Depois
do estudo macroeconómico que os economistas convocados para o efeito pelo PS
apresentaram e que o secretário-geral, embora não o considere a “Bíblia”,
entende encorpar, em sua maioria, no programa eleitoral do PS, a apresentar
publicamente a 6 de junho, apareceu já o projeto de programa. Este esboço
programático, que mereceu a aprovação unânime no órgão partidário que o
apreciou, apresenta um conjunto 21 opções governativas distribuídas por cinco
áreas temáticas. Algumas são objeto de crítica acerba de militantes que, por
motivos de agenda pessoal, não estiveram presentes, mas que, segundo dizem,
teriam votado contra.
Dispensando-me
de produzir um juízo global sobre o documento, até porque o que vai servir de
discussão política será o programa eleitoral a apresentar no princípio de
junho, quero destacar as questões atintes à Segurança Social e às obras
públicas.
***
Também
a mim me suscitam fortes dúvidas as opções que se relacionam com a alegada e estafada
(in)sustentabilidade da Segurança Social. É óbvio que a Segurança Social tem
que estar em risco, mercê da negligência e das opções políticas oscilantes.
Assim, deixar que prescrevam regularmente dívidas de trabalhadores e/ou
empresários à Segurança Social por falta de cobrança coerciva, que sejam
utlizados fundos (regulares e especiais) do Instituto de Segurança
Social para compra de dívida pública, que se distribuam sem fiscalização
suficientemente eficaz verbas de rendimento social de inserção ou de subsídios
de desemprego, que o Estado venha capturar os fundos de pensões de instituições
privadas com o compromisso de assunção do pagamento de pensões futuras, ou que
ocorra a retenção indevida de verbas devidas à Segurança Social nos casos em
que o Estado funciona como entidade patronal para com trabalhadores do regime
geral – tudo isto e o mais que se desconhece constitui fator de empobrecimento
do mecanismo de capitalização da Segurança Social.
Por
outro lado, ter o Governo optado por, a partir de uma determinada data, fechar
a porta de inscrição dos funcionários públicos na CGA (Caixa
Geral de Aposentações),
devendo os mesmos ser inscritos do regime geral de segurança social, implica
que o Estado deixe de contar exclusivamente com as contribuições dos atuais
subscritores da CGA, mas abra cada vez mais os cofres do Orçamento do Estado
para o pagamento das pensões de aposentação dos atuais e antigos servidores do
Estado. Aqui não se pode colocar honestamente o problema da (in)sustentabilidade,
a não ser na ótica de políticos hábeis na confusão de narizes temáticos.
De
modo semelhante se deve concluir quanto à ADSE. O Governo deixou de obrigar à
permanência neste subsistema de saúde por parte dos atuais funcionários
públicos, por considerar que o subsistema funciona como um seguro de saúde.
Sendo assim, os atuais subscritores podem sair e optar por um seguro de saúde,
por sua conta e risco. A isto acresce o facto de, há uns anos a esta parte, a
maior parte dos novos trabalhadores da administração pública deixar de estar
inscrita na ADSE por via da sua inserção no regime geral de segurança social.
Ora, a maior parte dos atuais subscritores de longo tempo de contribuição não
está em condições de abandonar o subsistema e passar para uma seguradora, face
à faixa etária a que pertencem. Por seu turno, os mais novos são tentados a
sair da ADSE, pois encontram seguradoras que os acolhem com uma contrapartida
contributiva mais em conta. Ora, o Estado, como pessoa de bem, não podia
baralhar assim os seus servidores. Depois, é de perguntar como se atrevem a
garantir que a ADSE subsiste unicamente com a comparticipação dos seus
subscritores, quando muitos dos atuais a abandonam e os novos são cada vez
menos.
Já
em 2002-2004, quando se procedeu à alteração de cálculo das pensões de
aposentação, eu achava preferível aumentar a contribuição dos subscritores da
CGA. O aumento das contribuições fez-se, mas o somatório da pensão vem sendo
drasticamente alterado para menos.
Não
vejo como a redução da TSU, seja do lado do trabalhador seja do lado do patrão,
seja dos dois lados não possa ajudar a pôr em causa a sustentabilidade da
Segurança Social. Já o assaz propalado plafonamento das contribuições a que
venha a corresponder um similar plafonamento das pensões não adianta nem atrasa
em nada a questão da sustentabilidade da Segurança Social. Porém, António Costa
insiste na redução da TSU da parte dos trabalhadores e propõe a retirada de 10%
do fundo de estabilização da Segurança Social para os programas de reabilitação
urbana e, simultaneamente, garante não pôr em causa a sustentabilidade da
Segurança Social, porque se diversificam as suas fontes de financiamento.
Todavia, não explica quais serão essas fontes alternativas de financiamento. É
certo que o aumento do emprego, e também o resultante da execução de programas
de reabilitação urbana, aumenta as contribuições para a Segurança Social – bem
como é certo que, se o trabalhador dispuser de mais dinheiro (por
via da redução da TSU),
o consumo aumentará e, por consequência, a receita fiscal indireta – mas apenas
se forem anuladas todas as situações de negligência e de más opções políticas
acima elencadas.
***
Entretanto,
a intenção do PS de estabelecer a exigência legal de os programas plurianuais
de investimento em obras públicas dependerem da aprovação parlamentar, por
maioria qualificada de 2/3, parece resultar de uma preocupação genuinamente
democrática. Com efeito, apesar de a Assembleia da República (e,
por consequência, o governo que dela emana)
ser eleita para um mandato de quatro anos, sucede que um governo, ainda que não
disponha de maioria absoluta, possa assumir, em nome do Estado, compromissos de
longo prazo que se alarguem para além do limite temporal da legislatura em que ao
Governo é dado governar, condicionando a liberdade de ação dos governos
subsequentes. Daí surge a consequência de que não só os governos subsequentes
se veem obrigados a respeitar compromissos financeiros e outros assumidos por
governos anteriores, como tais compromissos mobilizam recursos de que o governo
em funções não pode dispor para cabal execução dos programas próprios.
Todavia,
optar pela ideia do PS de simplesmente fazer depender a execução de um programa
plurianual de obra pública da aprovação de maioria qualificada de dois terços
dos deputados da Assembleia da República não resolve, em meu entender, a
questão. A definição das Grandes Opções do Plano e a Lei do Orçamento do
Estado, embora sejam concebidas para a vigência de um ano económico, comportam
opções plurianuais. Contudo, ninguém até ao momento equacionou a hipótese de
exigir uma maioria qualificada de dois terços dos deputados para a aprovação
daqueles diplomas, bastando já as dificuldades que emergem em caso de governo
minoritário. E são estes diplomas e outros que abrangem matérias conexas com
eles que habitualmente são objeto da disciplina partidária, cuja não
observância implica penalização para os deputados desalinhados do respetivo
grupo parlamentar.
Não
faz, pois, sentido exigir aquela maioria para obras públicas e não para a restante
matéria orçamental de implicação plurianual. Ademais, faria depender a política
de investimento público – crucial na perspetiva explícita do PS para o impulso
à economia – das boas graças do principal partido da oposição ou, como opina
José Vítor Malheiros (vd Público,
de hoje, 26 de maio),
estaremos perante “a maioria qualificada e o risco do centrão eterno”. Eu penso
que, a ser assim, corremos o risco de não haver obras públicas em tempo útil.
Veja-se o que passa com as leis eleitorais ou a que determina a limitação de
mandatos para presidentes de órgãos executivos.
É
certo que, conforme desenvolve o colunista acima referenciado, um governo pode
ver-se obrigado a cumprir o programa do governo anterior e impedido de cumprir
o seu, frustrando as legítimas aspirações do povo soberano e baralhando a
lógica da escolha democrática. Porém, não se coloca, a meu ver, um problema de
“abuso de confiança” ou de “abuso de poder”, já que, se cada governo é eleito
para governar apenas quatro anos e não mais, também os eleitores, aquando da
votação, sabem quais as obras que estão em projeto ou em curso, podendo fazer a
sua justa avaliação. Depois, queiramos ou não, há por regra uma certa solidariedade
sucessiva na governação, que, a não ser em período revolucionário, ninguém põe
em causa. Ou seja, todos os governos assumem na sua gestão compromissos de
implicação plurianual que obrigam os governos seguintes. Mas este jogo tem usualmente
vencedores alternados, que tacitamente aceitam entre si estas vicissitudes da
democracia, que beneficia umas vezes uns e outras vezes outros. E isto não
ocorre apenas nos investimentos em obras públicas. A produção legislativa é
habitualmente plurianual, melhor sem limite temporal, de acordo com o velho
princípio, leges a se sunt perpetuae.
O
colunista do Público assinala com razão,
a diferença existente entre uma lei e um contrato: “é fácil mudar a lei, mas é
quase impossível alterar o contrato que ela permitiu”. Se “a lei protege o
contrato”, ela não se protege “a si própria”. Em regra, “mesmo que seja
alterada a lei ao abrigo da qual um contrato foi celebrado, este permanece
válido na generalidade dos casos”. É óbvio que a proteção da lei aos contratos
(pactos,
acordos e tratados – pacta sunt servanda) visa proteger a confiança – e
sem esta a vida em sociedade seria problemática – mas também origina quadros de
proteção jurídica que abrigam certos atos iníquos que escapam, durante longos
períodos de tempo, ao escrutínio de uma ação política atenta. E a confiança não
pode obter-se a qualquer preço.
O
mesmo acontece com os tratados da União Europeia, subscritos por “governos em
nome dos Estados membros da UE sem discussão interna e sem um processo
democrático prévio, mas que aprisionam no seu espartilho jurídico as vontades
dos povos desses países, de facto pouco ou nada soberanos”. Penso que mesmo
aqui, embora se tenha cometido o erro de não submeter a referendo as grandes
opções europeias, não há uma responsabilidade exclusiva do Governo. Que está a
fazer o Presidente, que ratifica os tratados? Porque não suscitam os deputados
o conveniente debate parlamentar prévio?
Quanto
à alegada proteção privilegiada da lei aos contratos e não a si própria, há que
perguntar porque é que a lei não prevê a denúncia sem penalização dos contratos
logo que se detete grave prejuízo para alguma das partes, mormente quando o bem
comum fica gravemente lesado. A contrario,
pergunte-se qual a razão por que o Estado remete para as Calendas gregas os
contratos sociais e/ou de administração com os seus servidores e os cidadãos em
geral. Não estaremos antes perante um fenómeno de hipocrisia política ou
perante o grave cenário do estado fraco com os poderosos e forte com os fracos?
Por
isso, não percebo a preocupação do PS, como não percebo, a não ser à luz das
questões acima levantadas, o Governo quando aborda publicamente a problemática das
“parcerias público-privadas celebradas em nome do Estado português (tanto
por governos do PS como do PSD),
e cuja vigência se estende por vezes por períodos de 30 e 40 anos, com
rendimentos garantidos à custa do erário público e sem riscos para as empresas
amigas que deles beneficiaram”. Também o caso dos contratos swap, “com os mesmos resultados e uma
proteção jurídica semelhante” é escandaloso, já que vai surgindo pela mão de
quadros técnicos que estavam na oposição e só gritaram “Fogo!” quando chegaram
ao Governo. Depois, falamos da promiscuidade… E porque não se questiona o
calculismo, a insuficiência de caráter e de patriotismo? Ademais, se é legítima
a pretensão do PS na exigência de maioria absoluta para as grandes opções,
porque não a estende a outras medidas, por exemplo, às atinentes à Justiça, às
privatizações, à Educação? Todavia, eu penso não se dever alargar o âmbito das
matérias que obriguem a maioria qualificada de dois terços, desde que superior
à maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções, para lá das leis de
revisão constitucional (bem como para a confirmação de leis
vetadas que versem algumas matérias – art.º 136.º/3 e art.º 279.º/4) e do estabelecido no art.º
168.º/6 da CRP:
A
lei respeitante à entidade de regulação da comunicação social; as normas que
disciplinam a renovação sucessiva de mandatos dos titulares de cargos políticos
executivos; a lei que regula o exercício do direito de voto dos cidadãos
portugueses residentes no estrangeiro, devendo ter em conta a existência de
laços de efetiva ligação à comunidade nacional; as leis atinentes à composição
da Assembleia da República e as que definem os círculos eleitorais e o número
de deputados por círculo; a lei que regule a eleição dos órgãos autárquicos, os
requisitos da sua constituição, funcionamento e destituição; as restrições ao
exercício de direitos por militares e agentes militarizados dos quadros
permanentes em serviço efetivo, bem como por agentes dos serviços e forças de
segurança; e as disposições dos estatutos político-administrativos das regiões
autónomas que enunciem as matérias que integram o respetivo poder legislativo.
De
resto, como opina Malheiros, obrigar demasiadas decisões a maiorias qualificadas
terá como consequência a paralisia de governo ou a criação do “centrão eterno”,
em que todas as decisões seriam tomadas e negociadas e objeto de contrapartidas
mútuas entre os maiores partidos, colocando-os nas mãos um do outro. Mesmo a
maioria qualificada resultante da maioria absoluta dos deputados em efetividade
de funções, requerida para as leis orgânicas nos termos do art.º 168.º/5 da
CRP, também traz as suas dificuldades. Porém, o que tem de ser tem muita força.
E há matérias bem importantes que bem exigem a presença dos deputados.
Como
muito bem refere Malheiros, “a política precisa de consensos, mas precisa
igualmente de confronto, de contraditório, de debate, de discussão, de
alternativas, de escolhas. A democracia é o regime da escolha livre entre
diferentes alternativas e, se não for isso, não será nada. A escolha de um
governo ou de um partido deve ser a escolha de algo, em detrimento de outra
coisa. Obrigar um partido a diluir a sua identidade, as suas propostas, em nome
do consenso ou da maioria qualificada não é, por princípio, a melhor opção,
porque reduz de facto o leque de escolhas e, sendo assim, empobrece a
democracia”. Ao invés, “as outras propostas do PS neste mesmo domínio (transparência,
discussão pública, recurso a organizações científicas) parecem muito mais eficazes (e
importantes do ponto de vista simbólico, digo eu), do ponto de vista do aprofundamento da democracia,
do que esta maioria qualificada”.
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