Os militantes do PS e os
simpatizantes que exprimiram a sua vontade através do voto nas eleições
primárias daquele partido não acreditaram, na sua esmagadora maioria, na
estratégia do finado líder António José Seguro. Por consequência, escolheram
António Costa para a insólita (em
Portugal) candidatura ao cargo de Primeiro-Ministro, com base num
entendimento alargado dalgumas das disposições estatutárias do partido, em
vigor ao tempo, designadamente a alínea h) do art.º 63.º, que definia, de entre
as competências da Comissão Política Nacional, “aprovar,
sob proposta do Secretariado Nacional, um plano de ação para a Democracia
Participativa, o qual será objeto de relatório anual a submeter à apreciação da
Comissão Política Nacional”.
Hoje,
tal disposição continua a constar tal e qual nos estatutos na mesma alínea h) do n.º 2 do art.º 64.º, mas a matéria
relativa às primárias é explicitada no n.º 6 do art.º 59.º como competência da
Comissão Nacional, delegável na Comissão Política Nacional.
Entretanto,
Costa ganhou as eleições primárias e, mais tarde, por maioria muito avantajada
dos militantes foi alçado a Secretário Geral e, finalmente, aclamado em
congresso nacional.
Porém,
alternando entre meias posições, silêncios e intervenções avulsas, já estava a
cansar os expectantes que ansiavam por uma alternativa credível à linha de
governação atual. Escudava-se na necessidade de não enunciar medidas de forma
precipitada sem ter avaliado o cenário macroeconómico, para não ser acusado de
prometer coisas de que fosse obrigado a desistir perante a novidade da situação
encontrada no início do novo ciclo governativo. Ficou-se, por isso, na
enunciação de aspetos genéricos como: uma nova forma de discutir nas instâncias
europeias; inverter os caminhos autoritários; promover o crescimento económico;
e fazer crescer o emprego. Não deixou de aqui e ali produzir afirmações
controversas, como o discurso perante os investidores chineses, geriu de forma
aceitável o caso Sócrates e chamou para lugares de relevo no partido antigos
membros da direção segurista.
Depois,
agendou para 6 de junho a apresentação do programa eleitoral do PS para as
próximas eleições legislativas. E, como ação prévia, confiou a 12 economistas, alguns
dos quais independentes, um estudo do cenário macroeconómico que antecipasse o
lastro para a enunciação segura de algumas medidas que fossem capazes de
inverter a política de austeridade atualmente em marcha, mesmo depois da
propalada saída da troika, e a minoração das suas mazelas atuais.
***
Em conformidade com a solicitação
do líder socialista, o predito grupo de economistas, liderado por Mário Centeno
e com o apoio técnico de Cláudia Joaquim e Hugo Mendes, elaborou o seu estudo vertido
em documento final a que deu o formato de relatório, sob o título Uma
Década para Portugal, que foi apresentado publicamente a 21 de abril
próximo passado.
Depois de considerandos genéricos
sobre os postulados do potencial crescimento da economia, são enunciados os
principais “princípios de governação económica pela confiança no futuro”, a que
se segue um “diagnóstico económico e social”, tocando aspetos importantes como:
o desempenho macroeconómico; o território; os fatores de crescimento; o mercado
de trabalho; e a situação social.
Vem, depois, o desenho do
“cenário macroeconómico”, em dois tempos: o cenário central inicial; e dois
cenários adicionais – oportunidades e riscos.
O grupo de trabalho enuncia um
quadro de “MEDIDAS PARA TRANSFORMAR AS CONDIÇÕES DE CRESCIMENTO DA ECONOMIA PORTUGUESA”,
que constitui o trabalho central do estudo, agrupadas em cinco pontos
nevrálgicos:
Política social mais equitativa e um mercado de
trabalho mais justo e eficiente;
Fiscalidade promotora da criação de emprego e dos
investimentos em capital humano;
Sistema educativo para um mundo globalizado;
Promoção das competências técnicas e sociais da
Administração Pública;
Investimento, inovação e internacionalização das
empresas portuguesas.
+++
Quanto à política
social, o relatório aborda: o contrato para a equidade laboral; a
responsabilização das empresas pelos custos sociais do desemprego; o complemento
salarial anual; um sistema de pensões sustentável através de um compromisso
intergeracional estável e maior eficácia e rigor nas prestações redistributivas;
a reposição de mínimos sociais; e a diversificação do financiamento da
Segurança Social.
Em relação à fiscalidade,
equaciona-se: o aumento da progressividade do IRS, nomeadamente através da
eliminação gradual da sobretaxa; o compromisso de apoio ao rendimento e redução
de restrições de liquidez das famílias; a redução dos custos com o cumprimento
das responsabilidades fiscais; a redução do IVA da restauração para 13%; a tributação
do património imobiliário (com agravamento do IMI para habitações não utilizadas como residência; e
IMT); e o imposto sobre
heranças de elevado valor.
No atinente ao sistema
educativo, o grupo de trabalho debruça-se sobre: a organização das escolas,
relevando a criação dum quadro docente estável nas escolas; o aprofundamento
das experiências-piloto feitas com escolas e no âmbito dos TEIP no sentido do
combate sério ao abandono escolar e à retenção; a aposta no ensino secundário
profissionalizante feito em colaboração estreita entre as escolas e empresas; o
reforço do acesso e da empregabilidade no ensino superior; e a formação ao
longo da vida.
Quanto à Administração
Pública, enunciam-se: algumas políticas de emprego público e mobilidade; medidas
de política salarial e de carreiras; a criação de “Centros de Competências”;
medidas de desenvolvimento territorial; mecanismos de descentralização e
desconcentração dos serviços da AP; medidas para o aumento da celeridade,
acessibilidade e confiança no recurso à Justiça; e o papel das privatizações e
concessões e a regulação do mercado do produto.
No concernente ao investimento,
inovação e internacionalização das empresas portuguesas, propõe-se:
promoção do aumento do investimento com execução extraordinária de fundos
europeus; reforço excecional e simplificação do crédito fiscal ao investimento
(alteração no RFAI e no
regime contratual); capitalização
das empresas e desbloqueamento do financiamento aos bons projetos; “Pacote de
Apoio à Internacionalização” (as empresas que se internacionalizam reforçam-se em Portugal); promoção da reabilitação urbana e
requalificação do património histórico; desenvolvimento da “Ligação
Universidade-Empresa” para novo patamar de inovação; apoio à descoberta e
aceleração da inovação; e desburocratização para as empresas: menos tempo,
pessoas e recursos dedicados à burocracia (SIMPLEX).
A coroar o relatório, vem o
cenário final, que incorpora o impacto de todas as medidas apresentadas
suscetíveis de serem quantificadas de forma fidedigna – cenário macroeconómico que
permite desmontar a ideia de que a
consolidação orçamental tem de fazer-se à custa de uma dura recessão, que foi,
durante esta legislatura, a ideologia do atual Governo, tendo a magnitude da
recessão criada pela política de austeridade cega resultado de opções políticas
deliberadas.
O relatório demonstra que é
possível governar de outra forma. E, segundo a avaliação do grupo de trabalho,
“o cenário final melhora o saldo orçamental face ao apresentado no cenário
inicial”, implicando a trajetória “um aumento continuado do saldo orçamental de
-3.0% do PIB em 2016 para -0.9% do PIB em 2019”. Tal melhoria decorre do
“impacto de medidas de estímulo económico – uma aposta fundamental ao longo da
legislatura e para a década – que permitem a criação sustentável de emprego”. A
adoção destas medidas é, no entender do grupo, um investimento na criação de
emprego, na utilização mais plena dos fatores produtivos, na produção de
riqueza no presente, para, tendo mais, distribuir melhor a médio e longo prazo.
***
Acreditando que o documento não é
um programa eleitoral nem a “bíblia” da governança – até porque não cobre todos
os setores da atividade que a política deve abarcar – e não lhe reconhecendo
garantia absoluta de que tal cenário macroeconómico se mantenha no futuro, até
porque os dados em que se baseia são os da Comissão Europeia, falíveis como os
do Governo, pensava que o relatório seria gerido pelo PS, criticado pelos
demais partidos e pela opinião pública. Depois, o PS, com base na avaliação que
fizesse da crítica e da evolução do país e da Europa, gizaria o seu programa
eleitoral, como os outros partidos, elencando as opções políticas, as
constrições e as possibilidades e estabelecendo as ações prioritárias, entre as
quais se inscreveria a luta por que a União Europeia revisse as suas opções
fundamentais, em consonância com as justas aspirações dos cidadãos e dos povos.
Se calhar, porque em democracia a
política tem a primazia sobre as demais vertentes – designadamente a económica e
financeira – o PS deveria ter começado pela definição de políticas assente numa
outra plataforma matricial divergente da que está em curso e, depois, verificar
as possibilidades e as constrições decorrentes do cenário macroeconómico. Mesmo
assim, o relatório demonstra que, mesmo com os dados disponíveis, é possível
governar de outra maneira.
Entretanto, não bastou que a
crítica se acirrasse e os partidos fizessem o seu caminho programático sob o
escrutínio dos comentadores políticos e económicos. Pelo contrário, o ambiente político
tornou-se pesado e a discussão centrou-se em aspetos laterais. Destaco dois
factos insólitos dignos de registo.
Por um lado, o Parlamento
encarregou-se de levar ao debate parlamentar as opções do relatório do PS.
Pensava que a Casa da Democracia não se intrometesse na campanha eleitoral ou
na pré-campanha. Deem a volta por onde a queiram dar, uma coisa é certa: o
Parlamento não pode condicionar o debate político extraparlamentar ou o que
ultrapasse o âmbito da relação com os demais órgãos de soberania.
Possivelmente, admitir-se-á ao Governo que use da sua prerrogativa persuasiva
na defesa das medidas que propõe ou que decreta, nomeadamente o pacto de
estabilidade que tinha de mandar a Bruxelas. Porém, fazer da crítica ao
relatório do PS um tema de debate formal não lembrava ao diabo.
Mas o desplante vai ao ponto de o
PSD, através de vozes como a do vice-presidente Marco António Costa a pretender
que o PS sujeite o seu documento à auditoria do Conselho de Finanças Públicas (CFP) e da Unidade Técnica de
Apoio Orçamental (UTAO)
da AR, bem como a exigir que o PS responda a 29 questões sobre a matéria que
lhe formulou por carta.
Antes de mais, como “quem não
deve não teme”, o PS que responda ao PSD se entender que o deve, pode e quer
fazer – aliás já respondeu. Porém, que se fique a saber que fica mal a um
partido e a um Governo (E o PSD
ainda é líder do Governo) assumir postura inquisitória.
Quanto à UTAO e ao CFP, não vejo
nesses organismos a atribuição legal de competências para auditar um documento
de uma entidade partidária. Por outro lado, diga-se que o relatório não é um
programa eleitoral, muito menos um programa de governo. Mais o programa de
governo não carece de aprovação de nenhum organismo público, nem sequer de
nenhum órgão de soberania, a não ser a do próprio Governo. Basta que, no âmbito
da discussão parlamentar do programa de governo em concreto, não tenha sido
apresentada e aprovada qualquer moção de censura ao programa de governo (cf CRP, art.os 192.º/4 e
195/1, alínea d). Por isso, não é admissível que um organismo de caráter
técnico seja chamado a pronunciar-se sobre um programa de governo (essencialmente político) e por
maioria de razão a um programa eleitoral ou a um relatório prévio.
***
Vêm agora discriminadas as
atribuições do CFP (Lei n.º 54/2011, de 19 de outubro e art.º 6.º dos estatutos por ela aprovados):
- Avaliar os cenários macroeconómicos adotados pelo Governo e a
consistência das projeções orçamentais com esses cenários; e avaliar o cumprimento
das regras orçamentais estabelecidas;
- Analisar a dinâmica da dívida pública e a evolução da sua
sustentabilidade; e analisar a dinâmica de evolução dos compromissos
existentes, com particular incidência nos sistemas de pensões e saúde e nas
parcerias público-privadas e concessões;
- Avaliar a situação financeira das regiões autónomas e das autarquias
locais; e avaliar a situação económica e financeira das entidades do setor
público empresarial;
- Analisar a despesa fiscal;
- Acompanhar a execução orçamental.
+++
A lei de enquadramento orçamental atribui também ao CFP um papel determinante
no reconhecimento dum desvio significativo face ao objetivo de médio prazo e no
mecanismo de correção do desvio (artigos 72.º-B a 72.º-D da Lei de Enquadramento
Orçamental), em linha com a atribuição de avaliação do cumprimento das regras
orçamentais e de acordo com o normativo comunitário. (vd Lei n.º 91/2001, de 20 de agosto, com a redação que lhe foi dada
pela Lei n.º 41/2014, de 10 de julho).
Quanto à UTAO, as suas
atribuições, conforme as resoluções da Assembleia da República n.º 53/2006, de
7 de agosto (cria a UTAO, lhe
define as competências e composição), n.º 57/2010, de 23 de junho, e n.º
60/2014, de 30 de junho – que lhe reforçam as competências –, são as seguintes:
- Análise técnica da proposta de lei de Orçamento
do Estado e suas alterações; e avaliação técnica sobre a Conta Geral do Estado;
- Acompanhamento técnico da execução orçamental,
para o conjunto das administrações públicas;
- Análise técnica às revisões do Programa de
Estabilidade e Crescimento (PEC);
- Avaliação e acompanhamento dos contratos de Concessão,
de Parceria Público-Privada e de Reequilíbrio Financeiro, celebrados por
qualquer entidade pública, nomeadamente os encargos decorrentes da sua
celebração, processo de negociações e alterações contratuais e seu cumprimento;
- Estudo técnico sobre o impacte orçamental das
iniciativas legislativas admitidas, que o Presidente da Assembleia da República
(PAR) entenda submeter à comissão especializada que detenha a competência em
matéria orçamental e financeira, nos termos da alínea d) do n.º 1 do art.º 17.º
do Regimento da Assembleia da República;
- Outros trabalhos determinados pela comissão
especializada competente em matéria orçamental e financeira, ou que a esta
sejam submetidos pelo PAR ou por outras comissões especializadas;
- Realização de reportes trimestrais sobre o
endividamento contraído e investimento realizado em todas as entidades e
empresas do setor público e à administração regional e local.
Efetivamente, estes
organismos públicos, pagos pelo erário, não têm de auditar documentos
partidários elaborados para fins meramente eleitorais, mas sim os emanado dos
órgãos do poder instituído, central regional e local, bem como os atinentes a
contratos, sobretudo PPP, reequilíbrio financeiro e concessões. Ou será que o
PSD se esqueceu de que ainda pontifica no Governo e pensa que a governação já
está a cargo do PS?
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