A memória de Dom Óscar
Arnulfo Romero Galdámez, que foi arcebispo de San Salvador, mobilizou, a 23 de
maio, 35 anos depois da sua morte à queima-roupa, mais de duas centenas de
milhares de fiéis para a celebração da beatificação na capital do seu país natal.
Presidiu o cardeal Angelo
Amato, prefeito da Congregação para as Causas dos Santos. E o Papa Francisco associou-se à beatificação com o envio de uma
carta ao arcebispo de San Salvador, Mons.
José Luis Escobar
Alas, Presidente da Conferência Episcopal de El
Salvador, que foi lida na cerimónia.
O Papa, na sua missiva, evocou a figura do
arcebispo assassinado em 24 de março de 1980 como um exemplo na defesa dos mais
pobres e apelou aos que têm em Oscar Romero um amigo na fé e que o invocam como
protetor e intercessor, que se comprometam com a edificação do Reino de Deus e
com a implantação de uma ordem social mais equitativa e digna.
Também o cardeal Amato, na sua homilia, muito
aplaudida pelos presentes, afirmou que “a memória de Romero continua viva e dá
consolo a todos os pobres e os marginalizados”.
O assassinato do arcebispo mártir ocorreu num
contexto de forte tensão política em El Salvador em que o prelado se opunha às
medidas repressivas tomadas pelos militares liderados pela respetiva junta
governativa. O processo de beatificação, que chegou ao Vaticano em 1997, após a
conclusão da fase diocesana, ficou parado durante vários anos, apesar das
várias pressões feitas por João Paulo II – que, na sua viagem a El Salvador,
teimou em visitar o túmulo do arcebispo assassinado, apesar das recomendações,
em contrário, de prudência política; exigiu menção do seu nome na paraliturgia
da via sacra jubilar do amo 2000 evocativa dos mártires do século XX; e, ante a
omissão do seu nome na visita ad limina
dos bispos salvadorenhos em novembro de 2001, fez o respetivo reparo e exclamou
que ele era um mártir – até que Bento XVI, agora Papa emérito, desbloqueou a
causa, em dezembro de 2012.
O Papa Ratzinger chegou a afirmar que fora
“certamente uma grandiosa testemunha da fé, um homem de grandes virtudes
cristãs, que se comprometeu pela paz e contra a ditadura, e que foi assassinado
durante a celebração da missa”.
Alinhado com os predecessores o Papa Francisco
autorizou, a 3 de Fevereiro deste ano de 2015, a publicação do decreto que
reconhecia o martírio de D. Oscar Romero, aquele de quem disse ser “um homem de
Deus”.
O arrastamento no
tempo da causa da sua beatificação deve-se à dúvida persistente de se saber se
o arcebispo tinha sido morto por motivos puramente políticos ou por motivos
religiosos, in odium fidei. É óbvio
que é difícil desligar totalmente da área política as ações dum homem público,
da parte de quem até os silêncios são conotados com posturas políticas. Para os
católicos mais progressistas, um padre ou um bispo que receba um governante que
integre um governo ditatorial ou participe em alguma das suas cerimónias
protocolares é tido como cúmplice da ditadura pela colaboração ou pela delação
ou pelo silêncio; já para os católicos conservadores, se usa da palavra e da
solidariedade na defesa, na voz e na proteção dos mais pobres, fracos,
desprotegidos ou doentes (e se critica pontos
iníquos da programação e da atuação política), é marxista, comunista, subversivo,
antipatriota (Quantos padres e bispos vermelhos não
andam por aí!), fautor de divisão e desorientação do rebanho e
antipatriota; e, quando está do lado dos pobres e deserdados e, porque muda de
território ou as circunstâncias se alteram gravemente, passa a criticar os
excessos da revolução, os católicos ficam baralhados, mas outros se encarregam
de o lançar na fossa do descrédito. Lembro-me do exemplo do antigo arcebispo de
Braga Dom Francisco Maria da Silva, o qual, no seu tempo de padre no Alentejo,
era o padre vermelho, graças ao seu discurso e ação em favor dos trabalhadores
e com eles; porém, porque no período em que foi arcebispo primaz escalpelizou
os exageros e as tropelias de algumas ondas revolucionárias, foi criticado e
exemplarmente humilhado como reacionário e suspeito de atos condenáveis.
***
Quanto a Mons. Óscar
Romero, um homem atirou, no dia 24 de março de 1980, sobre ele durante a celebração
da missa a que presidia numa pequena capela hospitalar. Até hoje não se
sabe ao certo quem em concreto disparou nem precisamente qual foi a razão explícita
do crime. Por isso é que o processo de beatificação de um homem universalmente
respeitado como um bom líder cristão e um defensor dos pobres levou 35 anos a
ficar concluído. Porém, sabe-se claramente qual o quadrante ideológico
donde provém o ato criminoso e a motivação de fundo.
O bispo que cedo
mostrou não se resignar a dar voz ao poder, a um poder iníquo, mas a fazer sua
a causa dos pobres, dos perseguidos, dos oprimidos, daqueles a quem o poder
político recusava dar vez e voz, antes os silenciava nas suas legítimas e
justas aspirações, incomodava o regime, que só esperava da Igreja e dela exigia
a bênção blasfema e sacrílega para a suas atrocidades contra o povo. A acusação
de comunista constitui argumento trivial de quem não tolera que o Evangelho
defenda e promova a dignidade das pessoas e pratique o amor preferencial pelos
mais pobres. Nos três anos em que serviu, liderando-as, as comunidades
católicas da capital salvadorenha, Óscar Romero denunciou a repressão do regime
militar e da violência praticada pelos seus esquadrões da morte.
Ora, o arcebispo não
deixava de justificar a sua postura de opção pelos mais pobres com o Evangelho
e com o Vaticano II, em que o modelo a seguir é Cristo, que sente as amarguras
e os sofrimentos dos que estão marginalizados e oprimidos. Por isso, a sua
morte foi perpetrada, não por motivos exclusivamente políticos, mas sobretudo
por motivos claramente antievangélicos. Foi silenciado apenas um dia depois de
ter exortado os militares salvadorenhos a que, na qualidade de cristãos,
obedecessem às ordens superiores de Deus e não cumprissem as do Governo que
implicassem a violação dos direitos humanos básicos e a repressão.
Como anota o
postulador da causa da canonização, o arcebispo “é verdadeiramente um mártir da
Igreja do Vaticano II, uma Igreja que é mãe de todos, particularmente dos mais
pobres”.
Uma nota da arquidiocese
de San Salvador assegura que a celebração de 23 de maio constitui “a
beatificação do salvadorenho mais conhecido e amado em todo o mundo pelo seu
amor aos pobres, à justiça, à verdade e à Igreja”; e que “a sua vida, dedicação
e entrega até ao fim são sinais eloquentes de um pastor que assumiu o risco de
morrer por defender o seu rebanho e as pessoas mais frágeis”.
***
A elevação ao grau de
beato na Igreja requer, por norma, a comprovação de um milagre operado por
intercessão do Servo de Deus em causa. Há, porém, algumas exceções, sendo uma
delas o martírio. Assim, se uma pessoa for morta por ódio à fé, isto é, morta
especificamente por ser cristã ou por defender valores cristãos, pode ser
declarada beata sem esse requisito.
No caso deste Servo de
Deus e tendo em conta que não se comprovou a existência do milagre exigido
canonicamente, a questão central do processo de beatificação tem sido saber se
ele deve ser considerado mártir ou não – o que não quer dizer que não tenham
sido levantadas questões laterais, como as atinentes à oportunidade política ou
à utilização do facto Romero como bandeira peculiar das oposições à ditadura.
Não posso deixar no
olvido que valores fundamentais do cristianismo – fraternidade, liberdade e
igualdade – foram capturados como seus pelo liberalismo e exaltados como
trilogia da revolução francesa de 1789 e que o marxismo se assenhorou de
valores típicos da praxis cristã, esquecidos pelos doutrinadores
institucionais, que não pelos renovadores através das ordens e congregações religiosas.
***
Dom José Saraiva
Martins, o cardeal português que foi prefeito da Congregação para as Causas dos
Santos no decurso de uma década, explica qual era a dificuldade central do
processo: “Havia quem dissesse que tinha sido morto não em ódio à fé, mas por
motivos políticos. Nessa altura governava a direita política, então muitos
atribuíram a sua morte aos que estavam no governo e que eram de direita, e
então julgavam que Romero era de esquerda”. E aduz o seu empenhamento pessoal
na causa: “Eu ocupei-me muito dessa causa, estudei-a profundamente e cheguei
sempre à conclusão de que o motivo pelo qual o mataram não tinha nada a ver com
a política do país, da direita ou da esquerda, mas foi um motivo puramente
religioso, por ódio à fé cristã”. Foi, depois, esta a conclusão a que chegou a
congregação, por unanimidade, recomendando ao Papa Francisco que reconhecesse o
martírio. “Ele foi morto ao altar. Através dele, quiseram atingir a Igreja que
fluía do Concílio Vaticano II”, refere o decreto, inferindo que o assassinato “não
foi causado por meros motivos políticos, mas por ódio a uma fé que, imbuída de
caridade, recusava silenciar-se ante as injustiças que chacinavam, cruel e
incansavelmente, os pobres e os seus defensores”.
Sendo da América do
Sul e tendo uma especial afinidade por Romero, cujo percurso conhecia, Francisco
pôs fim a essa discussão ao declará-lo oficialmente mártir em de 3 do passado
mês de fevereiro. E o arcebispo, que passará a ser conhecido como beato Óscar
Romero, já era venerado por muitos como padroeiro informal dos pobres e
oprimidos. Agora, essa devoção popular tornou-se devoção oficial e objeto de
culto público. Espera-se que surja o momento da canonização para que o culto
público seja extensivo a todo o mundo católico.
***
Na missiva
papal acima referenciada, pode ler-se que esta beatificação de Romero é de
grande alegria para “quantos nos regozijamos com o exemplo dos melhores filhos da Igreja”. Ele “construiu a paz com a força do
amor, deu testemunho da fé com a vida entregue até ao fim.”
Mais afirma o
Papa: “Nunca o Senhor abandona o seu povo nas dificuldades e mostra-se sempre
solícito com as suas necessidades”. Evocando a história da Salvação, escuda-se
desde logo no Antigo Testamento: “Ele [o Senhor] vê a opressão, ouve os gritos de dor dos seus filhos e
acorre em sua ajuda para os livrar da opressão e conduzi-los a nova terra,
fértil e espaçosa onde mana leite e mel” (cf Ex 3,7-8). De igual modo, “escolheu um dia Moisés, para que, no seu nome, guiasse
o povo, e continua a suscitar pastores, segundo o seu coração, que apascentem o
rebanho com ciência e prudência” (cf. Jer 3,15).
Depois,
Francisco garante que o Senhor concedeu a El Salvador “um Bispo zeloso que,
amando a Deus e servindo os irmãos, se converteu na imagem de Cristo bom
pastor”, que soube, em tempos de difícil convivência, “guiar, defender e
proteger o seu rebanho, permanecendo fiel ao Evangelho e em comunhão com toda a
Igreja”.
Especifica, a
seguir, a peculiaridade do ministério romeriano:
“O seu ministério distinguiu-se por
uma particular atenção aos mais pobres e marginalizados. E, no momento da sua
morte, enquanto celebrava o Santo Sacrifício do amor e da reconciliação,
recebeu a graça de se identificar plenamente com Aquele que deu a vida pelas
suas ovelhas”.
Por isso, diz
o Papa, formulando um voto de ação de graças a Deus pelo carisma deste apóstolo:
“Neste dia de festa para a nação
salvadorenha e para os países irmãos latino-americanos, agradecemos a Deus por
haver concedido ao Bispo mártir a capacidade de ver e ouvir o sofrimento
do seu povo e ter modelado o seu coração para que, no seu nome, o orientasse e
iluminasse, até fazer do seu agir um exercício pleno da caridade cristã”.
E Francisco
salienta o reflexo da voz de Romero no ser e na missão da Igreja de hoje:
“A voz do novo Beato continua a
fazer-se ouvir hoje para recordarmos que a Igreja, convocação de irmãos em
redor do seu Senhor, é família de Deus, em que não pode haver nenhuma divisão.
A fé em Jesus Cristo, quando se entende bem e se assume até às últimas
consequências, gera comunidades construtoras de paz e de solidariedade. A isto
está hoje chamada a Igreja em El Salvador, na América e no mundo inteiro: a ser
rica em misericórdia, a converter-se em fermento de reconciliação para a
sociedade”.
Quanto ao
legado no novo beato, o Papa acrescenta:
“Convida-nos à prudência e à reflexão,
ao respeito pela vida e à concórdia. É necessário renunciar à violência da espada e do ódio e viver a violência do amor, a que deixou
Cristo cravado na cruz, a que faz cada um vencer os seus egoísmos e para que não
haja desigualdades tão cruéis entre nós. Ele soube ver e experimentou em
sua carne o egoísmo que se esconde
naqueles que não querem ceder do seu para alcançar os demais. E com o
coração de pai preocupou-se com as
maiorias pobres, pedindo aos poderosos que transformassem as armas em foices de trabalho”.
Ao mesmo tempo,
o Pontífice a quantos o invocam como protetor e intercessor, a quantos admiram
a sua figura, lança o repto de que “encontrem
nele a força e ânimo para construírem o Reino de Deus, para se comprometerem
por uma ordem social mais equitativa e digna”.
Finalmente, o
Papa, neste “momento favorável a uma verdadeira e própria reconciliação
nacional antes os desafios que hoje se evidenciam”, está solidário com “as suas
esperanças, une-se às suas orações para que floresça a semente do martírio e se
incitem a enveredar pelos verdadeiros caminhos os filhos e filhas dessa Nação (El Salvador) que se ufana de ostentar o nome do
divino Salvador do mundo.
***
Em suma, a
beatificação, pelos vistos, só peca por tardia. Mas fez-se justiça à causa da justiça
e da missão da Igreja pós-conciliar. Porém, o Papa quer mais: doutrina mais
lúcida e ação mais comprometida e mais eficaz, radicada na oração, indo ao
encontro dos mais pobres e travando a fúria ambiciosa dos opressores, dos insaciados
do lucro, do poder e da fama.
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