sintam mais apoiadas e dignificadas
na sua tarefa insubstituível de humanização da sociedade”. Na esteira do
discurso papal, sublinha que “são elas que testemunham a beleza da vida”. Por
outro lado, sobressai a advertência de que “a sociedade sem as mães seria uma
sociedade desumana, porque as mães sabem testemunhar sempre, mesmo nos piores
momentos, a ternura, a dedicação, a força moral”.
E, consistiria uma injustiça à CELF e às mães não
meditarmos este segmento discursivo do comunicado, em que se destaca o papel
das mães na ultrapassagem da crise atual, se protesta contra a violência (eu diria “blasfema”
e “sacrílega”) de que
algumas são vítimas, se agradece o testemunho de amor e dedicação e se impetra
a proteção da mãe das mães, a Virgem Maria, o arquétipo transcendental da
mulher e da mãe:
Em tempo de
redobradas dificuldades socioeconómicas, acentuamos a importância do papel
assumido por muitas mães no equilíbrio difícil da sobrevivência de tantos
lares, repudiamos e lamentamos a violência de que algumas são vítimas e
agradecemos-lhes o seu testemunho de amor e dedicação permanente às causas nobres
do bem comum, a começar pela família. Felicitamos as mães, rezamos por elas,
sobretudo por aquelas sobre as quais mais pesa o ‘martírio materno’. Pedimos a
Maria, mãe de Jesus e nossa mãe, que as acompanhe e proteja com a sua
solicitude materna para que, confiando no Senhor, sejam fortes e corajosas na
sua missão familiar e educativa, testemunhando sempre a alegria do
Evangelho.
***
Também neste dia, embora não me sinta muito à vontade
para um desenvolvimento razoável desta vertente, queria evocar a mulher e a mãe
como expressão especial do rosto materno de Deus.
No contexto do seu sorriso e da sua postura
aparentemente informal, o
papa João Paulo I causou surpresa, ao afirmar que “Deus é Pai e Mãe”. Com
efeito, ao comentar, em 10 de setembro de 1978 à recitação do Angelus, a cimeira pela paz no Médio
Oriente entre Carter, Sadat e Begin, citou palavras de cada um deles. Mas deu
especial atenção a Begin, que, ao recordar que o povo hebraico, passando
outrora momentos difíceis, dirigira ao Senhor o seu lamento, “abandonaste-nos, abandonaste-nos!”. Mas
o Senhor respondeu-lhe por meio do profeta Isaías: “Não. Acaso, pode uma mulher
esquecer-se do próprio filho? Mas ainda que ela se esquecesse dele, nunca Deus
esquecerá o seu povo” (cf Is
49,15). E o Pontífice garantia:
“Somos objeto, da parte de Deus, dum
amor que não se apaga. Sabemos que tem os olhos sempre abertos para nos ver,
mesmo quando parece que é de noite. Ele é papá; mais ainda, é mãe. Não quer
fazer-nos mal, só nos quer fazer bem, a todos. Os filhos, se por acaso estão
doentes, possuem um título a mais para serem amados pela mãe. Também nós, se
por acaso estamos doentes de maldade, fora do caminho, temos um título a mais
para que o Senhor nos ame.”.
Deus é espírito e, por isso, os que O
adoram, devem adorá-Lo em espírito e verdade (Jo 4,24). Deus é espírito e, como tal, é
invisível. Tornou-se visível de forma eminente em Cristo (Quem
me vê, vê o Pai – Jo 14,9).
Mas Deus torna-se visível em cada homem e em cada mulher, já que o ser humano
foi criado – homem e mulher – à imagem e semelhança de Deus (cf
Gn 1,26.27)
e de Deus recebeu o mandamento de crescer, multiplicar-se, encher e dominar a
terra (cf Gn 1,28).
Como peculiar do homem, ressalta a
paternidade; e, como peculiar da mulher, foi-lhe atribuída a propriedade da
função maternal (cf Gn 2,24; 3,30).
Ao contrário das religiões politeístas,
em que os deuses e deusas (muitos e muitas, já que os homens e
mulheres também são muitos e muitas e têm muitas virtudes e defeitos e passam por
muitas circunstâncias)
são feitos à imagem e às semelhanças dos homens, o judaísmo, o islão e o
cristianismo reconhecem e adoram um só Deus, que fez o homem – varão e mulher –
à sua imagem e semelhança. E, enquanto para os pagãos Se lhes afigurou como o
“Deus Desconhecido”, de quem Paulo quis falar aos atenienses (At,
17,23), quanto ao povo
bíblico, o Senhor “revelou-Se muitas vezes e de muitos modos aos nossos pais,
nos tempos antigos pelos profetas” – neste sentido, os patriarcas, Moisés e
Josué, os juízes, os reis, os sábios e os profetas no sentido estrito – “mas,
nestes dias, que são os últimos, falou-lhe por Seu Filho” (Heb
1,1-2), “nascido de uma
mulher “(Gl 4,4).
Ele é que é o resplendor da glória do Pai e imagem fiel da sua substância (Heb
1,3). Os outros homens e
mulheres – incluindo Maria, que tem na economia da salvação um papel relevante,
com o SIM em Nazaré, em Belém, no Egito, em Nazaré, no Templo, em Caná, no
Calvário junto à Cruz e no acompanhamento aos discípulos – para serem imagem de
Deus, não precisam de ser substancialmente deuses ou deusas, mas devem aceitar
o dom da participação na vida divina e desempenhar a função para que foram
talhados, o homem para a paternidade (física e/ou espiritual) e a mulher para a maternidade (física
e/ou espiritual).
Quanto ao mais crescer, encher e povoar a terra e aperfeiçoar a obra divina
pelo trabalho será tarefa comum ao homem e à mulher (Gn
1,28). São semelhantes
entre si (vd Gn 2,18.23-25).
Na casa de Nazaré, antes da teofania
aquando do Batismo de Jesus no Jordão (cf Mt 3,17; Mc 1,11;
Lc 3,22) ou no Tabor em que
Ele é proclamado Filho dileto de Deus Pai (Mt 17,5; Mc 9,7; Lc
9,35), era José quem
espelhava o lado paterno de Deus e Maria o lado materno de Deus, apesar de José
não ser o pai biológico de Jesus. Ambos, porém, faziam com que o Menino
crescesse em estatura, sabedoria e graça diante de Deus e dos homens (cf
Lc 2,52). Recebera de Maria
a geração (que José assumira como sua em obediência voluntária ao
mandato divino – cf Mt 1,20-25),
o transporte e alento nas entranhas, o aleitamento, a guarda das palavras que
ouvia e dos factos que presenciava. De ambos recebia o alimento, a educação, o
cumprimento das disposições da Torah, a aprendizagem do trabalho e, em suma, a
guarda e proteção ou os cuidados maternos e paternos. Um dos títulos de José é
o de Pai nutrício do Menino Jesus.
O próprio Cristo, quando se lamentou
sobre Jerusalém, evoca e assume a atitude maternal de Deus:
“Jerusalém, Jerusalém! Tu que matas os profetas e apedrejas
os que te foram enviados! Quantas vezes eu quis reunir teus filhos, como a
galinha reúne os seus pintainhos debaixo das asas, mas tu não quiseste!” (Mt 23,37; Lc 13,34).
A cada passo, o discurso veterotestamentário
coloca em Sião a faculdade maternal da geração, parto, amamentação e reunião
descrita e inspirada pelo esposo divino (cf Br 4,29 – 5,9), sendo ele que abre a matriz para que
a esposa dê à luz (cf Is 66,7-14).
Também os apóstolos, nomeadamente Pedro
e Paulo, se apresentam como dispensadores de recomendações e cuidados
maternais:
Como crianças
recém-nascidas, ansiai pelo leite espiritual, não adulterado, para que ele vos
faça crescer para a salvação, se
é que já saboreastes como o Senhor
é bom (1Pe 2,2-3).
Quanto a mim,
irmãos, não pude falar-vos como a simples homens espirituais, mas como a homens
carnais, como a criancinhas em Cristo. Foi leite que vos dei a beber
e não alimento sólido, que ainda não podíeis suportar. (1Cor 3,12).
É de ler ou reler o belo livro de Leonardo Boff, O Rosto Materno de Deus (1979),
produzido à luz da Bíblia e dos dados da antropologia.
***
Tudo o que se diga sobre Deus é figura,
metáfora, linguagem análoga da nossa própria realidade – retirando o que soe a
imperfeição, e elevando ao máximo as perfeições. Por outro lado, a linguagem
teológica exprime-se dentro da mentalidade cultural de cada povo e tempo, sempre
passível de mudanças conforme os enfoques de valores humanísticos. Foi e é salutar para a sã reflexão
teológica e a prática pastoral ampliar o enfoque no amor maternal de Deus abordado
na Bíblia. Em
Isaías (cf Is 49,15),
já citado, Deus proclama que o seu amor pelo seu povo é maternal e é maior que
o de qualquer mãe por seu bebé. É importante “contemplar” e valorizar a face
feminina de Deus no contexto atual de valorização da mulher, do relevo da sua
dignidade e direitos próprios, da afirmação da sua liderança social; e, ao
mesmo tempo apelar à consciencialização da importância e dignidade da mulher na
sociedade e na Igreja, fazendo-a reclamar e dando-lhe ou reconhecendo-lhe
funções de liderança, bem como incitá-la a resistir à tentação do egoísmo e do
hedonismo comodista, que a precipita em crise e vazio. A pari, é urgente combater toda a espécie de atropelo à dignidade da
mulher, como a escravização, o tráfico de mulheres, a prostituição, a
mercantilização do corpo, mesmo através da publicidade e da pornografia, a
desvalorização da maternidade e da família. Ora, quando o ataque é à dignidade
da pessoa (imagem e semelhança de Deus, expressão do rosto divino) estamos no rumo da blasfémia (ultraje
à obra de Deus)
ou do sacrilégio (desrespeito pelo sagrado – a vida em
dignidade).
Homem e mulher podem perceber por si e em
si mesmos, na intimidade masculina e feminina do corpo e do espírito, que Deus
é a fonte da vida, a origem do bem, a pauta do amor. A sexualidade deve ser
valorizada como algo de sagrado. Ela contém em si a misteriosa
e profunda marca da semelhança com o Criador, semelhança presente também na
geração humana de Jesus. Ele é o rosto divino do humano e rosto humano do
divino. Os seus traços fisionómicos e linhas psíquicas são os do “filho de Maria” (Mt 2,11; 13,55). Foi por ela e nela que Jesus
integrou a nossa humanidade no ser divino (vós sois deuses – Sl
82/81,6;Jo 10,34).
Ele fez-se um de nós, igual a nós em tudo, menos o pecado (Heb
4,15). Maria, a Esposa do
Espírito Santo, ao exercer a sua função maternal em todos os cuidados com o
Filho, recebia do Esposo em cada dia a sabedoria de viver plenamente para o amor.
Ela é a Sede da Sabedoria.
O vulto materno de Deus resplandece hoje através dela, na
multiplicidade das devoções, títulos, festas e romarias, imagens e santuários e
mulheres que se dedicam às causas mais nobres e ao amparo dos mais débeis. Não é deusa nem precisa de o ser. Mas,
depois de Jesus, ninguém foi maior do que a Cheia de Graça, a criatura mais
sublime que saiu das mãos de Deus.
Seria
incompatível com as passagens bíblicas imaginar a vida de Maria num mar de
rosas. Ela conviveu com as incompreensões das pessoas (Lc 4,28). Passou pelas incertezas humanas. Foi de Caná ao
Calvário e do Calvário ao Cenáculo (da espera orante do Espírito Santo). A sua disponibilidade maternal de educadora,
de “perpétuo socorro” e de “auxílio dos cristãos” encoraja-nos nas dificuldades
e tentações. Nós veneramo-La e invocamo-La como mãe peregrina nos caminhos de
Deus e dos homens, discípula, modelo e irmã nossa, próxima de Deus e da nossa
realidade. Como arquétipo e mãe da Igreja, Ela a inspira na sua função de mãe e
mestra, guarda e guia!
Sem comentários:
Enviar um comentário