quinta-feira, 21 de maio de 2015

A merecida homenagem que faltava a Dom Manuel Martins

O bispo emérito de Setúbal, D. Manuel da Silva Martins, recebeu, no passado dia 20 de maio, dia da restauração da independência de Timor-Leste, merecida e pública distinção pelo seu empenho nesta magna causa. Com efeito, ao ser condecorado, em Lisboa, com a medalha da “Ordem de Timor-Leste”, atribuída pelo Presidente Taur Matan Ruak, apresentou-se como uma das vozes que defendeu “sempre” os direitos deste país lusófono.
O emérito prelado declarou à Agência Ecclesia que, na cerimónia da entrega da condecoração, realizada na cidade de Lisboa, afirmou ter-se envolvido “na defesa daquele povo com muita paixão”, paixão que se manifestou de múltiplas e variadas formas, “desde cartas, conferências, intervenções na rádio e na TV até numa ida à ONU”.
Segundo o prelado, mesmo no seio da Igreja Católica, as opiniões dividiam-se em relação a Timor-Leste e na Secretaria de Estado do Vaticano havia quem defendesse “a anexação por motivos de convivência pacífica e proteção da Indonésia”, ou melhor, os poucos católicos que vivem naquele grande país, então sob regime ditatorial.
O cardeal Agostino Casaroli (secretário de Estado Vaticano de 1979 até 1990) chegou a escrever a D. Manuel Martins, na altura bispo de Setúbal, para que este evitasse seguir o discurso “do povo que protestava”, uma posição que era replicada pela Nunciatura Apostólica em Lisboa.
Relativamente a este tipo de posições o insigne Bispo compreende que são coisas que acontecem, mas assegura que nunca desanimou, pois, considera que seria “um crime”, como “cidadão, cristão e bispo” não intervir e não sofrer por aquelas pessoas, assegurando que agira assim na convicção de que “a alma da Igreja devia comungar com esta gente que sofria imenso”.
No entanto, o Bispo explicitou que as intervenções que realizou na década de 90, até à proclamação da restauração da independência do país, no dia 20 de maio de 2002, vinham alinhadas com os pronunciamentos do Papa João Paulo II (e neles se baseavam), nomeadamente a respeito dos Balcãs. A este respeito, “o Papa defendia que todos os povos que são nação, que têm uma língua, uma cultura, têm direito a decidir o seu destino, a sua soberania” – afirmou.
Foi a convite de D. Carlos Ximenes Belo, na altura bispo de Díli, que D. Manuel Martins visitaria Timor-Leste. “Já eram independentes e estavam em campanha eleitoral para a formação do primeiro governo, mas tudo aquilo cheirava a fumo” – recordou.
É óbvio que, passados estes anos, o bispo emérito de Setúbal não está arrependido “de ter defendido aquele povo” e mostra-se feliz pela “sensibilidade para os Direitos Humanos”, reconhecendo que a sua luta por esta causa não foi em vão.
Não deixa de falar das “muitas cartas” que enviou a personalidades da Igreja Católica em Portugal e da sociedade civil para solicitar uma intervenção da ONU no território timorense. Reconhece que fez “tudo o que pode como cidadão, cristão e como bispo”. “Realizámos várias campanhas” – especifica – “eu como presidente da Pax Christi (como efeito presidia à secção portuguesa deste organismo internacional) mandei muito pedidos a bispos de todo o mundo para que se juntassem a esta causa e juntos pedirmos à ONU que acabasse com esta injustiça”.
Evocando a memória da alegria que, em tempo, manifestou pela independência de Timor-Leste, “que era bem merecida”, “muito justa”, desejando que se construa um Estado “verdadeiramente democrático”, garantiu estar “convencido de que, depois deste primeiro passo, se vão criar condições para um Estado verdadeiramente democrático, onde os direitos humanos sejam respeitados e defendidos”.
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Na cerimónia da entrega da medalha da “Ordem de Timor-Leste”, pelas mãos da embaixadora de Timor-Leste em Portugal, Maria Natália Carrascalão, realizada no Hotel Marriott, em Lisboa, foram também condecorados o professor Adriano Moreira, Luísa Teotónio Pereira, João Soares, a rádio TSF, o grupo de solidariedade ‘A Paz é Possível em Timor-Leste’ e os jornalistas Adelino Gomes e José Vegar.
Alguns dos galardoados reagiram com surpresa e emoção, como é natural e usual. Foi precisamente “com surpresa e emoção” que o jornalista Adelino Gomes diz acolher o anúncio da condecoração pela República de Timor-Leste com a medalha do país.
Contou que, em 1975, fora enviado pela RTP a Timor para fazer a cobertura da guerra civil. Era a sua primeira vez naquele território. “Ninguém entrava lá já há muito tempo – explica – Portugal era a potência colonial. Era necessário ir ver o que se estava a passar. Informações que chegavam falavam em milhares de mortos e eu ofereci-me na televisão. Trabalhava na RTP na altura – aliás não fui o único – acabei por ser selecionado e fui para lá. Não conhecia Timor e encontrei a guerra civil já na parte final”.
Nas memórias que guarda desse trabalho, ressalta a morte de cinco jornalistas australianos: Umas horas depois de ter saído de Balibó começou a invasão por terra, antes da grande invasão de 7 de dezembro. Isto foi na noite de 15 para 16 de outubro. Começou a invasão por terra, exatamente pela zona de Balibó e foram executados os jornalistas que lá estavam, que eram cinco, também da televisão, de dois canais comerciais da televisão australiana.
Mas Adelino Gomes não poupa no elogio à TSF, ao salientar com gosto a distinção que foi feita à TSF, porque a TSF nasceu em 1987, acontecimento de que, segundo diz, se lembra muito bem. Ao mesmo tempo, destaca o papel central de Manuel Acácio nesse processo, pois, no curso de formação da TSF, ele relevou de forma pioneira a questão de Timor. “Portanto, a TSF na sua génese, no seu ADN, trazia já Timor como trabalho de casa, no processo de formação dos seus futuros grandes jornalistas e, por isso, eu sinto-me muito honrado de poder ser agraciado num dia em que a TSF vai ser também agraciada” assegura.
Recordo-me de que, em tempos, Ana Gomes, que foi embaixadora de Portugal na Indonésia (1999-2003) e lutadora diplomática pela causa de Timor (contribuindo para a mudança de ótica política do Ministro Ali Alatas, Ministro dos Negócios Estrangeiros indonésio), apesar de ser algo crítica do desempenho de Durão Barroso como Primeiro-Ministro e Presidente da Comissão Europeia, reconheceu que, antes de ele entrar no Ministério dos Negócios Estrangeiros como Secretário de Estado dos Assuntos Externos e Cooperação (1987-1992) e, depois, como Ministro dos Negócios Estrangeiros (1992-1995), a causa de Timor era praticamente ignorada na diplomacia.
Por seu turno e ao invés de Adelino Gomes, o bispo emérito de Setúbal, despido de falsa humildade, mas também com natural modéstia, reage de forma cândida e realista, sentindo-se honrado com a distinção: “Podia dizer que não mereço ou que me custa aceitar, mas não digo isso. Eu mereço, desde o início da causa de Timor que me senti muito ligado a esta causa. Um povo tem o direito a escolher o seu futuro, o modo como quer viver” – confessou.
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Não é esta a primeira vez que Dom Manuel Martins recebe uma tão merecida e alta distinção, mas esta é, do meu ponto de vista, a que faltava e talvez a mais justa e adequada.
A 10 de dezembro de 2013, durante a sessão comemorativa do 65.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, no Salão Nobre da OA, a Comissão dos Direitos do Homem da Ordem dos Advogados (OA) distinguiu o Bispo Emérito de Setúbal com o Prémio Ângelo d’ Almeida Ribeiro – prémio instituído pela OA para distinguir anualmente as personalidades ou entidades nacionais que mais se tenham destacado na defesa dos direitos dos cidadãos, segundo o que estipula o regulamento do galardão.
Foi também agraciado pelo Presidente da República com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo, durante as comemorações do 10 de junho de 2007, em Setúbal, e com o Galardão dos Direitos Humanos da Assembleia da República, em 10 de dezembro de 2008.
A propósito da homenagem do 10 de junho de 2007, o JN, de 11 daquele mês e ano, retém algumas afirmações e recomendações pertinentes de Dom Manuel Martins:
“Só tenho uma mensagem a dar” – acabou por dizer face à insistência dos jornalistas – “Sejam portugueses de corpo e alma. Não se deixem dobrar”.
Antiga voz crítica dos governos de Cavaco Silva, depois de ser agraciado, voltou a defender os direitos do seu rebanho de então. “O povo de Setúbal é dos mais interventivos do país: uma das marcas da cidadania é não se deixar comer, manipular ou gozar” – esclareceu, manifestando-se preocupado com o desemprego e a crise económica que o distrito enfrenta.
Revelou ainda ter sido “portador de muitas mensagens para que Cavaco Silva se candidatasse à Presidência da República”. Muitos lhe pediram que dissesse ao Chefe de Estado para avançar. E foi isso que fez, segundo contou, pois, apesar de alguns passos menos certos enquanto primeiro-ministro, ele e “o povo veem nele um homem com inteireza de caráter”.
Sobre a condecoração que lhe foi atribuída, o prelado emérito adiantou ter-se questionado se a deveria receber ou não, mas que optara por aceitar a distinção, “pois tal gesto poderá fazer bem” à Igreja que serviu e – penso eu – ainda serve.
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E é este o homem da Igreja, cidadão de corpo inteiro, sem papas na língua, com uma humildade feita do realismo aliada à verdade, que se admira mesmo que hic et nunc dele tenha de se discordar. É de homens como este que a Igreja Católica e a Sociedade precisam. E eles existem, graças a Deus, não podem é ficar no escuro ou nas brumas da memória.

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