sexta-feira, 1 de maio de 2015

O sentido de um repto insólito: auditar um cenário macroeconómico

Os militantes do PS e os simpatizantes que exprimiram a sua vontade através do voto nas eleições primárias daquele partido não acreditaram, na sua esmagadora maioria, na estratégia do finado líder António José Seguro. Por consequência, escolheram António Costa para a insólita (em Portugal) candidatura ao cargo de Primeiro-Ministro, com base num entendimento alargado dalgumas das disposições estatutárias do partido, em vigor ao tempo, designadamente a alínea h) do art.º 63.º, que definia, de entre as competências da Comissão Política Nacional, “aprovar, sob proposta do Secretariado Nacional, um plano de ação para a Democracia Participativa, o qual será objeto de relatório anual a submeter à apreciação da Comissão Política Nacional”.
Hoje, tal disposição continua a constar tal e qual nos estatutos na mesma alínea h) do n.º 2 do art.º 64.º, mas a matéria relativa às primárias é explicitada no n.º 6 do art.º 59.º como competência da Comissão Nacional, delegável na Comissão Política Nacional.
Entretanto, Costa ganhou as eleições primárias e, mais tarde, por maioria muito avantajada dos militantes foi alçado a Secretário Geral e, finalmente, aclamado em congresso nacional.
Porém, alternando entre meias posições, silêncios e intervenções avulsas, já estava a cansar os expectantes que ansiavam por uma alternativa credível à linha de governação atual. Escudava-se na necessidade de não enunciar medidas de forma precipitada sem ter avaliado o cenário macroeconómico, para não ser acusado de prometer coisas de que fosse obrigado a desistir perante a novidade da situação encontrada no início do novo ciclo governativo. Ficou-se, por isso, na enunciação de aspetos genéricos como: uma nova forma de discutir nas instâncias europeias; inverter os caminhos autoritários; promover o crescimento económico; e fazer crescer o emprego. Não deixou de aqui e ali produzir afirmações controversas, como o discurso perante os investidores chineses, geriu de forma aceitável o caso Sócrates e chamou para lugares de relevo no partido antigos membros da direção segurista.
Depois, agendou para 6 de junho a apresentação do programa eleitoral do PS para as próximas eleições legislativas. E, como ação prévia, confiou a 12 economistas, alguns dos quais independentes, um estudo do cenário macroeconómico que antecipasse o lastro para a enunciação segura de algumas medidas que fossem capazes de inverter a política de austeridade atualmente em marcha, mesmo depois da propalada saída da troika, e a minoração das suas mazelas atuais.
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Em conformidade com a solicitação do líder socialista, o predito grupo de economistas, liderado por Mário Centeno e com o apoio técnico de Cláudia Joaquim e Hugo Mendes, elaborou o seu estudo vertido em documento final a que deu o formato de relatório, sob o título Uma Década para Portugal, que foi apresentado publicamente a 21 de abril próximo passado.
Depois de considerandos genéricos sobre os postulados do potencial crescimento da economia, são enunciados os principais “princípios de governação económica pela confiança no futuro”, a que se segue um “diagnóstico económico e social”, tocando aspetos importantes como: o desempenho macroeconómico; o território; os fatores de crescimento; o mercado de trabalho; e a situação social.
Vem, depois, o desenho do “cenário macroeconómico”, em dois tempos: o cenário central inicial; e dois cenários adicionais – oportunidades e riscos.
O grupo de trabalho enuncia um quadro de “MEDIDAS PARA TRANSFORMAR AS CONDIÇÕES DE CRESCIMENTO DA ECONOMIA PORTUGUESA”, que constitui o trabalho central do estudo, agrupadas em cinco pontos nevrálgicos:  
Política social mais equitativa e um mercado de trabalho mais justo e eficiente;
Fiscalidade promotora da criação de emprego e dos investimentos em capital humano;
Sistema educativo para um mundo globalizado;
Promoção das competências técnicas e sociais da Administração Pública;
Investimento, inovação e internacionalização das empresas portuguesas.
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Quanto à política social, o relatório aborda: o contrato para a equidade laboral; a responsabilização das empresas pelos custos sociais do desemprego; o complemento salarial anual; um sistema de pensões sustentável através de um compromisso intergeracional estável e maior eficácia e rigor nas prestações redistributivas; a reposição de mínimos sociais; e a diversificação do financiamento da Segurança Social.
Em relação à fiscalidade, equaciona-se: o aumento da progressividade do IRS, nomeadamente através da eliminação gradual da sobretaxa; o compromisso de apoio ao rendimento e redução de restrições de liquidez das famílias; a redução dos custos com o cumprimento das responsabilidades fiscais; a redução do IVA da restauração para 13%; a tributação do património imobiliário (com agravamento do IMI para habitações não utilizadas como residência; e IMT); e o imposto sobre heranças de elevado valor.
No atinente ao sistema educativo, o grupo de trabalho debruça-se sobre: a organização das escolas, relevando a criação dum quadro docente estável nas escolas; o aprofundamento das experiências-piloto feitas com escolas e no âmbito dos TEIP no sentido do combate sério ao abandono escolar e à retenção; a aposta no ensino secundário profissionalizante feito em colaboração estreita entre as escolas e empresas; o reforço do acesso e da empregabilidade no ensino superior; e a formação ao longo da vida.
Quanto à Administração Pública, enunciam-se: algumas políticas de emprego público e mobilidade; medidas de política salarial e de carreiras; a criação de “Centros de Competências”; medidas de desenvolvimento territorial; mecanismos de descentralização e desconcentração dos serviços da AP; medidas para o aumento da celeridade, acessibilidade e confiança no recurso à Justiça; e o papel das privatizações e concessões e a regulação do mercado do produto.
No concernente ao investimento, inovação e internacionalização das empresas portuguesas, propõe-se: promoção do aumento do investimento com execução extraordinária de fundos europeus; reforço excecional e simplificação do crédito fiscal ao investimento (alteração no RFAI e no regime contratual); capitalização das empresas e desbloqueamento do financiamento aos bons projetos; “Pacote de Apoio à Internacionalização” (as empresas que se internacionalizam reforçam-se em Portugal); promoção da reabilitação urbana e requalificação do património histórico; desenvolvimento da “Ligação Universidade-Empresa” para novo patamar de inovação; apoio à descoberta e aceleração da inovação; e desburocratização para as empresas: menos tempo, pessoas e recursos dedicados à burocracia (SIMPLEX).
A coroar o relatório, vem o cenário final, que incorpora o impacto de todas as medidas apresentadas suscetíveis de serem quantificadas de forma fidedigna – cenário macroeconómico que  permite desmontar a ideia de que a consolidação orçamental tem de fazer-se à custa de uma dura recessão, que foi, durante esta legislatura, a ideologia do atual Governo, tendo a magnitude da recessão criada pela política de austeridade cega resultado de opções políticas deliberadas.
O relatório demonstra que é possível governar de outra forma. E, segundo a avaliação do grupo de trabalho, “o cenário final melhora o saldo orçamental face ao apresentado no cenário inicial”, implicando a trajetória “um aumento continuado do saldo orçamental de -3.0% do PIB em 2016 para -0.9% do PIB em 2019”. Tal melhoria decorre do “impacto de medidas de estímulo económico – uma aposta fundamental ao longo da legislatura e para a década – que permitem a criação sustentável de emprego”. A adoção destas medidas é, no entender do grupo, um investimento na criação de emprego, na utilização mais plena dos fatores produtivos, na produção de riqueza no presente, para, tendo mais, distribuir melhor a médio e longo prazo.
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Acreditando que o documento não é um programa eleitoral nem a “bíblia” da governança – até porque não cobre todos os setores da atividade que a política deve abarcar – e não lhe reconhecendo garantia absoluta de que tal cenário macroeconómico se mantenha no futuro, até porque os dados em que se baseia são os da Comissão Europeia, falíveis como os do Governo, pensava que o relatório seria gerido pelo PS, criticado pelos demais partidos e pela opinião pública. Depois, o PS, com base na avaliação que fizesse da crítica e da evolução do país e da Europa, gizaria o seu programa eleitoral, como os outros partidos, elencando as opções políticas, as constrições e as possibilidades e estabelecendo as ações prioritárias, entre as quais se inscreveria a luta por que a União Europeia revisse as suas opções fundamentais, em consonância com as justas aspirações dos cidadãos e dos povos.
Se calhar, porque em democracia a política tem a primazia sobre as demais vertentes – designadamente a económica e financeira – o PS deveria ter começado pela definição de políticas assente numa outra plataforma matricial divergente da que está em curso e, depois, verificar as possibilidades e as constrições decorrentes do cenário macroeconómico. Mesmo assim, o relatório demonstra que, mesmo com os dados disponíveis, é possível governar de outra maneira.
Entretanto, não bastou que a crítica se acirrasse e os partidos fizessem o seu caminho programático sob o escrutínio dos comentadores políticos e económicos. Pelo contrário, o ambiente político tornou-se pesado e a discussão centrou-se em aspetos laterais. Destaco dois factos insólitos dignos de registo.
Por um lado, o Parlamento encarregou-se de levar ao debate parlamentar as opções do relatório do PS. Pensava que a Casa da Democracia não se intrometesse na campanha eleitoral ou na pré-campanha. Deem a volta por onde a queiram dar, uma coisa é certa: o Parlamento não pode condicionar o debate político extraparlamentar ou o que ultrapasse o âmbito da relação com os demais órgãos de soberania. Possivelmente, admitir-se-á ao Governo que use da sua prerrogativa persuasiva na defesa das medidas que propõe ou que decreta, nomeadamente o pacto de estabilidade que tinha de mandar a Bruxelas. Porém, fazer da crítica ao relatório do PS um tema de debate formal não lembrava ao diabo.
Mas o desplante vai ao ponto de o PSD, através de vozes como a do vice-presidente Marco António Costa a pretender que o PS sujeite o seu documento à auditoria do Conselho de Finanças Públicas (CFP) e da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) da AR, bem como a exigir que o PS responda a 29 questões sobre a matéria que lhe formulou por carta.
Antes de mais, como “quem não deve não teme”, o PS que responda ao PSD se entender que o deve, pode e quer fazer – aliás já respondeu. Porém, que se fique a saber que fica mal a um partido e a um Governo (E o PSD ainda é líder do Governo) assumir postura inquisitória.
Quanto à UTAO e ao CFP, não vejo nesses organismos a atribuição legal de competências para auditar um documento de uma entidade partidária. Por outro lado, diga-se que o relatório não é um programa eleitoral, muito menos um programa de governo. Mais o programa de governo não carece de aprovação de nenhum organismo público, nem sequer de nenhum órgão de soberania, a não ser a do próprio Governo. Basta que, no âmbito da discussão parlamentar do programa de governo em concreto, não tenha sido apresentada e aprovada qualquer moção de censura ao programa de governo (cf CRP, art.os 192.º/4 e 195/1, alínea d). Por isso, não é admissível que um organismo de caráter técnico seja chamado a pronunciar-se sobre um programa de governo (essencialmente político) e por maioria de razão a um programa eleitoral ou a um relatório prévio.
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Vêm agora discriminadas as atribuições do CFP (Lei n.º 54/2011, de 19 de outubro e art.º 6.º dos estatutos por ela aprovados):
- Avaliar os cenários macroeconómicos adotados pelo Governo e a consistência das projeções orçamentais com esses cenários; e avaliar o cumprimento das regras orçamentais estabelecidas;
- Analisar a dinâmica da dívida pública e a evolução da sua sustentabilidade; e analisar a dinâmica de evolução dos compromissos existentes, com particular incidência nos sistemas de pensões e saúde e nas parcerias público-privadas e concessões;
- Avaliar a situação financeira das regiões autónomas e das autarquias locais; e avaliar a situação económica e financeira das entidades do setor público empresarial;
- Analisar a despesa fiscal;
- Acompanhar a execução orçamental.
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A lei de enquadramento orçamental atribui também ao CFP um papel determinante no reconhecimento dum desvio significativo face ao objetivo de médio prazo e no mecanismo de correção do desvio (artigos 72.º-B a 72.º-D da Lei de Enquadramento Orçamental), em linha com a atribuição de avaliação do cumprimento das regras orçamentais e de acordo com o normativo comunitário. (vd Lei n.º 91/2001, de 20 de agosto, com a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 41/2014, de 10 de julho).

Quanto à UTAO, as suas atribuições, conforme as resoluções da Assembleia da República n.º 53/2006, de 7 de agosto (cria a UTAO, lhe define as competências e composição), n.º 57/2010, de 23 de junho, e n.º 60/2014, de 30 de junho – que lhe reforçam as competências –, são as seguintes:
- Análise técnica da proposta de lei de Orçamento do Estado e suas alterações; e avaliação técnica sobre a Conta Geral do Estado;
- Acompanhamento técnico da execução orçamental, para o conjunto das administrações públicas;
- Análise técnica às revisões do Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC);
- Avaliação e acompanhamento dos contratos de Concessão, de Parceria Público-Privada e de Reequilíbrio Financeiro, celebrados por qualquer entidade pública, nomeadamente os encargos decorrentes da sua celebração, processo de negociações e alterações contratuais e seu cumprimento;
- Estudo técnico sobre o impacte orçamental das iniciativas legislativas admitidas, que o Presidente da Assembleia da República (PAR) entenda submeter à comissão especializada que detenha a competência em matéria orçamental e financeira, nos termos da alínea d) do n.º 1 do art.º 17.º do Regimento da Assembleia da República;
- Outros trabalhos determinados pela comissão especializada competente em matéria orçamental e financeira, ou que a esta sejam submetidos pelo PAR ou por outras comissões especializadas;
- Realização de reportes trimestrais sobre o endividamento contraído e investimento realizado em todas as entidades e empresas do setor público e à administração regional e local.


Efetivamente, estes organismos públicos, pagos pelo erário, não têm de auditar documentos partidários elaborados para fins meramente eleitorais, mas sim os emanado dos órgãos do poder instituído, central regional e local, bem como os atinentes a contratos, sobretudo PPP, reequilíbrio financeiro e concessões. Ou será que o PSD se esqueceu de que ainda pontifica no Governo e pensa que a governação já está a cargo do PS?

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