quinta-feira, 28 de maio de 2015

Crianças como objeto mercantil

Passa na Internet, pela mão da jornalista da TVI Alexandra Cristina Guerreiro Palma Borges, uma petição pública contra a escravatura do século XXI e a favor da libertação de todas as crianças escravas do lago Volta, no Gana. Os seus destinatários são, em Portugal, a Assembleia da República e o Primeiro-Ministro e, a nível internacional, o Tribunal internacional dos direitos humanos e a UNICEFF.
Com efeito, o que se passa naquela região do mundo é extremamente escandaloso e condenável. Crianças de 3 e 4 anos são vendidas, no Gana, pela insignificante quantia de 30 euros a traficantes pelos próprios pais, que assim renunciam à paternidade. Depois, são revendidas para serem escravizadas na faina da pesca no lago Volta, o maior lago artificial do mundo.
Esta forma de escravidão – o tráfico de crianças – num tempo em que o progresso faz impar de orgulho a gente bem falante dos séculos da pós-modernidade, faz-nos regressar aos tempos de má memória da revelha antiguidade em que uns tinham que ser escravos para que outros pudessem pensar ou ao mundo bíblico veterotestamentário e mesmo ao dos contemporâneos de Cristo, em que as crianças não eram consideradas como seres humanos com personalidade e capacidade e, tal como as mulheres, nem sequer eram contadas (vd Mt 14,21; 15,38).
Depois, num século em que todos enchem a boca e os documentos com a dignidade da pessoa humana e com o respeito pela vida humana condigna (desde a conceção até à morte natural), conquistado que foi o quadro dos direitos humanos (1948) e, em especial, os direitos da criança (1959), com a convenção sobre os direitos da criança (1989), vários grupos humanos recebem as crianças a troco de dinheiro (muito ou pouco: é sempre iníquo). E são os pais que as vendem e sabem que elas vão ser revendidas. Ali, no Gana, é para o trabalho; noutros lugares, são compradas e revendidas para a exploração sexual; noutros ainda é para a morte, para a ablação de órgãos e fabrico de alguns produtos ditos de beleza. Já Bento XVI, mas sobretudo a agora o Papa Francisco insistem nesta cruzada contra o flagelo das novas/velhas formas de escravidão.
É o reino da hipocrisia, é o reino do divórcio entre o que se prega, declara e convenciona e o mercantilismo que lucro impõe ao arrepio da dignidade, do respeito e do cumprimento das leis.
As preditas crianças do Gana trabalham 14 horas ao dia, em sete dias por semana, quer faça chuva quer faça sol e estejam ou não doentes. E estão totalmente desumanizadas: são conhecidas por Kobies e Kofies, conforme o dia da semana em que foram vendidas; desconhecem a sua idade, a sua identidade; muitas acabam afogadas no lago Volta; e algumas são assassinadas pelos próprios pescadores que as atiram vivas aos crocodilos. 
A opinião pública fica estarrecida com o que se tem passado no Mediterrâneo – a caminhada de homens, mulheres e crianças para a exploração da parte de grupos de traficantes ou para a morte no mar, na convicção esperançosa de que viriam a ter o sustento através do trabalho justamente compensado. Não sei, contudo, se a opinião pública – civilizada, democrática, solidária e cristã – está disponível para condenar a velha e nova modalidade de escravização de crianças, tal como a pululante escravização e coisificação de mulheres em várias partes do mundo, ser voz ativa e força eficaz para travar, minorar e anular as situações de escravidão.
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A promotora da petição pública em causa esclarece que “resgatar uma criança destas não resolve o problema porque, no dia seguinte, os pescadores colocam duas novas crianças no seu lugar...e a infância continua a ser roubada a estas crianças, um pouco, todos os dias, perante o olhar passivo de muita gente que prefere não ver”. 
Depois, coloca o dedo na ferida da ineficácia das leis, à semelhança do que se passa em diversos países sobre diversas matérias em confronto com as leis que enquadram a sua regulamentação:
“Apesar de a escravatura e tráfico infantis estarem criminalizados na legislação do país, a verdade é que não há um único traficante ou pescador na cadeia” – sublinha. 
Aquilo que pode contribuir para acabar com esta e outras modalidades de escravatura e comercialização de seres humanos no século XXI é a indignação de cada um e do coletivo e a divulgação, por todos os meios, deste atentado e de outros como este aos direitos humanos. 
É a INDIFERENÇA globalizada que está a matar as crianças do Gana. É urgente ajudá-las. E uma das formas de ajuda é a assinatura da petição promovida pela referida jornalista, que irá chegar às mais altas instâncias nacionais e internacionais. Ao ter conhecimento do que se está a passar, ninguém vai querer tornar-se num cúmplice silencioso de toda esta situação e de situações similares.
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A nível nacional, os destinatários são o Parlamento e o Governo. Além de constituírem peças com voz internacional que influencie o rumo do devir no mundo, são órgãos de soberania que podem e devem estar com atenção à necessidade de melhorar as nossas leis e demais disposições regulamentares atinentes aos direitos humanos e à promoção da dignificação da pessoa humana e, em especial, as crianças. Ademais, devem criar e manter mecanismos de fiscalização suficientemente eficazes para que as leis se cumpram, sobretudo quando estão em causa as questões da dignidade humana e os direitos humanos.
Depois, é necessário recalibrar as medidas. Em Portugal, condena-se e bem, mas pratica-se a exploração do trabalho infantil, sem que as competentes entidades intervenham eficazmente. Mas reina a hipocrisia: confunde-se “exploração do trabalho infantil” com “trabalho da criança ao pé dos pais”, exercitado parcamente segundo as condições de idade, compleição física e psíquica e, sobretudo com a “educação pelo trabalho”. Impede-se a criança ou o adolescente da propedêutica a uma profissão, mas faz-se o concurso do jovem autarca e o “faz de conta” dos meninos empresários e, sobretudo, exploram-se rudemente as crianças em spots publicitários e em telenovelas.
Mais: as crianças não trabalham, mas entregam-se tempo infindo e de forma absorvente a computador, Internet, playstation, etc. Através da música em tom demasiado volumoso – música ambiente ou através dos auscultadores – criaremos gerações com risco mais provável de surdez; e, mantendo as crianças e adolescentes em espaços demasiado fechados, criaremos adultos com o risco mais provável de miopia.
Achamos que as crianças têm de brincar mais, caso contrário não têm infância de jeito e não aprendem a pensar; e inseriu-se como quase essencial uma forte componente lúdica na educação e no ensino, quase a ponto de fazer esquecer que o ensino exige esforço e trabalho. Todavia, não sei se um docente, se enveredar por uma docência a partir da componente lúdica, não ficará torpedeado por alguma franja considerável da opinião pública, designadamente pais e colegas.
Com efeito o reino da hipocrisia torna-se demasiado excludente. O que nós pensamos tem de fazer lei e, se for mau, será sempre desculpável, mas com alguma celeridade proscrevemos o que provém da iniciativa alheia.
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Talvez seja necessário e oportuno voltar à Bíblia para interiorizar a dignidade do ser humano e a justa igualdade básica entre homem mulher – o ser humano como indivíduo e em relação:
Depois, Deus disse: “Façamos o ser humano à nossa imagem, à nossa semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre todos os répteis que rastejam pela terra” (não para que domine sobre o outro homem, digo eu). Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher. Abençoando-os, Deus disse-lhes: “Crescei, multiplicai-vos, enchei e submetei a terra. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se movem na terra”. Deus disse: “Também vos dou todas as ervas com semente que existem à superfície da terra, assim como todas as árvores de fruto com semente, para que vos sirvam de alimento. E a todos os animais da terra, a todas as aves dos céus e a todos os seres vivos que existem e se movem sobre a terra, igualmente dou por alimento toda a erva verde que a terra produzir”. E assim aconteceu. Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa. (Gn 1,26-31).
A alegoria seguinte ensina que, se a mulher tivesse sido formada da cabeça do homem (varão), seria superior a ele; se tivesse sido formada do calcanhar do homem, seria inferior; mas, como saiu do seu lado, da costela, de ao pé do coração, é igual ao homem (varão), é semelhante a ele, da mesma semente e é capaz de colaborar com ele (auxiliar) e unir-se a ele:
O homem designou com nomes todos os animais domésticos, todas as aves dos céus e todos os animais ferozes; contudo, não encontrou auxiliar semelhante a ele. Então, o SENHOR Deus fez cair sobre o homem um sono profundo; e, enquanto ele dormia, tirou-lhe uma das suas costelas, cujo lugar preencheu de carne. Da costela que retirara do homem, o SENHOR Deus fez a mulher e conduziu-a até ao homem. Então, o homem exclamou: “Esta é, realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher, visto ter sido tirada do homem!”. Por esse motivo, o homem deixará o pai e a mãe, para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne. (Gn 2,20-24).
Quanto à criança, ela resulta da união do homem e da mulher – é filho ou filha – tendo, pois, a semelhança com Deus, a semente de Deus, que origina a diversificação na igualdade fraterna:
Adão conheceu Eva (quer dizer: teve relações carnais com ela), sua mulher. Ela concebeu e deu à luz Caim, e disse: “Gerei um homem (um ser à imagem e semelhança de Deus) com o auxílio do SENHOR”. Depois, deu também à luz Abel, irmão de Caim. Abel foi pastor, e Caim, lavrador. (Gn 4,1-2).
Depois, Jesus Cristo, perante a resistência dos próprios discípulos, eleva a criança à capacidade de possuidora do Reino dos Céus:
Apresentaram-lhe, então, umas crianças, para que lhes impusesse as mãos e orasse por elas, mas os discípulos repreenderam-nos. Jesus disse-lhes: “Deixai as crianças e não as impeçais de vir ter comigo, pois delas é o Reino dos Céus” (Mt 19,13-14; Mc 10,13-16; Lc 18,15-16).
Em Marcos vai mais longe ao apontar a pequenez como paradigma de acesso ao Reino: “Em verdade vos digo: quem não receber o Reino de Deus como um pequenino, não entrará nele” (Mc 10,15). Com efeito, é a partir das crianças que Jesus define a grande condição de pertença ao Reino dos Céus (vd Mt 18,1-5; cf Mc 9,33-37; Lc 9,46-48; Jo 13,20):
Os discípulos aproximaram-se de Jesus e perguntaram-lhe: “Quem é o maior no Reino do Céu?”. Ele chamou um menino, colocou-o no meio deles e disse: “Em verdade vos digo: Se não voltardes a ser como as criancinhas, não podereis entrar no Reino do Céu. Quem, pois, se fizer humilde como este menino será o maior no Reino do Céu. Quem receber um menino como este, em meu nome, é a mim que recebe”.
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Talvez, se os intervenientes na causa pública interiorizassem a doutrina, a escravidão acabasse.

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