sábado, 30 de maio de 2015

Democracia e corrupção – democracia e eficácia

Francis Fukuyama veio a Portugal receber o prémio Global Issues Disntinguished Book de 2015, por ocasião das Conferências do Estoril na semana de 17 a 23 de maio, na sede da FLAD (Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento), que assinalaram os 30 anos da instituição.
O prémio visava distinguir esta insigne personalidade pela publicação do seu mais recente livro, Ordem Política e Decadência Política – Da Revolução Industrial à Globalização da Democracia, das edições D. Quixote, mas o seu autor acabou por ser o convidado inaugural do ciclo das preditas conferências, em que discursou por 10 minutos.
Em entrevista à revista Sábado, de 28 de maio – de que se respigam os aspetos que se reputam mais significativos – revelou Fukuyama que escreveu este livro e um outro, em parte, para reescrever o artigo “O Fim da História”, com base naquilo que hoje sabe sobre a natureza da política. Com efeito, há 26 anos (em 1989), escreveu o referido artigo, que, dado o seu caráter premonitório, lançou o articulista para “o estrelato dos pensadores políticos contemporâneos”. Posteriormente, em 1992, consolidou o seu pensamento com a obra “O Fim da História e o último homem”.
Previa este pensador norte-americano, nascido em Chicago e criado em Nova Iorque, que, com a derrota do comunismo, a democracia liberal se tornaria dominante (como se ela fosse a solução) e acabaria o conflito ideológico que marcou a segunda metade do século passado.
No seu livro de 1992, Francis Fukuyama sugere que, à medida que o século XXI se aproxima, regressemos a uma dupla questão que tem sido levantada pelos grandes filósofos do passado: a história da humanidade segue uma direção? E, se a resposta for afirmativa, qual será o seu fim? Depois, será oportuno que nos questionemos em que ponto nos encontramos em relação ao “fim da história”.
Em sua análise, o pensador apresenta elementos que sugerem a presença de duas poderosas forças na história humana: “a lógica da ciência moderna”; e “a luta pelo reconhecimento”. A primeira, na esteira do iluminismo, impele o homem a preencher o horizonte cada vez mais amplo de desejos através do processo económico racional; a outra, na linha de Hegel, é o próprio “motor da história”. Estas duas vertentes conduziriam, ao longo dos tempos, ao eventual colapso de ditaduras de direita e de esquerda, impelindo as sociedades, mesmo as culturalmente distintas, para a democracia capitalista liberal, vista como o estádio final do processo histórico. A questão principal surge então: “poderá a liberdade e a igualdade, tanto política como económica – o estado de coisas no presumível ‘fim da história’ –, criar uma sociedade estável em que o homem se sinta finalmente satisfeito”? Ou, pelo contrário, será que a condição espiritual deste “último homem”, privado de saídas para materializar a sua ânsia de poder, inevitavelmente o conduzirá, a ele e ao mundo, ao regresso ao caos e ao inútil derramamento de sangue?
A resposta do pensador é, simultaneamente, uma forte lição de filosofia da história e uma investigação que nos desafia a refletir sobre a questão suprema do sentido e do destino da sociedade e do homem.
Ora, tendo como marco histórico o quadriénio de 1989-1992, verifica-se que desde então muito mudou: houve a primeira guerra do Iraque, os atentados de 11 de setembro de 2001, a invasão do Afeganistão e o segundo conflito do Iraque (poderia ter acrescentado a desintegração de várias unidades políticas na Europa e em outras regiões do Globo). Porém, o articulista e escritor confessa que nunca pensou ser possível a “decadência política” e que a História recuasse, por não ter avaliado “corretamente a fragilidade das instituições” nem a dificuldade de criar um “Estado moderno”, um “Estado democrático não corrupto.
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Sobre corrupção e democracia, admite que a corrupção é certamente a maior ameaça à democracia. No entanto, pensa que a corrupção resulta do “fraco desempenho dos Estados” e, em especial, na sua “incapacidade de proporcionar serviços básicos à população”, como educação, saúde. A este respeito dá o exemplo do Quénia: é uma democracia, mas não dispõe de infraestruturas. Torna-se quase impossível ir para o aeroporto, passa-se 4 horas por dia dentro do automóvel por não haver “estradas”.
Vai mesmo a ponto de contrariar a opinião de que o facto de um ex-primeiro-ministro estar detido por suspeitas de corrupção não significa, por si só, que a democracia esteja em perigo ou que não esteja a funcionar. Apesar de, em certa medida, ser “natural” a corrupção – já que “por natureza favorecemos os amigos e a família e não é natural termos um Estado que tenta ser imparcial e nos faça tratar estranhos como tratamos um familiar” – a verdade é que “um sinal de que a democracia funciona não é não ter corrupção”, mas “é ter um sistema judicial independente capaz de apanhar as pessoas e responsabilizá-las pelo seu comportamento”.
Concorda-se com Fukuyama no sentido de que a corrupção é uma natural tentação. Não obstante, não é aceitável que se não exija naturalmente do Estado que oriente os cidadãos e, por maioria de razão, os seus altos dirigentes e servidores no sentido da isenção e da imparcialidade. Caso contrário, estaremos a negar as suas principais funções: normativa, reguladora e sancionadora. Por outro lado, um Estado que se quer provedor dos cidadãos, maxime dos mais desfavorecidos, não pode deixar de combater por todos os meios a corrupção, inimiga da equidade e lesiva do bem comum (saindo prejudicados sobretudo os mais pobres).
Embora o insigne colunista e pensador ache natural que escolhamos aqueles em quem confiamos para trabalhar e negociar, todavia, o sistema do Estado moderno “requer um afastamento dessas ligações pessoais. Tanto assim é que, em Portugal, os deputados e os intervenientes em debates públicos devem fazer a denominada declaração de interesses.
E, para garantia de imparcialidade e isenção, nenhum titular de órgão ou agente da Administração Pública pode intervir em procedimento administrativo ou em ato ou contrato de direito público ou privado da Administração Pública nos seguintes casos:
a) Quando nele tenha interesse, por si, como representante ou como gestor de negócios de outra pessoa;
b) Quando, por si ou como representantes ou gestores de negócios de outra pessoa, nele tenham interesse o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, algum parente ou afim em linha reta ou até ao 2.º grau da linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem viva em economia comum ou com a qual tenha uma relação de adoção, tutela ou apadrinhamento civil;
c) Quando, por si ou como representante ou gestor de negócios de outra pessoa, tenha interesse em questão semelhante à que deva ser decidida, ou quando tal situação se verifique em relação a pessoa abrangida pela alínea anterior;
d) Quanto tenha intervindo no procedimento como perito ou mandatário ou haja dado parecer sobre questão a resolver;
e) Quando tenha intervindo no procedimento como perito ou mandatário o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, parente ou afim em linha reta ou até ao segundo grau da linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem viva em economia comum ou com a qual tenha uma relação de adoção, tutela ou apadrinhamento civil;
f) Quando se trate de recurso de decisão proferida por si, ou com a sua intervenção, ou proferida por qualquer das pessoas referidas na alínea b) ou com intervenção destas. (cf CPA, art.º 69.º).

E, em nome da imparcialidade, da isenção e da retidão de conduta, o titular de órgão ou agente deve pedir dispensa de intervir no procedimento quando ocorra circunstância pela qual possa razoavelmente suspeitar-se da sua isenção ou da retidão da sua conduta e, designadamente:
a) Quando, por si ou como representante ou gestor de negócios de outra pessoa, nele tenha interesse parente ou afim em linha reta ou até ao 3.º grau da linha colateral, ou tutelado ou curatelado dele, do seu cônjuge ou de pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges;
b) Quando o titular do órgão ou agente, o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, ou algum parente ou afim na linha reta, for credor ou devedor de pessoa singular ou coletiva com interesse direto no procedimento, ato ou contrato;
c) Quando tenha havido lugar ao recebimento de dádivas, antes ou depois de instaurado o procedimento, pelo titular do órgão ou agente, seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, parente ou afim na linha reta;
d) Se houver inimizade grave ou grande intimidade entre o titular do órgão ou agente, ou o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, e a pessoa com interesse direto no procedimento, ato ou contrato;
e) Quando penda em juízo ação em que sejam parte o titular do órgão ou agente, o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, parente em linha reta ou pessoa com quem viva em economia comum, de um lado, e, do outro, o interessado, o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, parente em linha reta ou pessoa com quem viva em economia comum. (cf CPA, art.º 73.º).
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Insiste em que não pode haver alternativa à democracia. E face à objeção de que falharam os esforços de exportação da democracia para países de África e do Médio Oriente, esclarece que não sabe se falharam e que o problema não está na democracia, mas na ausência de um Estado moderno. E dá o exemplo do Zimbabwe, que não é uma democracia e é um Estado mal gerido e corrupto. Já, por exemplo, a China e Singapura têm um “Estado de qualidade”, pois conseguem “proporcionar serviços básicos”. Assim, o problema não está “entre democracias e governos autoritários, mas entre governos eficazes e governos ineficazes e corruptos”.
Sobre a putativa falha da exportação da democracia para os países onde ocorreram as designadas como “as primaveras árabes”, assegura que “esperar que aparecessem como que por magia num ano” as democracias “reflete uma falta de compreensão sobre como é difícil construir instituições democráticas”. Não havia nenhuma democracia em países árabes. E “a democracia requer instituições, partidos políticos, primado do direito, imprensa livre” – explica.
Entretanto, adverte que a construção e a consolidação da democracia levam tempo. Decorreram 130 anos entre a revolução francesa e a instauração do sufrágio universal na europa.
Pensa que erradamente Osama bin Laden e outros islamitas radicais interpretavam como uma forma de cruzada moderna a tentativa de exportar modelos democráticos para o mundo árabe. Mas isso não corresponde à verdade. As revoluções árabes foram de génese local e não importadas dos EUA. As populações estavam a odiar as ditaduras, mas o Ocidente apoiava o lado autoritário. As populações queriam a democracia, mas quase em lado nenhum a conseguiram (Fukuyama abre exceção para a Tunísia!). Pairou no mundo a ideia de que o Ocidente quis exportar a democracia para o Iraque. Mas essa foi a desculpa forjada quando se descobriu que não havia armas de destruição em massa, razão invocada para a invasão multinacional. Fukuyama não o refere, mas o grande motivo era o petróleo, ao passo que as armas foram o pretexto e a democracia foi o tardio rosto simpático da expedição militar, que induziu atuações nitidamente bárbaras.
Critica o Ocidente por sobrestimar o terrorismo como ameaça, quando este, na perspetiva do pensador, não coloca uma ameaça existencial permanente às sociedades ocidentais. Entende que “as ameaças de longo prazo são as tradicionais: estados poderosos como a China e a Rússia, que são centralizados e coerentes”.
Quanto ao Estado Islâmico (EI), aduz que só existe porque os EUA instauraram os governos sírio e iraquiano – governos que não têm legitimidade. Nega que esteja seriamente a expandir-se, argumentando que “um Estado é uma organização política capaz de exercer a soberania num determinado território” e o EI só consegue fazer isso numa pequena parte de terra de ninguém do Iraque e da Síria.
Finalmente, Fukuyama faz-nos voltar ao princípio: “As pessoas querem que as crianças aprendam a ler e a escrever; e, como o Estado não dá educação, voltam-se para as “madrassas” (?!) e caem na ideologia desses islamitas” fundamentalistas. E este Estado, com furor bélico, mas não centralizado e coerente, não consegue dar resposta consistente aos anseios das populações. Em todo o caso, “o aumento do islamismo no mundo reflete o fracasso dos governos em fornecer educação básica ao povo”.
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Possa o contributo de Fukuyama abrir os olhos aos governantes e ao povo do Ocidente no sentido de: saber entender os perigos permanentes, existenciais e consistentes das ameaças transitórias, embora atraentes para os aderentes e violentas paras as vítimas; cuidar efetiva e eficazmente da educação, saúde e bem-estar de todos para que não se tenha a tentação de embarque em aventureirismos coletivos nem se abra o flanco a uma revolta militar como a portuguesa do 28 de maio (de há 89 anos) sob o pretexto de acabar com o caos público e forjar um pretenso bem-estar coletivo; ganhar a paciência da democracia e o gosto de intervir cívica e politicamente; e reforçar o prestígio e a eficácia das instituições democráticas.
O escol político marcou presença a ouvir o orador. Pergunto: Em demanda da consolidação pura e simples da democracia liberal assente num capitalismo sem rosto ou para interiorizar as obrigações fundamentais do Estado e o seu funcionamento?

- cf DL n.º 4/2015, de 7 de janeiro; revista Sábado, de 28 de maio; e entrevista a Francis Fukuyama em: sábado.pt

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