quarta-feira, 6 de maio de 2015

A propósito da pena de morte

A 20 de março passado, o Papa Francisco endereçou uma carta ao Presidente da Comissão Internacional contra a Pena de Morte em que saúda os membros da comissão, o grupo de países que a apoiam e quantos colaboram com ela.
É pertinente esta postura Pontifícia até porque até há poucos anos a doutrina da Igreja Católica não era clara neste aspeto, sem olvidar que, apesar dos progressos civilizacionais, muitos países quer de cariz totalitário quer de cariz formalmente democrático a decretam e a executam.
Mesmo em Portugal, que é considerado pioneiro no rumo da abolição da pena capital (aboliu-a para os crimes civis e para os crimes políticos) na reta final do século XIX, só a aboliu para os crimes essencialmente militares com a Constituição de 1976 e com o código de justiça militar subsequentemente promulgado. 
No contexto dos esforços necessários à abolição universal desta forma de castigar os crimes maiores, o Papa empenha-se pessoalmente e interpreta o sentir de todos os homens de boa vontade, que se comprometem com “um mundo livre da pena de morte” e que oferecem a sua “contribuição para o estabelecimento de uma moratória universal das execuções em todo o mundo, com o objetivo da abolição da pena capital”.
Afirma ter partilhado algumas ideias sobre este tema na sua carta, de 30 de maio de 2014, à
Associação Internacional de Direito Penal e à Associação Latino-Americana de Direito Penal e Criminologia, assim como refletiu sobre elas no seu discurso, de 23 de outubro do mesmo ano, às cinco grandes associações mundiais dedicadas ao estudo do direito penal, da criminologia, da vitimologia e das questões penitenciárias.
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Porém, antes de prosseguir com uma súmula da significativa carta de Francisco, convém recordar alguns dos argumentos pró e contra a pena de morte.
A discussão acerca da instituição e/ou manutenção ou não da pena capital é fonte de polémicas, umas de matriz tradicional e outras de reação contra os factos mais recentes que ensombram o mundo atual. Há argumentos que a justificam e argumentos que a condenam. Quem emite opinião sobre o tema diz apoiar-se em sólidos fundamentos de ordem antropológica e evidencia a discussão sobre as questões éticas que norteiam as ações das comunidades humanas – o que gera um complexo de conclusões pouco consensuais. Todavia, embora a larga maioria dos que exprimem livremente o seu pensamento pareça apontar para a condenação do instituto da pena capital, está em crescendo o número dos que a justificam e até a alçam como solução. Por isso, são de louvar os esforços e os contributos daqueles e daquelas que lutam para fazer brilhar as virtualidades do mundo verdadeiramente livre.
Para os defensores da instituição da pena de morte conta a ideia da irrecuperabilidade de alguns indivíduos, os quais representam um risco contínuo e constante para a sociedade. Tal seria o caso de pessoas que, por cometerem crimes bárbaros, de que muitas vezes não aparentam arrependimento, causam alarme e comoção populares. Com efeito muitos dos criminosos que retornam à sociedade voltam a praticar atos delituosos contra as pessoas e contra a sociedade. Aí, a pena de morte seria o único meio de evitar novos delitos por parte de um criminoso de alta periculosidade, pois aquele que cometeu um delito específico jamais o replicará.
Embora esta configure uma forma de “parar de uma vez por todas” com os atos desses criminosos, nada obsta que que surjam os de outros.
Considera-se a configuração atual de combate ao crime como uma guerra entre a sociedade e os delinquentes, em que os bandidos teriam como armas as ações dolosas e a sociedade responderia com a pena capital, decretada através do sistema judiciário, contra os delinquentes para punir os seus atos dolosos e coibir futuros crimes pelo lado da exemplaridade e dissuasão.
A quem argumenta que a pena de morte configuraria uma injustiça no caso de julgamentos errados, podendo acarretar a eliminação de inocentes, respondem que não. E alegam que, no caso de qualquer dúvida não sanada num julgamento, o tribunal não pode aplicar pena alguma, uma vez que sem prova não há crime, valendo os princípios: in dubio pro reo (na dúvida, a favor do réu); e factum nos praesumitur, sed probatur (não se presume o facto; ele tem de ser provado).
E, no caso de um raro erro efetivo por parte do sistema judiciário, permanece o princípio, abusus non tollit usum (o abuso não tira o uso). De contrário, implicaria que, se tudo o que envolve risco de erro é injusto e imoral, a maior parte das criações da sociedade seriam de rejeitar, pois, por exemplo, a faca ou a máquina, com que se pode matar ou morrer de acidente, teriam de ser eliminadas, apesar da sua indiscutível utilidade.
Quem se posiciona contra a pena de morte argumenta de muitos modos. Um dos argumentos é de ordem religiosa, moral e espiritual. Segundo a ótica do cristianismo e da maioria das religiões, está de pé o preceito fundamental: Não matarás (Ex 20,13; Dt 5,17). Ora, o preceito é enunciado contra a prática do crime como contra sua punição.
É óbvio que a legítima defesa, mesmo que leve à morte do agressor, não deixa de ser um recurso ao serviço da própria vida ou daqueles de quem temos a guarda (vd Catecismo da Igreja Católica – CIC, 2263-2265), como não se pode atribuir a responsabilidade da morte em cenário de guerra aos que a perpetram, mas àqueles que declaram a guerra e mobilizam os combatentes.
E não se pode confundir a morte em combate ou em legítima defesa com a decretada por um tribunal premeditada e decorrente do julgamento sobre processo organizado (aqui é que reside a pena de morte e não o mero facto da morte). Nem vale a pena argumentar com as mortes previstas na Bíblia, dado o estádio civilizacional do povo bíblico em que, no contexto dos povos já se tinha evoluído para a pena de Talião, olho por olho, dente por dente (dantes, matava-se como punição para qualquer crime grave, mesmo que não tivesse conseguido a eliminação da vida).
Em princípio, por determinação divina sobre a vida humana, é somente Deus quem determina quem e quando deve morrer ou viver. Ademais, uma pessoa, enquanto vive, tem a oportunidade de se arrepender e mudar de atitude e caráter, inclusive uma pessoa dita “irrecuperável”. Quer dizer que a sociedade democrática pune o crime, mas a punição há de ter em vista a recuperação e a reinserção na sociedade. Se o ato perigoso resulta de transtorno permanente de um indivíduo que o leve à reiteração do ato que represente perigo iminente para as pessoas e para a sociedade, esta deverá encontrar meios de o tratar e de se proteger dele, sem o eliminar.
Por outro lado, a pena capital constitui uma “forma mascarada” de vingança da sociedade ou dos lesados contra o criminoso, um ato repudioso para penalizar outro ato reprovável. E a morte do delinquente não traz o alívio nem o conforto da dor de familiares e pessoas próximas, ou à vítima de assassinato, pedofilia, abusos, sequestros e outros crimes hediondos. Pelo contrário, gerar mais dor para pessoas próximas do delinquente, além de fazer perdurar o sentimento de dor por um ente querido morto ou o trauma da vítima que sofreu e sobreviveu a um ato hediondo.
Vem depois um argumento de ordem antropológica e social, pois o ser humano enquanto ser pensante e ser de sentimentos, sujeito de direitos e deveres, “ego” sociável, mutável e cultural, não pode ser tratado como um número estatístico no atinente à vida. Não se podem promover mortes em detrimento de outras mortes ou danos graves visando à estabilidade ou a soberania de um Estado de Direito.
Depois, além da violência, vêm outras anomalias sociais a causar inúmeras mortes: a falta de políticas de proteção e segurança físicas e sociais; a fome; o desemprego; a solidão; o desinvestimento na educação; a falta de acesso aos cuidados de saúde; a exploração pelo trabalho e pelo comércio do corpo.  Assim, a violência e outros fatores psicossociais também ocorrem por culpa do Estado. Então, a aplicar-se a pena de morte a um criminoso, pelo mesmo critério sociopolítico que a justificaria, teria também ela de aplicar-se aos representantes dos poderes públicos, que também deixam de promover políticas e ações que garantam o direito à vida, segundo a Convenção Internacional de Direitos Humanos.
Geralmente, nos países que ainda têm a pena capital como resultante de sentença para crimes hediondos ou mesmo crimes comuns, a imposição da pena é feita na maioria deles por virtude da vigência de regimes totalitários e/ou fundamentalistas religiosos ou de democracias incipientes. E, apesar da redução da criminalidade em alguns países democráticos, a pena capital não evita cenários de crimes hediondos, alguns deles a fazer inúmeras vítimas.
Há muitas execuções sumárias por parte de ditadores ou de grupos religiosos que visam manter-se no poder, executando possíveis dissidentes políticos e rebeldes, sob a taxação de um qualquer artigo da Constituição do país sobre o indivíduo, como o da prática de adultério, por exemplo, no caso de países onde a religião dita os  princípios constitucionais, para que seja legitimada a pena capital. Por seu turno, nos países ditos democráticos, que a adotam a sentença, observa-se uma sequência histórica de equívocos judiciais, disparidades e segregações com grupos de indivíduos que estão no corredor da morte, além de uma inobservância de diversos aspetos que deveriam ser acatados para se aplicar, segundo a lei daquelas sociedades, a pena de morte.
A pena de morte acaba por se tornar uma barreira para o bem-estar social.
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O Papa afirma a defesa da vida desde a conceção até à morte natural e a dignidade do homem enquanto imagem de Deus (cf Gn 1,26). Para ele, a vida humana é sagrada, pois desde a conceção é fruto da ação criadora de Deus (cf. CIC, 2258) e a partir daí o homem, única criatura que Deus amou por si mesma, é objeto dum amor pessoal da parte de Deus (cf GS, 24). Assim, a vida humana pertence unicamente a Deus. Mesmo o homicida não perde a sua dignidade pessoal e Deus faz-se o seu garante. Ele não quis castigar Caim com o homicídio, porque deseja o arrependimento do pecador e não a sua morte (cf Evangelium Vitae /EV, 9).
Ora, podem os Estados matar por ação quando decretam a morte, obrigam os povos à guerra ou realizam execuções extrajudiciais ou sumárias; e por omissão, quando não garantem aos povos o acesso aos meios essenciais à vida. Tal como o preceito ‘não matar’ põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim nos leva a dizer “não a uma economia da exclusão e da desigualdade social” (cf Evangelii Gaudium/EG, 53).
É certo que há ocasiões em que é preciso afastar proporcionalmente uma agressão em ato para evitar que o injusto agressor cause dano, podendo a necessidade de o neutralizar exigir a sua eliminação: é o caso da legítima defesa (cf EV, 55; CIC, 2266). Mas os pressupostos da legítima defesa não se aplicam ao meio social, sem risco de errada interpretação, pois, ao aplicar-se a pena de morte, matam-se pessoas não por agressões atuais, mas por danos passados e matam-se pessoas privadas da sua liberdade e cuja capacidade de danificar já foi neutralizada.
Por muito grave que tenha sido o delito do condenado, hoje a pena capital é inadmissível, por ofensa à inviolabilidade da vida e à dignidade da pessoa humana, que contradiz o desígnio de Deus sobre o homem e a sociedade e a sua justiça misericordiosa, e impede que seja conforme com qualquer finalidade justa das penas. Não fazendo justiça às vítimas, fomenta a vingança.
Para o Estado de direito representa uma falência, porque a sua impotência o obriga a matar em nome da justiça. Nunca se alcançará a justiça através da morte de um ser humano. A este respeito, Dostoevskij assegura que matar quem matou é castigo maior que o crime cometido e que o assassínio por sentença é mais assustador que o assassínio que o criminoso comete.
Depois, Francisco apresenta razões que se prendem com a seletividade defeituosa do sistema penal e com a possibilidade de erro judiciário, com o uso e abuso da pena capital por regimes totalitários eivados de ideologias anti-humanas, nomeadamente com motivação religiosa ou antirreligiosa. Daí decorre, segundo Francisco, o martírio por que passam hoje muitos cristãos.
Mais: com a aplicação da pena capital, nega-se ao condenado a possibilidade de reparação ou correção do dano; a possibilidade ou a utilidade da confissão, com a qual o homem expressa a conversão interior; e a possibilidade da contrição, pórtico do arrependimento e da expiação, rumo ao encontro com o amor misericordioso e reparador de Deus.
Esta pena – contrária ao sentido da humanitas e à misericórdia divina, modelos para a justiça dos homens – leva a tratamento cruel, desumano e degradante, como a angústia prévia à execução e a terrível espera entre a emissão da sentença e a aplicação da pena, uma “tortura” que, por motivos processuais, pode durar muitos anos, e que na antecâmara da morte muitas vezes leva à doença e à loucura – sublinha o Pontífice.
Ao longo da história, foram ironicamente defendidos diversos mecanismos de morte para limitar o sofrimento dos condenados. Mas não há forma humana de matar outra pessoa. Hoje, existem meios para reprimir eficazmente o crime sem privar definitivamente quem o cometeu da possibilidade de redimir-se (cf EV, 27) e desenvolveu-se a sensibilidade moral ao valor da vida humana, surgindo a crescente repugnância da pena capital e o apoio da opinião pública às disposições que têm por finalidade a sua abolição ou a suspensão da sua aplicação.
Finalmente, a pena capital traz consigo a negação do amor evangélico aos inimigos (cf Mt 5,44). Portanto, conclui o Papa, todos os cristãos e homens de boa vontade devem lutar não só pela abolição da pena de morte – legal ou ilegal e em todas as formas – mas também pela melhoria das condições carcerárias no respeito da dignidade humana das pessoas privadas da liberdade.
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São, pois, de intensificar as campanhas a favor da vida e alargar o seu âmbito, de modo que a vida seja um valor assumido por todos e por cada um. 

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