A 20 de março passado, o Papa Francisco endereçou uma carta ao
Presidente da Comissão
Internacional contra a Pena de Morte em que saúda os membros da comissão, o
grupo de países que a apoiam e quantos colaboram com ela.
É pertinente esta postura Pontifícia até porque até há poucos anos a
doutrina da Igreja Católica não era clara neste aspeto, sem olvidar que, apesar
dos progressos civilizacionais, muitos países quer de cariz totalitário quer de
cariz formalmente democrático a decretam e a executam.
Mesmo em Portugal, que é considerado pioneiro no rumo da abolição da
pena capital (aboliu-a para os crimes civis e para os crimes políticos) na reta final do século XIX, só a aboliu
para os crimes essencialmente militares com a Constituição de 1976 e com o
código de justiça militar subsequentemente promulgado.
No contexto
dos esforços necessários à abolição universal desta forma de castigar os crimes
maiores, o Papa empenha-se pessoalmente e interpreta o sentir de todos os
homens de boa vontade, que se comprometem com “um mundo livre da pena de morte”
e que oferecem a sua “contribuição para o estabelecimento de uma moratória
universal das execuções em todo o mundo, com o objetivo da abolição da pena
capital”.
Afirma ter
partilhado algumas ideias sobre este tema na sua carta, de 30 de maio de 2014,
à
Associação
Internacional de Direito Penal e à Associação Latino-Americana de Direito Penal
e Criminologia, assim como refletiu sobre elas no seu discurso, de 23 de
outubro do mesmo ano, às cinco
grandes associações mundiais dedicadas ao estudo do direito penal, da
criminologia, da vitimologia e das questões penitenciárias.
***
Porém, antes
de prosseguir com uma súmula da significativa carta de Francisco, convém
recordar alguns dos argumentos pró e contra a pena de morte.
A discussão
acerca da instituição e/ou manutenção ou não da pena capital é fonte de
polémicas, umas de matriz tradicional e outras de reação contra os factos mais
recentes que ensombram o mundo atual. Há argumentos que a justificam e argumentos
que a condenam. Quem emite opinião sobre o tema diz apoiar-se em sólidos
fundamentos de ordem antropológica e evidencia a discussão sobre as questões
éticas que norteiam as ações das comunidades humanas – o que gera um complexo
de conclusões pouco consensuais. Todavia, embora a larga maioria dos que
exprimem livremente o seu pensamento pareça apontar para a condenação do
instituto da pena capital, está em crescendo o número dos que a justificam e
até a alçam como solução. Por isso, são de louvar os esforços e os contributos
daqueles e daquelas que lutam para fazer brilhar as virtualidades do mundo
verdadeiramente livre.
Para os
defensores da instituição da pena de morte conta a ideia da irrecuperabilidade
de alguns indivíduos, os quais representam um risco contínuo e constante
para a sociedade. Tal seria o caso de pessoas que, por cometerem crimes bárbaros,
de que muitas vezes não aparentam arrependimento, causam alarme e comoção
populares. Com efeito muitos dos criminosos que retornam à sociedade voltam a
praticar atos delituosos contra as pessoas e contra a sociedade. Aí, a pena de
morte seria o único meio de evitar novos delitos por parte de um criminoso de
alta periculosidade, pois aquele que cometeu um delito específico jamais o
replicará.
Embora esta
configure uma forma de “parar de uma vez por todas” com os atos desses
criminosos, nada obsta que que surjam os de outros.
Considera-se
a configuração atual de combate ao crime como uma guerra entre a sociedade e os
delinquentes, em que os bandidos teriam como armas as ações dolosas e a
sociedade responderia com a pena capital, decretada através do sistema
judiciário, contra os delinquentes para punir os seus atos dolosos e coibir
futuros crimes pelo lado da exemplaridade e dissuasão.
A quem
argumenta que a pena de morte configuraria uma injustiça no caso de julgamentos
errados, podendo acarretar a eliminação de inocentes, respondem que não. E
alegam que, no caso
de qualquer dúvida não sanada num julgamento, o tribunal não pode aplicar pena
alguma, uma vez que sem prova não há crime, valendo os princípios: in dubio pro reo (na dúvida, a favor do réu); e factum nos praesumitur, sed probatur (não se presume o facto; ele tem de
ser provado).
E, no caso de um raro erro efetivo por
parte do sistema judiciário, permanece o princípio, abusus non tollit usum (o abuso não tira o
uso). De contrário,
implicaria que, se tudo o que envolve risco de erro é injusto e imoral, a maior
parte das criações da sociedade seriam de rejeitar, pois, por exemplo, a faca
ou a máquina, com que se pode matar ou morrer de acidente, teriam de ser
eliminadas, apesar da sua indiscutível utilidade.
Quem se posiciona contra a pena de morte argumenta de muitos
modos. Um dos argumentos é de ordem
religiosa, moral e espiritual. Segundo a ótica do cristianismo e
da maioria das religiões, está de pé o preceito fundamental: Não matarás (Ex
20,13; Dt 5,17). Ora, o preceito é enunciado contra a prática
do crime como contra sua punição.
É
óbvio que a legítima defesa, mesmo que leve à morte do agressor, não deixa de
ser um recurso ao serviço da própria vida ou daqueles de quem temos a guarda (vd Catecismo da Igreja Católica – CIC, 2263-2265),
como não se pode atribuir a responsabilidade da morte em cenário de guerra aos
que a perpetram, mas àqueles que declaram a guerra e mobilizam os combatentes.
E
não se pode confundir a morte em combate ou em legítima defesa com a decretada
por um tribunal premeditada e decorrente do julgamento sobre processo
organizado (aqui
é que reside a pena de morte e não o mero facto da morte).
Nem vale a pena argumentar com as mortes previstas na Bíblia, dado o estádio
civilizacional do povo bíblico em que, no contexto dos povos já se tinha
evoluído para a pena de Talião, olho por
olho, dente por dente (dantes,
matava-se como punição para qualquer crime grave, mesmo que não tivesse
conseguido a eliminação da vida).
Em
princípio, por
determinação divina sobre a vida humana, é somente Deus quem determina quem e
quando deve morrer ou viver. Ademais, uma pessoa, enquanto vive, tem a
oportunidade de se arrepender e mudar de atitude e caráter, inclusive uma
pessoa dita “irrecuperável”. Quer dizer que a sociedade democrática pune o
crime, mas a punição há de ter em vista a recuperação e a reinserção na
sociedade. Se o ato perigoso resulta de transtorno permanente de um indivíduo
que o leve à reiteração do ato que represente perigo iminente para as pessoas e
para a sociedade, esta deverá encontrar meios de o tratar e de se proteger
dele, sem o eliminar.
Por
outro lado, a pena
capital constitui uma “forma mascarada” de vingança da
sociedade ou dos lesados contra o criminoso, um ato repudioso para penalizar
outro ato reprovável. E a morte do delinquente não traz o alívio nem o conforto
da dor de familiares e pessoas próximas, ou à vítima de assassinato, pedofilia,
abusos, sequestros e outros crimes hediondos. Pelo contrário, gerar mais dor
para pessoas próximas do delinquente, além de fazer perdurar o sentimento de
dor por um ente querido morto ou o trauma da vítima que sofreu e sobreviveu a
um ato hediondo.
Vem depois um
argumento de ordem antropológica e social, pois o ser humano enquanto ser
pensante e ser de sentimentos, sujeito de direitos e deveres, “ego” sociável,
mutável e cultural, não pode ser tratado como um número estatístico no atinente
à vida. Não se podem promover mortes em detrimento de outras mortes ou danos
graves visando à estabilidade ou a soberania de um Estado de Direito.
Depois, além
da violência, vêm outras anomalias sociais a causar inúmeras mortes: a falta de
políticas de proteção e segurança físicas e sociais; a fome; o desemprego; a
solidão; o desinvestimento na educação; a falta de acesso aos cuidados de
saúde; a exploração pelo trabalho e pelo comércio do corpo. Assim, a violência e outros fatores
psicossociais também ocorrem por culpa do Estado. Então, a aplicar-se a pena de
morte a um criminoso, pelo mesmo critério sociopolítico que a justificaria,
teria também ela de aplicar-se aos representantes dos poderes públicos, que
também deixam de promover políticas e ações que garantam o direito à vida,
segundo a Convenção Internacional de Direitos Humanos.
Geralmente, nos
países que ainda têm a pena capital como resultante de sentença para crimes
hediondos ou mesmo crimes comuns, a imposição da pena é feita na maioria deles
por virtude da vigência de regimes totalitários e/ou fundamentalistas
religiosos ou de democracias incipientes. E, apesar da redução da criminalidade
em alguns países democráticos, a pena capital não evita cenários de crimes
hediondos, alguns deles a fazer inúmeras vítimas.
Há muitas
execuções sumárias por parte de ditadores ou de grupos religiosos que visam
manter-se no poder, executando possíveis dissidentes políticos e rebeldes, sob
a taxação de um qualquer artigo da Constituição do país sobre o indivíduo, como
o da prática de adultério, por exemplo, no caso de países onde a religião dita
os princípios constitucionais,
para que seja legitimada a pena capital. Por seu turno, nos países ditos
democráticos, que a adotam a sentença, observa-se uma sequência histórica de
equívocos judiciais, disparidades e segregações com grupos de indivíduos que
estão no corredor da morte, além de uma inobservância de diversos aspetos que
deveriam ser acatados para se aplicar, segundo a lei daquelas sociedades, a
pena de morte.
A pena de
morte acaba por se tornar uma barreira para o bem-estar social.
***
O Papa afirma
a defesa da vida desde a conceção até à morte natural e a dignidade do homem enquanto
imagem de Deus (cf Gn 1,26). Para ele, a vida humana é sagrada, pois desde a
conceção é fruto da ação criadora de Deus (cf. CIC, 2258) e a partir daí o homem, única criatura que Deus amou por si
mesma, é objeto dum amor pessoal da parte de Deus (cf GS, 24). Assim, a vida humana pertence unicamente a Deus.
Mesmo o homicida não perde a sua dignidade pessoal e Deus faz-se o seu garante.
Ele não quis castigar Caim com o homicídio, porque deseja o arrependimento do
pecador e não a sua morte (cf Evangelium Vitae /EV, 9).
Ora, podem os
Estados matar por ação quando decretam a morte, obrigam os povos à guerra ou realizam
execuções extrajudiciais ou sumárias; e por omissão, quando não garantem aos
povos o acesso aos meios essenciais à vida. Tal como o preceito ‘não matar’ põe
um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim nos leva a dizer
“não a uma economia da exclusão e da desigualdade social” (cf Evangelii Gaudium/EG, 53).
É certo que há
ocasiões em que é preciso afastar proporcionalmente uma agressão em ato para
evitar que o injusto agressor cause dano, podendo a necessidade de o
neutralizar exigir a sua eliminação: é o caso da legítima defesa (cf EV,
55; CIC, 2266). Mas os
pressupostos da legítima defesa não se aplicam ao meio social, sem risco de errada
interpretação, pois, ao aplicar-se a pena de morte, matam-se pessoas não por
agressões atuais, mas por danos passados e matam-se pessoas privadas da sua
liberdade e cuja capacidade de danificar já foi neutralizada.
Por muito
grave que tenha sido o delito do condenado, hoje a pena capital é inadmissível,
por ofensa à inviolabilidade da vida e à dignidade da pessoa humana, que
contradiz o desígnio de Deus sobre o homem e a sociedade e a sua justiça
misericordiosa, e impede que seja conforme com qualquer finalidade justa das
penas. Não fazendo justiça às vítimas, fomenta a vingança.
Para o Estado
de direito representa uma falência, porque a sua impotência o obriga a matar em
nome da justiça. Nunca se alcançará a justiça através da morte de um ser humano.
A este respeito, Dostoevskij assegura que matar quem matou é castigo maior que
o crime cometido e que o assassínio por sentença é mais assustador que o assassínio
que o criminoso comete.
Depois,
Francisco apresenta razões que se prendem com a seletividade defeituosa do
sistema penal e com a possibilidade de erro judiciário, com o uso e abuso da
pena capital por regimes totalitários eivados de ideologias anti-humanas,
nomeadamente com motivação religiosa ou antirreligiosa. Daí decorre, segundo
Francisco, o martírio por que passam hoje muitos cristãos.
Mais: com a
aplicação da pena capital, nega-se ao condenado a possibilidade de reparação ou
correção do dano; a possibilidade ou a utilidade da confissão, com a qual o
homem expressa a conversão interior; e a possibilidade da contrição, pórtico do
arrependimento e da expiação, rumo ao encontro com o amor misericordioso e
reparador de Deus.
Esta pena – contrária
ao sentido da humanitas e à misericórdia divina, modelos para a
justiça dos homens – leva a tratamento cruel, desumano e degradante, como a
angústia prévia à execução e a terrível espera entre a emissão da sentença e a
aplicação da pena, uma “tortura” que, por motivos processuais, pode durar
muitos anos, e que na antecâmara da morte muitas vezes leva à doença e à
loucura – sublinha o Pontífice.
Ao longo da
história, foram ironicamente defendidos diversos mecanismos de morte para limitar
o sofrimento dos condenados. Mas não há forma humana de matar outra pessoa.
Hoje, existem meios para reprimir eficazmente o crime sem privar
definitivamente quem o cometeu da possibilidade de redimir-se (cf EV, 27) e desenvolveu-se a sensibilidade
moral ao valor da vida humana, surgindo a crescente repugnância da pena capital
e o apoio da opinião pública às disposições que têm por finalidade a sua
abolição ou a suspensão da sua aplicação.
Finalmente, a
pena capital traz consigo a negação do amor evangélico aos inimigos (cf Mt 5,44). Portanto, conclui o Papa, todos os
cristãos e homens de boa vontade devem lutar não só pela abolição da pena de
morte – legal ou ilegal e em todas as formas – mas também pela melhoria das
condições carcerárias no respeito da dignidade humana das pessoas privadas da
liberdade.
***
São, pois, de
intensificar as campanhas a favor da vida e alargar o seu âmbito, de modo que a
vida seja um valor assumido por todos e por cada um.
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