terça-feira, 5 de maio de 2015

Lei dita anacrónica

Questionado no avião que o transportou ao início da noite de domingo, dia 3 de maio, no começo da sua viagem para Oslo – cidade onde iniciou ontem uma visita oficial de três dias à Noruega – o Presidente da República Cavaco Silva referiu-se à atual lei que regula cobertura jornalística das campanhas eleitorais considerando-a como “a mais anacrónica que existe”.  
Cavaco foi ao ponto de garantir que, se, quando desempenhou o cargo de primeiro-ministro, a Comissão Nacional de Eleições (CNE) tivesse a interpretação que tem atualmente da lei, tê-la-ia mudado. Parece que a culpa da dificuldade e do anacronismo da lei vem da interpretação da CNE, quando os partidos têm posto a matéria ou em limbo ou em fervência polémica. Ademais, se a lei é tão extravagante, porque não utilizou a sua magistratura de influência presidencial?
Salientando que há presentemente 22 partidos inscritos e mais dois à espera de serem legalizados, e ainda os partidos na Madeira, Cavaco achou difícil imaginar como se possam cumprir os ditames de uma lei que obriga a que todos os partidos tenham cobertura igual.
O Presidente da República veio ainda a acrescentar, a meu ver a destempo, que no seu tempo de primeiro-ministro havia uma lei anacrónica, a da reforma agrária, e ele mudou-a. Se nessa altura a CNE tivesse a mesma interpretação, ele também teria mudado a lei da cobertura jornalística “e não teria medo”, tal como aconteceu com a lei que mudou por a considerar anacrónica.
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Sejamos claros. A lei da reforma agrária, como a encontrou, não era nem anacrónica nem de vigência demasiado duradoira. O que ela tinha de inconveniente era a carga ideológica e a experiência acumulada de atuação com que o partido de Cavaco Silva não concordava. E já estavam reunidas as condições para que a lei fosse mudada, ou melhor, revogada e anulada (a grande mudança tinha sido feita no tempo de António Barreto, 1976/78). Já havia mais de 5 anos que tinha sido revista a Constituição da República, pela Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de setembro, que tirou de cena o Conselho da Revolução. Por outro lado, foi o seu então prestigiado Ministro da Agricultura Álvaro Barreto que teve a força de fazer a dita operação de que Aníbal “não teve medo”, em contexto de maioria absoluta do PSD e com a complacência da estabilidade do Presidente Soares, ao tempo no exercício pacato do seu primeiro mandato presidencial a querer merecer o segundo.
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Porém, o que para Cavaco é a “lei mais anacrónica que existe”, para a CNE é somente falta de “informação” e “muita confusão”. O porta-voz da CNE, João Almeida, reagindo às declarações do Presidente da Republica, considerou ontem, dia 4 de maio, que “há muita confusão” em torno da interpretação da lei vigente. E acrescentou: “Há muita tensão em torno desta matéria, há muito pouca informação, há muita confusão, volta e meia são veiculadas informações factuais que não são inteiramente corretas, mas com muita intensidade, e o processo está a correr”.
Embora com a ressalva de que a CNE não irá comentar expressamente as declarações de Cavaco Silva, já que o órgão colegial de que é porta-voz não reuniu após a declaração presidencial, João Almeida lembrou a existência de muitas leis que são posteriores àquela que regula as campanhas eleitorais, nomeadamente a da manifestação.
Em seu entender, “no caso do tratamento jornalístico, aquilo que a lei que está em vigor diz é que essa igualdade não é dar o mesmo tempo, nem o mesmo espaço noticioso a todos, mas sim tratar com igual relevo acontecimentos de idêntica importância”.
Mais referiu que se pode dizer, em síntese, que a lei atual “apenas admite que se descrimine as candidaturas em função da sua ação, da sua capacidade de agir na campanha eleitoral, nas suas caraterísticas próprias”; e que, se uma candidatura não tiver nenhuma atividade eleitoral, não tem nenhuma notícia, pois a “lei não obriga a tratar igual o que é diferente”. E contraindica, a meu ver, a tomada de posição sistemática de defesa ou de ataque a uma determinada candidatura, bem como o desequilíbrio entre o espaço/tempo de informação e o de opinião.
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A polémica em torno da cobertura jornalística do período eleitoral surgiu a propósito das eleições autárquicas de 2013, quando a CNE impôs aos órgãos de comunicação social a garantia de “um tratamento igual e não discriminatório a todas as candidaturas”, levando a um boicote das televisões à cobertura tradicional da campanha.
Recentemente, o debate voltou à ordem do dia, depois de PSD, PS e CDS apresentarem um pré-projeto para alterar a lei da cobertura jornalística das eleições e referendos, o que, tal como referi então, veio a ser pasto de fortes críticas, sobretudo da parte dos principais órgãos de Comunicação Social. A principal novidade introduzida consistia na obrigação de todos os órgãos de comunicação social apresentarem previamente “planos de cobertura dos procedimentos eleitorais” a uma comissão mista, que juntava a CNE e ERC (Entidade Reguladora da Comunicação Social) e produzia juízo de valor sobre os ditos planos, bem como a obrigação de dar tratamento igual pelo menos aos partidos que tinham assento no órgão em causa por força dos últimos resultados eleitorais.
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Ora a lei em vigor é o Decreto-Lei n.º 85-D/75, de 26 de fevereiro, produzido ao abrigo da Lei Constitucional n.º 3/74, de 14 de maio. Trata-se, pois, de um diploma pré-constitucional, mas com plena validade, nos termos do art.º 290.º da CRP, sobre o direito anterior, que estabelece:
1. As leis constitucionais posteriores a 25 de abril de 1974 não ressalvadas neste capítulo são consideradas leis ordinárias, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
2. O direito ordinário anterior à entrada em vigor da Constituição mantém-se, desde que não seja contrário à Constituição ou aos princípios nela consignados.

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Do meu ponto de vista, o diploma em vigor regulamenta ao detalhe e de forma equilibrada a matéria – no âmbito da notícia, da reportagem, do comentário e da opinião – e prevê sanções adequadas ao infrator. Todavia, a regulamentação não abrange de forma satisfatória os debates radiofónicos e televisivos que a dinâmica da existência e ambição das diversas estações de rádio e de televisão (designadamente as privadas) entende dever apresentar ao público.
Provavelmente, seria conveniente a lei prever um quadro normativo estritamente igualitário das candidaturas por parte das estações públicas, mas reconhecendo maior liberdade de atuação às estações privadas, mãos em consonância com as leis da concorrência. A não ser assim, o sistema pode incorrer na partidarite instalada e a esclerose partidária estender-se ao regime. É obviamente necessário facilitar a renovação que a sociedade vá despertando.
Quanto aos 22 partidos candidatáveis de que fala o Presidente da República, resta dizer que possivelmente S. Ex.cia não tem em conta o número de formações partidárias existente nos idos de 1975 e 1976. E a aplicação da lei funcionou.
Também o Presidente não tem em consideração que, ao abrigo da mesma lei, dita anacrónica, foi possível, em dia de reflexão eleitoral imposta por lei, fazer a cobertura jornalística quase em sistema de reportagem continuada dos funerais de Sá Carneiro, Amaro da Costa, Patrício Gouveia e os dois pilotos – vítimas de Camarate – sem que alguém opusesse qualquer objeção consistente ao aparato propagandístico de que se revestiu tal evento, fruto de trágico acidente (?). O acidente ocorreu a 4 de dezembro de 1980, os funerais foram a 6 e a eleição presidencial foi a 7. A véspera foi o dia de reflexão em que não houve atos de campanha estrita. Mas prevaleceu – e bem – o interesse jornalístico!
Por outro lado, a mesma lei não obstou a que tivessem coexistido as exigências de tratamento igualitário de candidaturas com a opção de relevância de algumas por parte de algumas estações de televisão. Quem não se lembra dos debates previstos a dois em que a cadeira do interlocutor ficou vazia e o candidato que respondeu ao convite para o debate fez o desempenho do debate (?) sozinho?

Sendo assim, tenho de reconhecer que a lei em referência é, apesar de tudo, uma das leis mais bem elaboradas do ponto de vista técnico. A sua perduração por quarenta anos, como poucas, atesta bem a índole de perpetuidade que as leis têm por definição. Todavia, faz-me algum engulho não ter sido produzido um outro normativo legal com as melhorias que insinuei (e, ainda, a conversão dos escudo em euros, no quadro das multas e coimas) e aprovado e promulgado, como os demais, com referência à atual CRP. É uma questão de melhoria e da via perfectionis et pulchritudinis.

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