Passa na Internet, pela mão da jornalista da TVI Alexandra Cristina Guerreiro Palma
Borges, uma petição
pública contra a escravatura do século
XXI e a favor da libertação de todas as crianças escravas do lago Volta, no
Gana. Os seus destinatários são, em Portugal, a Assembleia da República
e o Primeiro-Ministro e, a nível internacional, o Tribunal internacional
dos direitos humanos e a UNICEFF.
Com efeito, o que se passa naquela região do mundo é
extremamente escandaloso e condenável. Crianças de 3 e 4 anos são vendidas, no
Gana, pela insignificante quantia de 30 euros a traficantes pelos próprios pais,
que assim renunciam à paternidade. Depois, são revendidas para serem
escravizadas na faina da pesca no lago Volta, o maior lago artificial do mundo.
Esta forma de escravidão – o tráfico de crianças – num
tempo em que o progresso faz impar de orgulho a gente bem falante dos séculos
da pós-modernidade, faz-nos regressar aos tempos de má memória da revelha
antiguidade em que uns tinham que ser escravos para que outros pudessem pensar
ou ao mundo bíblico veterotestamentário e mesmo ao dos contemporâneos de
Cristo, em que as crianças não eram consideradas como seres humanos com
personalidade e capacidade e, tal como as mulheres, nem sequer eram contadas (vd Mt 14,21; 15,38).
Depois, num século em que todos enchem a boca e os
documentos com a dignidade da pessoa humana e com o respeito pela vida humana
condigna (desde a conceção até à morte natural), conquistado que foi o quadro dos direitos humanos (1948) e, em especial, os direitos da criança (1959), com a convenção sobre os direitos da criança (1989), vários grupos humanos recebem as crianças a troco
de dinheiro (muito ou pouco: é sempre iníquo). E são os pais que as vendem e sabem que elas vão ser revendidas. Ali, no
Gana, é para o trabalho; noutros lugares, são compradas e revendidas para a
exploração sexual; noutros ainda é para a morte, para a ablação de órgãos e
fabrico de alguns produtos ditos de beleza. Já Bento XVI, mas sobretudo a agora
o Papa Francisco insistem nesta cruzada contra o flagelo das novas/velhas
formas de escravidão.
É o reino da hipocrisia, é o reino do divórcio entre o
que se prega, declara e convenciona e o mercantilismo que lucro impõe ao
arrepio da dignidade, do respeito e do cumprimento das leis.
As preditas crianças do Gana trabalham 14 horas ao dia,
em sete dias por semana, quer faça chuva quer faça sol e estejam ou não doentes.
E estão totalmente desumanizadas: são conhecidas por Kobies e Kofies, conforme
o dia da semana em que foram vendidas; desconhecem a sua idade, a sua
identidade; muitas acabam afogadas no lago Volta; e algumas são assassinadas
pelos próprios pescadores que as atiram vivas aos crocodilos.
A opinião pública fica estarrecida com o que se tem
passado no Mediterrâneo – a caminhada de homens, mulheres e crianças para a
exploração da parte de grupos de traficantes ou para a morte no mar, na
convicção esperançosa de que viriam a ter o sustento através do trabalho
justamente compensado. Não sei, contudo, se a opinião pública – civilizada,
democrática, solidária e cristã – está disponível para condenar a velha e nova
modalidade de escravização de crianças, tal como a pululante escravização e
coisificação de mulheres em várias partes do mundo, ser voz ativa e força
eficaz para travar, minorar e anular as situações de escravidão.
***
A promotora da petição pública em causa esclarece que
“resgatar uma criança destas não resolve o problema porque, no dia seguinte, os
pescadores colocam duas novas crianças no seu lugar...e a infância continua a
ser roubada a estas crianças, um pouco, todos os dias, perante o olhar passivo
de muita gente que prefere não ver”.
Depois, coloca o dedo na ferida da ineficácia das
leis, à semelhança do que se passa em diversos países sobre diversas matérias
em confronto com as leis que enquadram a sua regulamentação:
“Apesar de a escravatura e tráfico infantis estarem
criminalizados na legislação do país, a verdade é que não há um único
traficante ou pescador na cadeia” – sublinha.
Aquilo que pode contribuir para acabar com esta e
outras modalidades de escravatura e comercialização de seres humanos no século
XXI é a indignação de cada um e do coletivo e a divulgação, por todos os meios,
deste atentado e de outros como este aos direitos humanos.
É a INDIFERENÇA globalizada que está a matar as
crianças do Gana. É urgente ajudá-las. E uma das formas de ajuda é a assinatura
da petição promovida pela referida jornalista, que irá chegar às mais altas
instâncias nacionais e internacionais. Ao ter conhecimento do que se está
a passar, ninguém vai querer tornar-se num cúmplice silencioso de toda esta
situação e de situações similares.
***
A nível nacional, os destinatários são o Parlamento e
o Governo. Além de constituírem peças com voz internacional que influencie o
rumo do devir no mundo, são órgãos de soberania que podem e devem estar com
atenção à necessidade de melhorar as nossas leis e demais disposições
regulamentares atinentes aos direitos humanos e à promoção da dignificação da
pessoa humana e, em especial, as crianças. Ademais, devem criar e manter
mecanismos de fiscalização suficientemente eficazes para que as leis se
cumpram, sobretudo quando estão em causa as questões da dignidade humana e os
direitos humanos.
Depois, é necessário recalibrar as medidas. Em
Portugal, condena-se e bem, mas pratica-se a exploração do trabalho infantil,
sem que as competentes entidades intervenham eficazmente. Mas reina a
hipocrisia: confunde-se “exploração do trabalho infantil” com “trabalho da
criança ao pé dos pais”, exercitado parcamente segundo as condições de idade,
compleição física e psíquica e, sobretudo com a “educação pelo trabalho”. Impede-se
a criança ou o adolescente da propedêutica a uma profissão, mas faz-se o
concurso do jovem autarca e o “faz de conta” dos meninos empresários e,
sobretudo, exploram-se rudemente as crianças em spots publicitários e em telenovelas.
Mais: as crianças não trabalham, mas entregam-se tempo
infindo e de forma absorvente a computador, Internet, playstation, etc. Através
da música em tom demasiado volumoso – música ambiente ou através dos
auscultadores – criaremos gerações com risco mais provável de surdez; e,
mantendo as crianças e adolescentes em espaços demasiado fechados, criaremos
adultos com o risco mais provável de miopia.
Achamos que as crianças têm de brincar mais, caso
contrário não têm infância de jeito e não aprendem a pensar; e inseriu-se como
quase essencial uma forte componente lúdica na educação e no ensino, quase a
ponto de fazer esquecer que o ensino exige esforço e trabalho. Todavia, não sei
se um docente, se enveredar por uma docência a partir da componente lúdica, não
ficará torpedeado por alguma franja considerável da opinião pública,
designadamente pais e colegas.
Com efeito o reino da hipocrisia torna-se demasiado
excludente. O que nós pensamos tem de fazer lei e, se for mau, será sempre
desculpável, mas com alguma celeridade proscrevemos o que provém da iniciativa
alheia.
***
Talvez seja necessário e oportuno voltar à Bíblia para
interiorizar a dignidade do ser humano e a justa igualdade básica entre homem
mulher – o ser humano como indivíduo e em relação:
Depois, Deus disse: “Façamos
o ser humano à nossa imagem, à nossa
semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu,
sobre os animais domésticos e sobre todos os répteis que rastejam pela terra” (não para que domine sobre o outro homem,
digo eu). Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os
criou homem e mulher. Abençoando-os, Deus disse-lhes: “Crescei,
multiplicai-vos, enchei e submetei a terra. Dominai sobre os peixes do mar,
sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se movem na terra”. Deus disse: “Também vos dou todas as ervas
com semente que existem à superfície da terra, assim como todas as árvores de
fruto com semente, para que vos sirvam de alimento. E a todos os animais da terra, a todas
as aves dos céus e a todos os seres vivos que existem e se movem sobre a terra,
igualmente dou por alimento toda a erva verde que a terra produzir”. E assim
aconteceu. Deus, vendo toda a sua
obra, considerou-a muito boa. (Gn 1,26-31).
A alegoria seguinte ensina que, se a mulher tivesse sido
formada da cabeça do homem (varão), seria superior a ele; se tivesse
sido formada do calcanhar do homem, seria inferior; mas, como saiu do seu lado,
da costela, de ao pé do coração, é igual ao homem (varão), é semelhante a ele, da mesma semente e é capaz de
colaborar com ele (auxiliar) e unir-se a ele:
O homem designou com nomes todos os animais
domésticos, todas as aves dos céus e todos os animais ferozes; contudo, não encontrou auxiliar semelhante a ele. Então, o SENHOR Deus
fez cair sobre o homem um sono profundo; e, enquanto ele dormia, tirou-lhe uma
das suas costelas, cujo lugar preencheu de carne. Da costela que retirara
do homem, o SENHOR Deus fez a mulher e
conduziu-a até ao homem. Então, o homem exclamou: “Esta é, realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher, visto ter sido tirada do homem!”. Por esse motivo, o
homem deixará o pai e a mãe, para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne. (Gn 2,20-24).
Quanto à criança, ela
resulta da união do homem e da mulher – é filho ou filha – tendo, pois, a
semelhança com Deus, a semente de Deus, que origina a diversificação na
igualdade fraterna:
Adão conheceu Eva (quer
dizer: teve relações carnais com ela),
sua mulher. Ela concebeu e deu à luz Caim, e disse: “Gerei um homem (um ser à imagem e semelhança de Deus) com
o auxílio do SENHOR”. Depois, deu
também à luz Abel, irmão de Caim. Abel foi pastor, e Caim, lavrador. (Gn
4,1-2).
Depois, Jesus Cristo, perante a resistência dos próprios
discípulos, eleva a criança à capacidade de possuidora do Reino dos Céus:
Apresentaram-lhe, então, umas crianças, para
que lhes impusesse as mãos e orasse por elas, mas os discípulos
repreenderam-nos. Jesus disse-lhes: “Deixai as crianças e não as impeçais de
vir ter comigo, pois delas é o Reino dos Céus” (Mt 19,13-14; Mc 10,13-16; Lc 18,15-16).
Em Marcos vai mais longe ao apontar a pequenez como paradigma
de acesso ao Reino: “Em verdade vos digo: quem não receber o Reino de Deus como
um pequenino, não entrará nele” (Mc 10,15). Com
efeito, é a partir das crianças que Jesus define a grande condição de pertença
ao Reino dos Céus (vd Mt 18,1-5; cf Mc 9,33-37; Lc 9,46-48; Jo 13,20):
Os discípulos aproximaram-se de Jesus e
perguntaram-lhe: “Quem é o maior no Reino do Céu?”. Ele chamou um menino,
colocou-o no meio deles e disse:
“Em verdade vos digo: Se não voltardes a ser como as criancinhas, não podereis
entrar no Reino do Céu. “Quem,
pois, se fizer humilde como este menino será o maior no Reino do Céu. “Quem receber um menino
como este, em meu nome, é a mim que recebe”.
***
Talvez, se os intervenientes na causa pública
interiorizassem a doutrina, a escravidão acabasse.
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