quarta-feira, 27 de maio de 2015

Os 10% e dois terços de Costa

Depois do estudo macroeconómico que os economistas convocados para o efeito pelo PS apresentaram e que o secretário-geral, embora não o considere a “Bíblia”, entende encorpar, em sua maioria, no programa eleitoral do PS, a apresentar publicamente a 6 de junho, apareceu já o projeto de programa. Este esboço programático, que mereceu a aprovação unânime no órgão partidário que o apreciou, apresenta um conjunto 21 opções governativas distribuídas por cinco áreas temáticas. Algumas são objeto de crítica acerba de militantes que, por motivos de agenda pessoal, não estiveram presentes, mas que, segundo dizem, teriam votado contra.
Dispensando-me de produzir um juízo global sobre o documento, até porque o que vai servir de discussão política será o programa eleitoral a apresentar no princípio de junho, quero destacar as questões atintes à Segurança Social e às obras públicas.
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Também a mim me suscitam fortes dúvidas as opções que se relacionam com a alegada e estafada (in)sustentabilidade da Segurança Social. É óbvio que a Segurança Social tem que estar em risco, mercê da negligência e das opções políticas oscilantes. Assim, deixar que prescrevam regularmente dívidas de trabalhadores e/ou empresários à Segurança Social por falta de cobrança coerciva, que sejam utlizados fundos (regulares e especiais) do Instituto de Segurança Social para compra de dívida pública, que se distribuam sem fiscalização suficientemente eficaz verbas de rendimento social de inserção ou de subsídios de desemprego, que o Estado venha capturar os fundos de pensões de instituições privadas com o compromisso de assunção do pagamento de pensões futuras, ou que ocorra a retenção indevida de verbas devidas à Segurança Social nos casos em que o Estado funciona como entidade patronal para com trabalhadores do regime geral – tudo isto e o mais que se desconhece constitui fator de empobrecimento do mecanismo de capitalização da Segurança Social.
Por outro lado, ter o Governo optado por, a partir de uma determinada data, fechar a porta de inscrição dos funcionários públicos na CGA (Caixa Geral de Aposentações), devendo os mesmos ser inscritos do regime geral de segurança social, implica que o Estado deixe de contar exclusivamente com as contribuições dos atuais subscritores da CGA, mas abra cada vez mais os cofres do Orçamento do Estado para o pagamento das pensões de aposentação dos atuais e antigos servidores do Estado. Aqui não se pode colocar honestamente o problema da (in)sustentabilidade, a não ser na ótica de políticos hábeis na confusão de narizes temáticos.
De modo semelhante se deve concluir quanto à ADSE. O Governo deixou de obrigar à permanência neste subsistema de saúde por parte dos atuais funcionários públicos, por considerar que o subsistema funciona como um seguro de saúde. Sendo assim, os atuais subscritores podem sair e optar por um seguro de saúde, por sua conta e risco. A isto acresce o facto de, há uns anos a esta parte, a maior parte dos novos trabalhadores da administração pública deixar de estar inscrita na ADSE por via da sua inserção no regime geral de segurança social. Ora, a maior parte dos atuais subscritores de longo tempo de contribuição não está em condições de abandonar o subsistema e passar para uma seguradora, face à faixa etária a que pertencem. Por seu turno, os mais novos são tentados a sair da ADSE, pois encontram seguradoras que os acolhem com uma contrapartida contributiva mais em conta. Ora, o Estado, como pessoa de bem, não podia baralhar assim os seus servidores. Depois, é de perguntar como se atrevem a garantir que a ADSE subsiste unicamente com a comparticipação dos seus subscritores, quando muitos dos atuais a abandonam e os novos são cada vez menos.
Já em 2002-2004, quando se procedeu à alteração de cálculo das pensões de aposentação, eu achava preferível aumentar a contribuição dos subscritores da CGA. O aumento das contribuições fez-se, mas o somatório da pensão vem sendo drasticamente alterado para menos.
Não vejo como a redução da TSU, seja do lado do trabalhador seja do lado do patrão, seja dos dois lados não possa ajudar a pôr em causa a sustentabilidade da Segurança Social. Já o assaz propalado plafonamento das contribuições a que venha a corresponder um similar plafonamento das pensões não adianta nem atrasa em nada a questão da sustentabilidade da Segurança Social. Porém, António Costa insiste na redução da TSU da parte dos trabalhadores e propõe a retirada de 10% do fundo de estabilização da Segurança Social para os programas de reabilitação urbana e, simultaneamente, garante não pôr em causa a sustentabilidade da Segurança Social, porque se diversificam as suas fontes de financiamento. Todavia, não explica quais serão essas fontes alternativas de financiamento. É certo que o aumento do emprego, e também o resultante da execução de programas de reabilitação urbana, aumenta as contribuições para a Segurança Social – bem como é certo que, se o trabalhador dispuser de mais dinheiro (por via da redução da TSU), o consumo aumentará e, por consequência, a receita fiscal indireta – mas apenas se forem anuladas todas as situações de negligência e de más opções políticas acima elencadas.
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Entretanto, a intenção do PS de estabelecer a exigência legal de os programas plurianuais de investimento em obras públicas dependerem da aprovação parlamentar, por maioria qualificada de 2/3, parece resultar de uma preocupação genuinamente democrática. Com efeito, apesar de a Assembleia da República (e, por consequência, o governo que dela emana) ser eleita para um mandato de quatro anos, sucede que um governo, ainda que não disponha de maioria absoluta, possa assumir, em nome do Estado, compromissos de longo prazo que se alarguem para além do limite temporal da legislatura em que ao Governo é dado governar, condicionando a liberdade de ação dos governos subsequentes. Daí surge a consequência de que não só os governos subsequentes se veem obrigados a respeitar compromissos financeiros e outros assumidos por governos anteriores, como tais compromissos mobilizam recursos de que o governo em funções não pode dispor para cabal execução dos programas próprios.
Todavia, optar pela ideia do PS de simplesmente fazer depender a execução de um programa plurianual de obra pública da aprovação de maioria qualificada de dois terços dos deputados da Assembleia da República não resolve, em meu entender, a questão. A definição das Grandes Opções do Plano e a Lei do Orçamento do Estado, embora sejam concebidas para a vigência de um ano económico, comportam opções plurianuais. Contudo, ninguém até ao momento equacionou a hipótese de exigir uma maioria qualificada de dois terços dos deputados para a aprovação daqueles diplomas, bastando já as dificuldades que emergem em caso de governo minoritário. E são estes diplomas e outros que abrangem matérias conexas com eles que habitualmente são objeto da disciplina partidária, cuja não observância implica penalização para os deputados desalinhados do respetivo grupo parlamentar.
Não faz, pois, sentido exigir aquela maioria para obras públicas e não para a restante matéria orçamental de implicação plurianual. Ademais, faria depender a política de investimento público – crucial na perspetiva explícita do PS para o impulso à economia – das boas graças do principal partido da oposição ou, como opina José Vítor Malheiros (vd Público, de hoje, 26 de maio), estaremos perante “a maioria qualificada e o risco do centrão eterno”. Eu penso que, a ser assim, corremos o risco de não haver obras públicas em tempo útil. Veja-se o que passa com as leis eleitorais ou a que determina a limitação de mandatos para presidentes de órgãos executivos.  
É certo que, conforme desenvolve o colunista acima referenciado, um governo pode ver-se obrigado a cumprir o programa do governo anterior e impedido de cumprir o seu, frustrando as legítimas aspirações do povo soberano e baralhando a lógica da escolha democrática. Porém, não se coloca, a meu ver, um problema de “abuso de confiança” ou de “abuso de poder”, já que, se cada governo é eleito para governar apenas quatro anos e não mais, também os eleitores, aquando da votação, sabem quais as obras que estão em projeto ou em curso, podendo fazer a sua justa avaliação. Depois, queiramos ou não, há por regra uma certa solidariedade sucessiva na governação, que, a não ser em período revolucionário, ninguém põe em causa. Ou seja, todos os governos assumem na sua gestão compromissos de implicação plurianual que obrigam os governos seguintes. Mas este jogo tem usualmente vencedores alternados, que tacitamente aceitam entre si estas vicissitudes da democracia, que beneficia umas vezes uns e outras vezes outros. E isto não ocorre apenas nos investimentos em obras públicas. A produção legislativa é habitualmente plurianual, melhor sem limite temporal, de acordo com o velho princípio, leges a se sunt perpetuae.
O colunista do Público assinala com razão, a diferença existente entre uma lei e um contrato: “é fácil mudar a lei, mas é quase impossível alterar o contrato que ela permitiu”. Se “a lei protege o contrato”, ela não se protege “a si própria”. Em regra, “mesmo que seja alterada a lei ao abrigo da qual um contrato foi celebrado, este permanece válido na generalidade dos casos”. É óbvio que a proteção da lei aos contratos (pactos, acordos e tratados – pacta sunt servanda) visa proteger a confiança – e sem esta a vida em sociedade seria problemática – mas também origina quadros de proteção jurídica que abrigam certos atos iníquos que escapam, durante longos períodos de tempo, ao escrutínio de uma ação política atenta. E a confiança não pode obter-se a qualquer preço.
O mesmo acontece com os tratados da União Europeia, subscritos por “governos em nome dos Estados membros da UE sem discussão interna e sem um processo democrático prévio, mas que aprisionam no seu espartilho jurídico as vontades dos povos desses países, de facto pouco ou nada soberanos”. Penso que mesmo aqui, embora se tenha cometido o erro de não submeter a referendo as grandes opções europeias, não há uma responsabilidade exclusiva do Governo. Que está a fazer o Presidente, que ratifica os tratados? Porque não suscitam os deputados o conveniente debate parlamentar prévio?
Quanto à alegada proteção privilegiada da lei aos contratos e não a si própria, há que perguntar porque é que a lei não prevê a denúncia sem penalização dos contratos logo que se detete grave prejuízo para alguma das partes, mormente quando o bem comum fica gravemente lesado. A contrario, pergunte-se qual a razão por que o Estado remete para as Calendas gregas os contratos sociais e/ou de administração com os seus servidores e os cidadãos em geral. Não estaremos antes perante um fenómeno de hipocrisia política ou perante o grave cenário do estado fraco com os poderosos e forte com os fracos?
Por isso, não percebo a preocupação do PS, como não percebo, a não ser à luz das questões acima levantadas, o Governo quando aborda publicamente a problemática das “parcerias público-privadas celebradas em nome do Estado português (tanto por governos do PS como do PSD), e cuja vigência se estende por vezes por períodos de 30 e 40 anos, com rendimentos garantidos à custa do erário público e sem riscos para as empresas amigas que deles beneficiaram”. Também o caso dos contratos swap, “com os mesmos resultados e uma proteção jurídica semelhante” é escandaloso, já que vai surgindo pela mão de quadros técnicos que estavam na oposição e só gritaram “Fogo!” quando chegaram ao Governo. Depois, falamos da promiscuidade… E porque não se questiona o calculismo, a insuficiência de caráter e de patriotismo? Ademais, se é legítima a pretensão do PS na exigência de maioria absoluta para as grandes opções, porque não a estende a outras medidas, por exemplo, às atinentes à Justiça, às privatizações, à Educação? Todavia, eu penso não se dever alargar o âmbito das matérias que obriguem a maioria qualificada de dois terços, desde que superior à maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções, para lá das leis de revisão constitucional (bem como para a confirmação de leis vetadas que versem algumas matérias – art.º 136.º/3 e art.º 279.º/4) e do estabelecido no art.º 168.º/6 da CRP:
A lei respeitante à entidade de regulação da comunicação social; as normas que disciplinam a renovação sucessiva de mandatos dos titulares de cargos políticos executivos; a lei que regula o exercício do direito de voto dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro, devendo ter em conta a existência de laços de efetiva ligação à comunidade nacional; as leis atinentes à composição da Assembleia da República e as que definem os círculos eleitorais e o número de deputados por círculo; a lei que regule a eleição dos órgãos autárquicos, os requisitos da sua constituição, funcionamento e destituição; as restrições ao exercício de direitos por militares e agentes militarizados dos quadros permanentes em serviço efetivo, bem como por agentes dos serviços e forças de segurança; e as disposições dos estatutos político-administrativos das regiões autónomas que enunciem as matérias que integram o respetivo poder legislativo.
De resto, como opina Malheiros, obrigar demasiadas decisões a maiorias qualificadas terá como consequência a paralisia de governo ou a criação do “centrão eterno”, em que todas as decisões seriam tomadas e negociadas e objeto de contrapartidas mútuas entre os maiores partidos, colocando-os nas mãos um do outro. Mesmo a maioria qualificada resultante da maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções, requerida para as leis orgânicas nos termos do art.º 168.º/5 da CRP, também traz as suas dificuldades. Porém, o que tem de ser tem muita força. E há matérias bem importantes que bem exigem a presença dos deputados.

Como muito bem refere Malheiros, “a política precisa de consensos, mas precisa igualmente de confronto, de contraditório, de debate, de discussão, de alternativas, de escolhas. A democracia é o regime da escolha livre entre diferentes alternativas e, se não for isso, não será nada. A escolha de um governo ou de um partido deve ser a escolha de algo, em detrimento de outra coisa. Obrigar um partido a diluir a sua identidade, as suas propostas, em nome do consenso ou da maioria qualificada não é, por princípio, a melhor opção, porque reduz de facto o leque de escolhas e, sendo assim, empobrece a democracia”. Ao invés, “as outras propostas do PS neste mesmo domínio (transparência, discussão pública, recurso a organizações científicas) parecem muito mais eficazes (e importantes do ponto de vista simbólico, digo eu), do ponto de vista do aprofundamento da democracia, do que esta maioria qualificada”. 

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