quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Estado quer ser ressarcido da indemnização paga à família de Ihor

 

O Estado português, em nome do “direito de regresso”, pretende ser ressarcido da indemnização 712 950 euros que pagou à família pela morte do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk, em 12 de março de 2020, em virtude da qual foram condenados a pena de prisão efetiva de nove anos três ex-inspetores do extinto Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Tal pretensão implicaria o erário público vir a receber, de cada um, 237 650 euros.

O montante da indemnização, assumido pelo Estado pelo facto de se tratar de uma morte ocorrida (provocada?) em instalações do Estado e à guarda da polícia portuguesa, foi arbitrado, em dezembro de 2020, pela Provedora de Justiça.

Os referidos inspetores, que foram demitidos da função pública, em outubro de 2023, em resultado de processo disciplinar, estão a cumprir, no estabelecimento prisional de Évora, penas que lhes foram aplicadas, não pelo crime de homicídio, mas pelo crime de ofensas à integridade física qualificada e agravada pelo resultado, que foi a morte.

Ora, admitindo que a pena aplicada é justa – para o cidadão comum, não é percetível a justeza da diferença entre morte provocada (homicídio) e ofensas à integridade física de que resulte a morte, mas seria difícil avaliar a intenção comportamental dos arguidos – a indemnização calculada unilateralmente, e não por um tribunal, com direito a suficiente contraditório e a recurso, não parece dever ser imputada aos arguidos e condenados criminalmente. Por outro lado, como refere a defesa de um dos justiçados (pelos vistos, secundada pela dos outros), a indemnização em causa ultrapassa “os valores considerados justos e equitativos, em situações similares, pela jurisprudência uniforme dos tribunais superiores”.

A defesa de Luís Silva, a primeira que deu entrada no tribunal, sustenta que a decisão de pagar foi meramente política.Se o Estado português decidiu atribuir alguma indeminização à família de Ihor Homeniuk, fê-lo no cumprimento de uma obrigação natural, isto é, uma obrigação de natureza moral, e não no cumprimento de uma qualquer obrigação de natureza civil, portanto nós entendemos desde logo por essa razão que não há lugar a qualquer direito de regresso”, alega a advogada Maria Manuel Candal.

Salienta, igualmente, a defesa que a Provedora de Justiça se baseou, para o cálculo dos danos patrimoniais – num total de 314 950 euros –, nas informações comunicadas pela viúva de Ihor, Oksana Homeniuk, sem apresentação de prova documental nem quanto ao que Ihor auferia, nem quanto aos rendimentos da própria. 

Afirmando desconhecer se a viúva tinha a profissão de professora e auferia 300 euros por mês e não acreditar que Ihor Homeniuk tivesse um rendimento mensal de 1500 euros na atividade de construção civil, num total anual de 18 mil euros, a defesa cita a decisão da Provedora de Justiça, qual reconhece essa ausência de prova: “Sem que haja junção de comprovativo documental, invoca-se um rendimento mensal de cerca de 1500 euros […] Cumpre superar a evidente dificuldade gerada pela não apresentação de prova documental do rendimento alegado, designadamente de índole fiscal […].” Contudo, segundo a advogada, a Provedora de Justiça superou a dificuldade “dando de barato” que a informação comunicada estava correta.

Também a fixação dos montantes para os danos de sofrimento antes da morte e para os danos morais (não patrimoniais) é motivo de contestação, por estarem em causa valores muito superiores – entre 10 vezes mais (para o sofrimento antes da morte, que foi avaliado em 100 mil euros) e duas vezes mais (para os danos morais da viúva e dos filhos, 56 mil euros para cada) – aos atribuídos pela jurisprudência dos tribunais superiores em danos similares. É, ainda, reputada de ilegal a compensação por danos morais paga ao pai de Ihor (50 mil euros).

Efetivamente, a ilegalidade apontada resulta de, aquando da habilitação de herdeiros efetuada na Ucrânia, após a morte de Ihor, o seu progenitor ter renunciado, a favor da nora e dos netos, a qualquer direito; de, segundo a lei portuguesa (ver artigo 496.º do Código Civil), numa situação de morte, o direito a ressarcimento por danos não patrimoniais só é devido a ascendentes, caso não haja cônjuges não separados e filhos; e de a Resolução do Conselho de Ministros, de 10 de dezembro de 2020 (que resolveu atribuir uma indemnização à família, a arbitrar pela Provedora de Justiça) referir apenas a viúva e os dois filhos como recipientes da mesma.

Todavia, a Provedora de Justiça entendeu, ao fixar a indemnização por danos não patrimoniais, “não desmerecer a dor dos pais […] pela circunstância de concorrerem cônjuge e filhos”, assumindo que tanto na fixação do valor da compensação do progenitor como da viúva e filhos “os valores estabelecidos têm como horizonte o máximo adotado em procedimentos similares, superando-o”.

Apresentadas durante o mês de fevereiro, as contestações dos ex-inspetores respondem à ação de que o Estado português deu entrada, ainda em 2023 (dentro do prazo de três anos para exercer o direito de regresso), no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa (TACL), requerendo que este ordene aos três ex-inspetores que reembolsem o erário público do montante despendido.

Na sua petição inicial, o Estado, representado pelo Ministério Público (MP), lembra que a dita Resolução do Conselho de Ministros, que assumiu o pagamento da indemnização, refere que será exercido o direito de regresso, relativamente à mesma, “nos termos que resultarem da responsabilidade individual judicialmente provada”. E cita a Lei da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Pessoas Coletivas, a qual determina que o Estado e as pessoas coletivas de direito público “são responsáveis de forma solidária com os respetivos titulares dos órgãos, funcionários e agentes, se as ações ou omissões […] tiverem sido cometidas por estes no exercício das suas funções e por causa desse exercício”. Daí decorre que, sempre que o Estado e pessoas coletivas de direito público atribuam qualquer indemnização por aquele tipo de situação, “gozam de direito de regresso contra os titulares de órgãos, funcionários e agentes responsáveis”, sendo este exercício “obrigatório”.

Sendo assim, conclui o MP: “Sentenciada criminalmente a culpa dos réus [os três ex-inspetores] na morte de Ihor Homeniuk, quando em funções públicas […], tem o Estado português o direito de por eles ser ressarcido integralmente nos montantes que pagou aos herdeiros do falecido, ou seja a reaver os 712 950 euros.”

Porém, como refere a contestação, há outro processo criminal a correr, aguardando julgamento, em relação com a morte de Ihor, com mais cinco arguidos. Trata-se de três inspetores do extinto SEF – incluindo o ex-diretor de Fronteiras de Lisboa, António Sérgio Henriques, entretanto, tal como os três ex-inspetores condenados, demitido da função pública –, e dois seguranças da empresa de segurança privada Prestibel. Dois dos inspetores em causa estão acusados de homicídio negligente por omissão, o que, a ficar provado, significará corresponsabilidade na morte de Ihor.

Estabelecendo a dita resolução do Conselho de Ministros que a responsabilidade indemnizatória se assumia “relativamente à morte de um cidadão à guarda do Estado e em instalações públicas”, argumenta a defesa de Luís Silva que o direito de regresso, a ser reconhecido, teria de se exercer, igualmente, sobre os arguidos deste outro processo, no caso de virem a ser condenados. Por isso, requere que esses arguidos e a empresa Prestibel sejam chamados ao processo instaurado pelo Estado no TCAL e que esta mesma ação seja suspensa até existir decisão, com trânsito em julgado, no processo criminal em curso, aduzindo: “A decisão que venha a ser proferida neste processo-crime é absolutamente indispensável para a boa decisão da presente causa.”

Tendo a viúva de Ihor apresentado, neste novo processo-crime, um pedido de indemnização de 700 mil euros (que o juiz considerou fora de prazo) – no quadro do apoio à vítimas da guerra na Ucrânia (não se vê a conexão) – em relação aos referidos cinco arguidos e à empresa de segurança privada Prestibel, a defesa de Luís Silva contesta a sua legitimidade, pois, com o pagamento à assistente e aos demais herdeiros de Ihor Homeniuk da quantia apurada no âmbito do denominado “Processo de Indemnização”, ficaram eles inteiramente ressarcidos de todos e quaisquer danos sofridos por Ihor, desde a sua entrada em Portugal e até ao seu falecimento.

Assim, a defesa sustenta que o Estado não tem qualquer direito de regresso – nem sobre os três condenados passados, nem sobre os eventualmente futuros condenados – em relação à indemnização atribuída, já que a decisão de a pagar não resultou de condenação judicial. Portanto, se o Estado decidiu proceder ao pagamento da aludida indemnização, fê-lo no cumprimento do que terá perspetivado como obrigação natural, e não ao abrigo de uma obrigação civil.

Por outro lado, recorda que foi o Estado a declarar, em novembro de 2020, em sede do processo criminal contra os três inspetores e através do MP (que assumia o papel, simultaneamente, de acusador dos arguidos e de defensor do Estado, do qual eram funcionários), a “nulidade insanável” do pedido de indemnização de 999 mil euros, ali apresentado por Oksana Homeniuk, por considerar que o tribunal em causa – o criminal – não era para tal competente.

Uma vez decidido pelo governo o pagamento de uma indemnização a Oksana e filhos, o tribunal criminal perguntou à viúva, assistente no processo criminal, se mantinha interesse no pedido de indemnização ali efetuado, tendo ela desistido do pedido, declarando-se “inteiramente ressarcida”, o que levou o tribunal a extinguir a instância cível.

Por fim, a defesa proclama que jamais os ex-inspetores seriam condenados, pelo tribunal, a pagar uma indemnização do valor “unilateralmente decidido pelo Estado”, porque não só o pedido efetuado pela viúva entrara fora de prazo – o que deveria implicar a respetiva nulidade – como o tribunal nunca atribuiria um valor “sequer próximo” do que foi pago à família, “por total ausência de fundamento legal” e “total ausência de fundamento de facto.”

Na verdade, em novembro de 2021, aquando do julgamento dos recursos dos ex-inspetores no Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), o procurador que ali representava o MP criticou o valor da indemnização atribuída à família de Ihor, alegando que, “se o Estado Português tiver de dar tanto dinheiro por uma indemnização, vai à falência em pouco tempo”. Porém, o advogado de Oksana Homeniuk reagiu, invocando as indemnizações, igualmente fixadas pela Provedora de Justiça, respeitantes às vítimas dos incêndios de 2017, o que, do meu ponto de vista, não quer dizer que os factos sejam equiparáveis ou que os cálculos das indemnizações individuais tenham sido corretos. O mesmo não digo das verbas alocadas para recuperação daquela faixa territorial.   

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Parece que há, neste caso, algumas confusões. Se é difícil compreender que, em ato de que resultou a morte de alguém, dois arguidos tenham sido condenados a nove anos de prisão e outro da mesma categoria funcional a sete anos (isso teria acontecido, se o TRL não tivesse corrigido a decisão do tribunal de primeira instância), também é difícil aceitar que todos tenham tido o mesmo grau de culpabilidade no ato. Por outro lado, confunde-se o papel do Estado na sua componente diplomática – fez bem em sentir-se responsável e em pagar pela morte de um cidadão estrangeiro em instalações à sua guarda e por funcionários dos seus quadros ou de empresa por si contratada – com a responsabilidade criminal e civil de pessoa singular. Também é inegável que o valor da indemnização em causa ultrapassa o determinado pelos tribunais em casos similares. Recordo, a título de exemplo, que a indemnização calculada pelo homicídio de um militar da Guarda Nacional Republicana (GNR), em 2015, pouco passou da centena de milhar de euros.

Por fim, não veio a lume o eventual comportamento pelo qual Ihor foi vítima de maus tratos. E, se a morte não foi provocada, mas decorreu de meras agressões (?), como pode imputar-se uma indemnização ao excesso dos agressores policiais?

2024.02.29 – Louro de Carvalho

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Ajuda a Gaza, em vez de aumentar, cai para metade

 

Avolumam-se, cada vez mais, as necessidades de todo o tipo que afetam a população de Gaza e cresce o número de habitantes que já não têm que comer. Com efeito, a ajuda que entrou naquele território palestiniano caiu para metade, relativamente a janeiro, de acordo com a agência da Organização das Nações Unidas (ONU) que ali presta ajuda aos refugiados (UNRWA).

“A ajuda deveria aumentar e não diminuir”, para satisfazer as enormes necessidades dos dois milhões de habitantes da Faixa de Gaza, que vivem em condições de desespero, afirmou, na rede social X (antigo Twitter), Philippe Lazzarini, comissário-geral da organização, atribuindo a redução à insegurança decorrente das operações militares das tropas israelitas, que levaram ao colapso da ordem civil e à falta de vontade política para fazer entrar ajuda em segurança.

Escrevendo na mesma plataforma, a 25 de fevereiro, Lazzarini disse que, apesar de ter alertado, com outras agências da ONU, para a situação de fome iminente e de ter apelado ao acesso humanitário regular, desde o dia 23 que não entrava no território qualquer ajuda. “Os nossos apelos foram negados e depararam com ouvidos surdos”, denunciou.

De resto, ao longo de fevereiro, o número de camiões com ajuda que lograram autorização não atingiram a centena. “Às vezes, a UNRWA teve de interromper temporariamente o descarregamento dos fornecimentos devido a questões de segurança […] severamente afetada, devido à morte recente de vários polícias palestinianos em ataques aéreos israelitas”, lamentou.

No entanto, continua latente a ameaça de uma ofensiva, em larga escala, das tropas israelitas sobre Rafah, onde se calcula estarem abrigados cerca de milhão e meio de pessoas. Operações terrestres e combates intensos continuam na Faixa de Gaza, sobretudo em Deir al Balah e Khan Younis. E mais de dois milhões de pessoas enfrentam crises ou níveis piores de insegurança alimentar.

Enquanto isso, só uma das três condutas de água de Israel está operacional, mas com menos de metade da capacidade. Para piorar a situação, 83% dos poços de águas subterrâneas estão inoperacionais, tal como a totalidade dos sistemas de tratamento de águas residuais. Na região norte de Gaza, “não há acesso a água potável”.

Não raro, perante descarga de rações alimentares em alguns pontos do território, há cenas de luta violenta entre os necessitados de comida e de bebida. É a necessidade de sobrevivência.

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Entretanto, enquanto prossegue a guerra de Israel em Gaza e na Cisjordânia e aumenta o sentimento de insegurança, realizou-se, em Jerusalém, a tradicional Via Sacra da segunda semana da Quaresma. Assim, a 23 de fevereiro, mais de mil crianças e jovens que frequentam as escolas cristãs da cidade, acompanhados de inúmeros familiares e de professores, percorreram as ruas de lenços brancos na mão, pedindo a paz para todo o Mundo e, em especial, para a Terra Santa. Neste ano, sob “A Via Sacra… Um Caminho de Paz”, a procissão que recorda a via de Jesus carregando a cruz foi organizada pela Custódia da Terra Santa e envolveu 12 instituições (incluindo duas escolas da Igreja Anglicana e a escola da Igreja Apostólica Arménia) e vários grupos católicos.

“Podemos dizer que foi uma Via Sacra ecuménica, havia praticamente todas as igrejas, portanto, cristãos de todas as confissões unidos em oração, unidos no desejo de percorrer a via que Jesus percorreu para nos salvar. E o nosso desejo é caminhar com Ele, como seus discípulos, como discípulos de Jesus, invocando o dom da paz, pois sabemos que Jesus morreu pela reconciliação da Humanidade. E, portanto, não há oração melhor do que, ouso dizer, a que celebra a paixão e a morte de Jesus, para invocar o dom da paz”, declarou ao Vatican News, a 26 de fevereiro, o padre Francesco Patton, Custódio da Terra Santa.

 A Via Sacra começou na Igreja da Flagelação e terminou na Igreja de São Salvador. As primeiras oito estações corresponderam ao percurso tradicional da Via Dolorosa de Jesus. Em cada estação, a seguir à leitura bíblica e à oração, duas crianças soltaram um par de pombas, sinal dos desejos de paz e de liberdade. “Todos rezaram para que esta guerra acabe. Rezaram pelos seus irmãos que estão em Gaza, que morrem de fome, de sede, de frio. Muitos estão feridos, não têm possibilidade de tratamento. Hoje foi um dia de clamor ao Senhor pela paz”, observou o padre Ibrahim Faltas, vigário custodial e diretor das Escolas Terra Santa, que também participou.

O padre Faltas enfatizou a importância da liberdade de culto à luz de relatórios recentes que sugerem que o governo israelita está a considerar restringir o acesso à Esplanada das Mesquitas-Monte do Templo no mês do Ramadão. “Jerusalém deve estar aberta a todos; essa é a sua natureza. As pessoas não podem ser impedidas de ir rezar, em qualquer idade. Todos têm o direito de orar nos seus locais de culto. Se no Ramadão as pessoas não conseguirem chegar às mesquitas, será um problema significativo”, declarou à Catholic News Agency.

Por sua vez, o padre Francesco Patton considerou: “Nos momentos em que parece que as pessoas não conseguem chegar a um acordo, devemos bater com mais insistência à porta de Deus com as nossas orações, para que aqueles que devem e podem oferecer uma solução para esta guerra possam ser guiados de volta à razão.”

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Longe de Jerusalém, no âmbito católico, a Pax Christi dos Estados Unidos da América (EUA), em cooperação com cerca de uma dúzia de organizações, promoveu, na Quarta-feira de Cinzas, junto à Casa Branca, em Washington, uma celebração que marcou o início da campanha quaresmal pelo cessar-fogo em Gaza, que se compõe de “uma série de ações estratégicas semanais não violentas […], para apelar ao católico presidente Biden e aos membros do Congresso, em especial aos que são cristãos, a que sigam o caminho de Jesus de amor corajoso, [e para os exortar] a apelarem, publicamente, a um cessar-fogo bilateral, para [se] evitar a perda de mais vidas, e a apoiarem a desmilitarização, em vez de fornecerem mais ajuda militar ou armas a Israel”.

Pressionam os políticos dos EUA, em especial os cristãos, a “concentrarem-se na libertação dos reféns israelitas e dos prisioneiros palestinianos detidos sem um processo justo” e a “apoiarem uma forte assistência humanitária e o reinício do financiamento do governo dos EUA à UNRWA, a agência da ONU que apoia os refugiados palestinianos”. Na verdade, os responsáveis deveriam “trabalhar no plano diplomático para pôr fim ao cerco a Gaza e à ocupação do Território Palestiniano, a fim de abordar as causas profundas da violência, responsabilizar-se pelos danos causados e levar todas as partes a uma paz duradoura e justa que proteja todas as vidas humanas e garanta a segurança e a sustentabilidade a longo prazo no Médio Oriente”.

Outras organizações cristãs, em várias partes do Mundo, também aproveitam a Quaresma para realizarem peregrinações pela “via dolorosa da solidariedade”, em que os passos da Paixão de Cristo são inspiração para a proximidade às vítimas da guerra na Palestina.

“A nossa oração é que, nesta Quaresma, ao meditarmos na vida e na Paixão de Jesus, possamos aprofundar a nossa solidariedade com o que os nossos irmãos e irmãs palestinianos vivem diariamente”, refere um dos sites promotores, vincando: “Estamos empenhados em levar a sério o duro testemunho do corpo de Cristo na Palestina sobre a verdade do que está a acontecer”.

Tal como as organizações israelitas de defesa dos direitos humanos e os grupos pacifistas judeus, também eles querem afirmar, com rigor, que aquilo a que os Palestinianos estão a ser sujeitos se enquadra na definição de apartheid e de ocupação militar. Acolhendo o saber dos especialistas que, na esmagadora maioria, identificam a intenção genocida na guerra em curso, estão empenhados na sua prevenção. Como Jesus ensina, tentam que o ‘sim’ signifique ‘sim’ e falar a verdade. Fazem-no, seguindo o exemplo de tantos Palestinianos, incluindo os cristãos, que têm estado na linha da frente do movimento não-violento, apelando a um cessar-fogo duradouro e ao fim da ocupação, para que possa começar uma paz reparadora.

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As lideranças de organizações de diferentes religiões terminaram, a 21 de fevereiro, junto à Casa Branca, uma peregrinação de oito dias para pressionar Biden a exigir de Israel o cessar-fogo na Faixa de Gaza. A caravana pelo fim desta guerra, que reuniu líderes religiosos, ativistas e artistas, começou a 14 de fevereiro e fez paragem, no percurso, em várias cidades dos EUA.

Foram organizadores o Conselho Nacional das Igrejas de Cristo nos EUA; Rabbis pelo Cessar-Fogo, Fé para as Vidas Negras; e o Capítulo de Filadélfia do Conselho para as Relações Americano-Islâmicas. E contou com o apoio de dezenas de organizações, como a Voz Judaica para a Paz, a Fundação do Instituto Árabe-Americano, a Pax Christi dos EUA; os Aliados Judaico-Cristãos para uma Paz Justa em Israel e Palestina e o Ano-Violência Internacional.

Em proclamação citada pela Pressenza – International Press Agency –, os organizadores pediam a Joe Biden e ao Congresso que “deixem de financiar o armamento de Israel e dediquem os seus esforços a aumentar a ajuda humanitária à Palestina”. “É nossa responsabilidade coletiva advogar por uma solução pacífica e defender os princípios da justiça e da compaixão. Ou semeamos sementes de não-violência hoje, ou colheremos a inexistência amanhã”, vincaram.

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Também o secretário-geral do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), Jerry Pillay, se empenhou, a 100%, na que designou de “missão especial”. Este líder, que representa 352 igrejas protestantes, ortodoxas, anglicanas e evangélicas em todo o Mundo, esteve em Israel e na Palestina, para “tornar mais forte” e audível o apelo “por uma paz justa” na região. Para isso, reuniu-se com líderes religiosos, sociais, e políticos, destacando-se um encontro com o presidente palestiniano, Mahmoud Abbas e outro com o Presidente israelita, Isaac Herzog.

Abbas garantiu que “o seu governo está preparado para participar em processos de diálogo com o governo israelita, a fim de estabelecer um futuro pacífico e estável para todas as pessoas”. E alertou, em particular, para a “necessidade de obrigar Israel a parar os ataques a santuários e a propriedades islâmicas e cristãs em Jerusalém Oriental e na Cisjordânia”. E, elogiando os esforços do CMI para “apoiar o povo palestiniano na conquista da sua liberdade e independência”, sublinhou “a urgência imediata de um cessar-fogo”. Isaac Herzog, por sua vez, concordou com a “importância de trabalhar para um cessar-fogo e do papel das religiões na ajuda à criação de um Mundo em que existam paz, segurança e proteção para todas as pessoas e para a criação”.

Em conversa  “muito franca, justa e cordial”, Pillay expressou a sua preocupação com a perda de mais de 27 mil vidas em Gaza, na maioria mulheres e crianças, reiterou que a violência e as guerras não são a solução para nenhum problema e frisou a necessidade de diálogo para acabar com a guerra e criar um futuro melhor para os povos de Israel e da Palestina.

Também levantou questões conexas com a liberdade de religião e da prática religiosa, evocando um relatório sobre as restrições adicionais previstas pelo governo israelita no Ramadão. Referiu a informação partilhada em encontro de chefes de Igrejas na Terra Santa sobre o tratamento desrespeitoso aos cristãos da parte de jovens extremistas israelitas, o que o presidente israelita reconheceu e que censurou por “inaceitável”, estando o caso a ser abordado.

Partilhando a preocupação com o bloqueio da ajuda humanitária, foi-lhe garantido que as necessidades de ajuda estão a ser atendidas pelo governo e por organizações israelitas.

No final desta “missão especial” – que incluiu encontros com os dois chefes de Estado, o encontro com os patriarcas e chefes das Igrejas em Jerusalém, a visita à Igreja do Santo Sepulcro, um almoço no Clube de Escuteiros Árabes Católicos, a reunião com o Comité Cristão Internacional, e um encontro com o xeque Azzam Khatib, diretor do Waqf Islâmico em Jerusalém –, reconheceu que “não é uma tarefa fácil encontrar soluções viáveis ​​e justas” para o conflito.

Porém, avisa que a violência não dará paz e insta a que as potências envolvidas procurem o cessar-fogo imediato e iniciem diálogos para estabelecer paz, segurança e proteção justas em Israel e na Palestina. E apela à comunidade internacional, mormente aos líderes políticos, a que apoiem estes esforços e ajam com urgência.

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Entretanto, Joe Biden dizer acreditar num cessar-fogo e ter advertido Israel para excessos cometidos, mas mantém o apoio logístico e diplomático. Por outro lado, era bom que os decisores, que não deviam precisar das religiões para fazerem a paz, fossem sensíveis a esta movimentação religiosa pela paz.

2024.02.28 – Louro de Carvalho

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Foi aprovada lei para restaurar 90 % dos habitats da UE

 

O Parlamento Europeu (PE) aprovou a Lei da Recuperação da Natureza, a 27 de fevereiro, em sessão plenária, em Estrasburgo, apesar da contestação dos grupos de direita e dos agricultores.

A lei passou com 329 votos a favor, 275 contra e 24 abstenções, uma margem maior do que a inicialmente esperada. O resultado suscitou aplausos e vivas da parte dos socialistas e dos verdes, enquanto os colegas de direita se mantiveram em silêncio.

Será, agora, adotada pelo Conselho, antes de ser publicada no Jornal Oficial da União Europeia (UE), entrando em vigor 20 dias após a sua publicação.

A lei, que foi enfraquecida nas negociações com os governos dos 27 Estados-membros,  será apreciada pelo Conselho da UE, que reúne os ministros da UE com esta tutela, para votação final.

Mais de 80 % dos habitats europeus (tanto terrestres como marinhos) encontram-se em mau estado. Por isso, a 22 de junho de 2022, a Comissão Europeia propôs o Regulamento de Restauro da Natureza, para contribuir para a regeneração, a longo prazo, da Natureza danificada, nas zonas terrestres e marítimas da UE, para alcançar os objetivos da União, em matéria de clima e de biodiversidade, bem como para cumprir os seus compromissos internacionais, nomeadamente o Quadro Mundial das Nações Unidas para a Biodiversidade, de Kunming-Montreal. Com efeito, segundo a Comissão, a nova lei trará benefícios económicos significativos, uma vez que, por cada euro investido, resultarão benefícios de, pelo menos, oito euros.

O Regulamento Restauro da Natureza, acordado com os Estados-membros, visa a regeneração dos ecossistemas degradados em toda a UE, ajudar a alcançar os seus objetivos em matéria de clima e biodiversidade, bem como reforçar a segurança alimentar.

Por outro lado, dá resposta às expectativas dos cidadãos em matéria de proteção e restauro da biodiversidade, da paisagem e dos oceanos, expressas nas propostas 2.1, 2.3, 2.4 e 2.5 das conclusões da Conferência sobre o Futuro da Europa, que se realizou através de plataforma online, de 19 de abril de 2021 a 9 de maio de 2022, de que se fizeram relatórios intermédios e o relatório final, publicado em maio de 2022. Tais propostas são, respetivamente:

- Criar, restaurar, gerir melhor e alargar as áreas protegidas – para conservar a biodiversidade;

- Reforçar o papel dos municípios no planeamento urbano e na construção de novos edifícios de apoio a infraestruturas azuis e verdes, evitar e pôr termo a maior impermeabilização das terras e dos espaços verdes obrigatórios nas novas construções, a fim de promover a biodiversidade e as florestas urbanas;

- Proteger os insetos, em especial os indígenas e polinizadores, nomeadamente através da proteção contra espécies invasoras e de uma melhor aplicação da regulamentação em vigor;

- Apoiar a reflorestação, a florestação, incluindo as florestas perdidas por incêndios, a aplicação de uma gestão florestal responsável e apoiar uma melhor utilização da madeira, em substituição de outros materiais, bem como definir objetivos nacionais vinculativos em todos os Estados‑membros da UE para a reflorestação de árvores autóctones e da flora local, tendo em conta as diferentes situações e especificidades nacionais.

A nova legislação visa reabilitar, logo que possível, pelo menos 20%, das áreas terrestres e marítimas da UE, até 2030; pelo menos 30 % dos habitats em mau estado (desde florestas, prados e zonas húmidas a rios, lagos e leitos de corais); até 2030; 60 %, até 2040; e 90 % de todos os ecossistemas degradados, até 2050. E estabelece obrigações e objetivos em diferentes domínios de ação, tais como as terras agrícolas, os polinizadores, os rios, as florestas e as zonas urbanas, para inverter, gradualmente, os danos ambientais causados pelas alterações climáticas e pela atividade humana.

Em consonância com a posição do PE, os Estados-membros devem priorizar as zonas Natura 2000, até 2030. E, uma vez em boas condições, devem assegurar que uma zona não se deteriore significativamente, bem como adotar planos nacionais de restauro que especifiquem a forma como tencionam alcançar essas metas.

Para melhorar a biodiversidade nos ecossistemas agrícolas, os Estados-membros têm de fazer progressos em dois dos três indicadores seguintes: o Índice de Borboletas dos Prados; a percentagem de terras agrícolas com elementos paisagísticos de grade diversidade; as reservas de carbono orgânico em solos agrícolas minerais. Devem também tomar medidas para aumentar o índice de aves comuns de terras agrícolas, visto que as aves são bons indicadores do estado global da biodiversidade.

Uma vez que o restauro das turfeiras drenadas é uma das formas mais eficazes, em termos de custos, de reduzir as emissões no setor agrícola, os Estados-membros devem restaurar, pelo menos, 30 % das turfeiras drenadas até 2030 (pelo menos um quarto deve ser re-humidificado), 40 %, até 2040, e 50 %, até 2050 (em que, pelo menos, um terço deve ser re-humidificado). A re-humidificação continuará a ser voluntária para os agricultores e proprietários privados de terras.

A lei prevê um travão de emergência, conforme solicitado pelo PE, para as metas para os ecossistemas agrícolas poderem ser suspensas em circunstâncias excecionais, como a redução drástica das terras necessárias para suficiente produção alimentar para o consumo da UE.

A legislação estipula, igualmente, uma tendência positiva em vários indicadores nos ecossistemas florestais e a plantação de mais três mil milhões de árvores. Os Estados-membros terão também de restaurar, pelo menos, 25 mil quilómetros do curso natural de rios e de garantir que não há perda líquida na área nacional total de espaço verde urbano e de coberto arbóreo urbano.

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Apresentado, como ficou dito, pela primeira vez, pela Comissão Europeia, em junho de 2022, ganhou mais importância após o acordo histórico sobre biodiversidade selado na COP15 (Nações Unidas). No entanto, em 2023, a lei tornou-se alvo de uma campanha de oposição por parte dos conservadores, nomeadamente do Partido Popular Europeu (PPE), a maior formação do PPE. Este grupo alegou que a lei ameaçaria a subsistência dos agricultores europeus, perturbaria cadeias de abastecimento há muito estabelecidas, diminuiria a produção alimentar, faria subir os preços para os consumidores e até destruiria áreas urbanas para dar lugar a espaços verdes.

Os argumentos foram contestados por grupos de esquerda, pela Comissão Europeia, por dezenas de organizações não-governamentais, por milhares de cientistas do clima, pela indústria das energias renováveis e por grandes empresas como a IKEA, a H&M, a Iberdrola, a Unilever, a Nestlé e a Danone. Os contestatários da argumentação do PPE insistiram que o objetivo de recuperar a natureza era compatível com a atividade económica e essencial para garantir a viabilidade, a longo prazo, dos solos europeus.

A tentativa de fazer descarrilar a posição comum do PE, liderada pelo PPE, fracassou em julho, depois de um punhado de conservadores se ter rebelado e quebrado as fileiras para votar a favor. Os eurodeputados puderam, assim, encetar negociações com o Conselho da UE e chegar a um acordo provisório, em novembro, que se esperava fosse aprovado por ambas as instituições.

No entanto, a eclosão, em janeiro deste ano, de protestos de agricultores em toda a Europa revigorou a reação contra o Pacto Ecológico Europeu, uma vez que o setor agrícola culpou diretamente os regulamentos ambientais do bloco pela carga burocrática excessiva.

A Lei da Recuperação da Natureza foi mais uma vez atirada para o centro da tempestade política.

“Continuamos a acreditar que a Lei da Recuperação da Natureza está mal redigida e nunca esteve à altura da tarefa que temos pela frente”, afirmou Manfred Weber, líder do PPE, antes da votação, acrescentando: “A inflação é, atualmente, impulsionada pelo aumento dos preços dos alimentos nos supermercados. Temos de pedir aos nossos agricultores que produzam mais e não menos para estabilizar a inflação.”

Pedro Marques, eurodeputado português dos Socialistas e Democratas (S&D), rebateu as afirmações e acusou os conservadores de espalharem “desinformação”. “Esta ideia de que estão a votar [contra a lei], porque se preocupam com os agricultores é absolutamente inaceitável. Isto é apenas populismo. Isto é enganar os europeus e certamente os nossos agricultores”, observou Marques, vincando: “Negar o Pacto Ecológico, negar a emergência climática não é certamente a forma de resolver os nossos problemas.”

A sobrevivência da lei é  vital para o Pacto Ecológico Europeu, que está sob crescente pressão dos partidos de direita e liberais, do setor agrícola e das associações industriais. No início do mês de fevereiro, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, decidiu retirar um projeto de lei polémico que visava reduzir para metade a utilização e os riscos dos pesticidas até 2030. “Só se os nossos agricultores puderem viver da terra, é que poderão investir no futuro. E, só se atingirmos, juntos, os nossos objetivos climáticos e ambientais é que os agricultores poderão continuar a ganhar a vida. Os nossos agricultores estão bem cientes disso. Devemos confiar mais neles”, afirmou a presidente da Comissão.

Por isso, o texto do Regulamento prevê que algumas disposições relativas aos ecossistemas agrícolas podem ser temporariamente suspensas em circunstâncias excecionais.

Não obstante, é de encarecer a referência do relator César Luena (S&D, da Espanha), após a votação: “Hoje é um dia importante para a Europa, uma vez que passamos da proteção e conservação da natureza para o seu ‘restauro’. A nova legislação vai ajudar-nos também a cumprir muitos dos nossos compromissos internacionais em matéria de ambiente. O Regulamento restabelecerá ecossistemas degradados, respeitando simultaneamente o setor agrícola, ao permitir flexibilidade aos Estados-membros. Gostaria de agradecer aos cientistas, por fornecerem as provas científicas e combaterem a negação climática, bem como aos jovens, por nos terem recordado que não existe planeta B nem plano B.”  

Por seu turno, a eurodeputada portuguesa Sara Cerdas (S&D) considera que o PE “fez História” ao aprovar a Lei do Restauro da Natureza. “É uma excelente notícia, para a União Europeia (UE), para o resto do Mundo e para todos”, disse a eurodeputada à Lusa, no dia em que os eurodeputados aprovaram a Lei. A Lei, salientou Sara Cerdas, a única portuguesa efetiva na Comissão de Ambiente, da Saúde Pública e da Segurança Alimentar (ENVI), estabelece um objetivo de recuperação de, pelo menos, 20% das zonas terrestres e marítimas até 2030 e de todos os ecossistemas que necessitem até 2050. E prevê que os 27 Estados-membros da UE devem recuperar, pelo menos, 30% dos habitats em mau estado até 2030, 60% até 2040 e 90% até 2050.

Fruto de “negociações intensas” entre o PE e o Conselho Europeu, a lei “não está longe” da proposta da Comissão de 2022, disse a eurodeputada, salientando que o grupo europeu de que o Partido Socialista (PS) faz parte queria uma proposta “mais ambiciosa”. Porém, enfatizou: “Fizemos História. […] É uma lei muito importante, hoje temos 81% dos ecossistemas da UE em mau estado. […] E é também uma resposta no combate às alterações climáticas.”

Nas declarações à Lusa, a eurodeputada criticou a posição, contra a lei, do grupo PPE e referiu que, para melhorar a biodiversidade nos ecossistemas agrícolas, os Estados-membros terão de fazer progressos em dois dos três indicadores seguintes: o índice de borboletas das pastagens, a percentagem de terras agrícolas com caraterísticas paisagísticas de elevada diversidade e a reserva de carbono orgânico no solo mineral das terras de cultivo.

Questionada pela Lusa sobre o porquê da dificuldade em haver consenso na proteção e restauro da Natureza, respondeu apenas: “É porque a natureza não vota, não dá votos.”

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Entretanto, os agricultores não estão satisfeitos com as respostas da UE às suas reivindicações – veem a vida andar para trás – e a UE tem o dilema entre a resolução do problema ecológico e climático e a da agricultura. Saberá encontrar um desfecho satisfatório?

2024.02.27 – Louro de Carvalho

Parlamento húngaro ratificou a adesão da Suécia à NATO

 

A 26 de fevereiro, o primeiro-ministro da Suécia, Ulf Kristersson, recebeu, por telefone, na sede do governo, em Estocolmo, a informação de que o parlamento húngaro votou “sim”, para ratificar a adesão da Suécia à Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), o passo final necessário para aquele país nórdico que deseja aderir à Aliança Atlântica, desde a invasão russa da Ucrânia. Subsequentemente, Ulf Kristersson afirmou que a Suécia está “pronta para assumir as suas responsabilidades” na NATO.

“Hoje é um dia histórico”, escreveu o chefe do executivo sueco na rede social X (antigo Twitter).

A candidatura de Estocolmo foi aprovada por uma esmagadora maioria de deputados (188 votos em 199 lugares), após quase dois anos de espera.

Após a ratificação, há um mês, pelo parlamento turco, a Hungria era o último dos 31 membros da NATO que ainda não tinha aprovado a entrada da Suécia, num processo que começou há quase dois anos e que, até agora, era bloqueado apenas por estes dois países.

Esta decisão pôs fim a mais de 18 meses de atrasos da parte do governo nacionalista de Budapeste, que frustraram os aliados. Com efeito, a ratificação pelo parlamento húngaro, onde o Fidesz do primeiro-ministro, Viktor Orbán, tem maioria de dois terços, foi adiada, por várias vezes, tendo os deputados deste partido justificado o atraso, por exemplo, com as críticas “injustas” da Suécia à política e à deriva democrática na Hungria, também denunciada pela União Europeia (UE).

A 23 de fevereiro, Orbán tinha anunciado, em conferência de imprensa junto do homólogo sueco, a reunião do parlamento, no dia 26, para tomar “as decisões necessárias, que encerrarão esta fase”.

O anúncio da visita do primeiro-ministro sueco a Budapeste ocorreu pouco depois de os deputados do Fidesz terem anunciado, a 20 de fevereiro, na capital da Hungria que tinham pedido ao presidente do parlamento que incluísse o assunto na ordem do dia.

Na mesma conferência de imprensa, Orbán revelou ainda a compra de quatro aviões de combate à Suécia, demonstrando o desejo de cooperação militar reforçada. “Hoje [dia 23 de fevereiro], chegámos a um acordo para adicionar quatro aeronaves à frota de caças-bombardeiros Gripen das Forças de Defesa Húngaras”, além das 14 já operadas em regime de arrendamento desde 2006, declarou, acrescentando que também foram assinados acordos conexos com a manutenção e prestação de serviços destes aparelhos. É a demonstração do desejo de uma cooperação militar reforçada entre os dois países.

Neste sentido, o primeiro-ministro húngaro advertiu que esta operação não se relaciona com a ratificação da entrada da Suécia na NATO e afirmou que restaurar a confiança entre os dois países tem sido um processo longo, mas reconheceu que a aquisição dos caças “contribuirá para a restabelecer”. Por sua vez, Kristersson evitou criticar a Hungria e afirmou, que quando um país pede para ser membro da NATO, sabe que o pedido tem de ser ratificado por todos os países. “Respeitamos que o parlamento húngaro tenha tomado a sua decisão de forma mais lenta”, frisou, anunciando que os dois países continuarão a procurar pontos de cooperação e vincando que a Hungria e a Suécia, apesar das diferenças, são parceiros na UE “e, em breve, na NATO”.

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Reagindo, o secretário-geral da NATO afirmou que a Suécia tornará a Aliança Atlântica “mais forte e segura”, depois de o parlamento do último país aliado a ratificar a adesão, a Hungria, ter concluído o processo. “Congratulo-me com o voto do parlamento húngaro para ratificar a adesão da Suécia à NATO. Agora que todos os Aliados a aprovaram, a Suécia tornar-se-á o 32.º Aliado da NATO. A adesão da Suécia tornar-nos-á a todos mais fortes e mais seguros”, escreveu Jens Stoltenberg na conta pessoal na rede social X (antigo Twitter).

Tanto a Finlândia como a Suécia solicitaram conjuntamente a adesão à Aliança no seguimento da invasão da Ucrânia pela Rússia, em fevereiro de 2022.

A Finlândia tornou-se membro de pleno direito da NATO a 4 de abril de 2023 – o que mais do que duplicou a fronteira da Aliança com a Rússia –, mas a Turquia e a Hungria mantiveram o seu veto em relação à Suécia. Ancara, que tinha acordado compromissos de segurança com Helsínquia e Estocolmo, tinha dúvidas sobre o envolvimento sueco na luta contra o alegado terrorismo curdo.

Agora que se chegou a um consenso entre todos os países para que a Suécia se torne membro de pleno direito da Aliança e beneficie de defesa coletiva em caso de ataque, há ainda algumas etapas administrativas a cumprir.

A Suécia deve depositar o protocolo de adesão junto dos Estados Unidos da América (EUA), que ficará à guarda do Departamento de Estado norte-americano, em Washington. E, como final simbólico, a bandeira da Suécia será hasteada numa cerimónia na sede da NATO, em Bruxelas, juntamente com as dos outros 31 aliados.

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O chanceler alemão, Olaf Scholz, o presidente francês, Emmanuel Macron, e o primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, saudaram, de imediato, a adesão da Suécia à NATO.

“O caminho está livre para a Suécia na NATO, é uma vitória para todos [...]. Esta decisão reforça a nossa aliança de defesa e, com ela, a segurança da Europa e do Mundo”, declarou Scholz, numa mensagem publicada na rede social X (antigo Twitter).

“Parabéns ao vosso país”, disse Macron, na abertura de uma conferência de apoio à Ucrânia organizada no Palácio do Eliseu (sede da Presidência francesa) com mais de 20 dirigentes europeus, congratulando-se com o facto de a Suécia e, antes dela, a Finlândia terem aderido à NATO, o bloco de defesa ocidental.

Por sua vez, o chefe do governo britânico, Rishi Sunak, classificou o dia de hoje [dia 26] como “um dia histórico” para a NATO, após a ‘luz verde’ do parlamento da Hungria à adesão da Suécia, o único obstáculo que faltava ultrapassar para a sua entrada na Aliança Atlântica.

“Mal podemos esperar por vos acolher na NATO muito em breve”, escreveu o primeiro-ministro britânico na rede social X (antigo Twitter).

O chefe da diplomacia da UE, Josep Borrell, saudou a entrada da Suécia na NATO, garantindo que fortalecerá quer o bloco, quer a Aliança Atlântica, além de promover a parceria estratégia entre ambas as partes. “Vinte e três Estados-membros da UE farão agora parte da Aliança. Isto fortalece a UE e a NATO e promove a parceria estratégica UE-NATO”, realçou Borrell, através das redes sociais, após a aprovação da adesão de Estocolmo pelo parlamento húngaro, último passo para completar o processo.

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A Suécia tem-se mantido afastada de alianças militares há mais de 200 anos e há muito que excluiu a possibilidade de aderir à NATO. Porém, após a invasão, em grande escala, da Ucrânia pela Rússia, em fevereiro de 2022, a Suécia abandonou a sua política de não-alinhamento, quase de um dia para o outro, e decidiu candidatar-se à adesão à aliança juntamente com a Finlândia.

Tanto a Suécia como a Finlândia, que aderiram à aliança militar em 2023, já tinham desenvolvido fortes laços com a NATO após o fim da Guerra Fria, mas a opinião pública manteve-se firmemente contra a adesão plena até à guerra na Ucrânia.

O não-alinhamento era visto como a melhor forma de evitar tensões com a Rússia, o seu poderoso vizinho na região do mar Báltico. Contudo, a agressão russa provocou uma mudança radical em ambos os países, com as sondagens a mostrarem um aumento do apoio à adesão à NATO.

Os partidos políticos da Finlândia e da Suécia decidiram que precisavam das garantias de segurança que só a adesão plena à aliança liderada pelos EUA lhes oferece.

A inclusão da Suécia deixará o mar Báltico quase rodeado de países da NATO, reforçando a aliança numa região estrategicamente importante, pois o mar Báltico é o ponto de acesso marítimo da Rússia à cidade de S. Petersburgo e ao enclave de Kaliningrado.

As forças armadas da Suécia, apesar de fortemente reduzidas desde a Guerra Fria, são vistas como um potencial reforço da defesa coletiva da NATO na região. Os suecos, que têm uma força aérea e uma marinha modernas, comprometeram-se a aumentar as despesas com a Defesa para atingir o objetivo da NATO de 2% do produto interno bruto (PIB). E, tal como as forças armadas finlandesas, as suecas, têm participado, durante anos, em exercícios conjuntos com a NATO.

Dada a nova disponibilidade da opinião pública da população da região do mar Báltico, não é de estranhar que Moscovo tenha reagido negativamente à decisão da Suécia e da Finlândia de abandonarem o não-alinhamento e quererem aderir à NATO e que tenha alertado para contramedidas não especificadas. Efetivamente, a Rússia afirmou que a medida afeta, negativamente, a situação de segurança no Norte da Europa, que “tinha sido, anteriormente, uma das regiões mais estáveis do Mundo”.

No início deste ano, o principal comandante militar da Suécia, o general Micael Bydén, considerou que todos os Suecos deveriam preparar-se, mentalmente, para a possibilidade de guerra e, a 19 de fevereiro, Thomas Nilsson, chefe do serviço de inteligência externa da Suécia, MUST, frisou que “a situação continuou a deteriorar-se durante 2023”. “No caso de adesão à NATO, temos de ter a capacidade, através de uma aliança, de contrariar uma Rússia imprevisível”, afirmou o MUST, na sua avaliação. No entanto, tanto a Suécia como a Finlândia alertaram para um risco acrescido de interferência russa e de ataques híbridos.

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Ainda não estava concluída a adesão à NATO, já a Suécia se propunha enviar cerca de mil soldados para se juntarem aos exercícios militares da NATO, uma força que foi colocada na Letónia, onde a NATO esteve a preparar um acampamento para abrigar as primeiras tropas enviadas pelo novo aliado.

Assim, verifica-se que, depois de permanecer, durante décadas, como país neutral, a Suécia, sem ter finalizado sua adesão, já estava a operar ativamente dentro dos quadros da Aliança Atlântica.

Assim, Estocolmo preparava-se para enviar para a Letónia uma unidade mecanizada que reúne um batalhão de cerca de 600 a 800 soldados e blindados pesados. Esta força integra a “Presença Avançada Reforçada” da NATO, liderada pelo Canadá e será a primeira linha de defesa contra a potencial invasão russa nos países bálticos.

O batalhão sueco junta-se a uma rotação de seis meses com outro batalhão dinamarquês composto com o mesmo número de soldados. O acampamento em construção poderá abrigar 1200 militares.

Fosse qual fosse o resultado da votação de adesão de Estocolmo na Hungria e na Turquia, a Suécia já se tinha alistado como participante de pleno direito nas manobras militares “Steadfast Defender 2024”, o maior exercício militar da Aliança desde a Guerra Fria que está a mobilizar mais de 90 mil soldados em diferentes países da NATO.

Fuzileiros navais dos EUA aprimoram habilidades de esqui no Norte da Noruega, como parte dos exercícios da NATO que estão a decorrer desde 22 de janeiro e vão durar até maio deste ano.

Os comandantes dos EUA asseguram que a experiência adquirida no gélido inverno de Finnmark ajudará as tropas a estarem mais preparadas em condições extremas. Os fuzileiros recebem treino constante em diferentes cenários como deserto, montanha ou selva.

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Contra o acordado em 1991, a NATO controla, praticamente, metade da Europa (grande parte dos antigos países do Leste europeu), no que a UE quer participar, e toda a América do Norte, tal como domina, frente à Rússia, a região do Ártico, uma ambição ocidental, mercê do degelo oceânico. Tal postura geoestratégica revelar-se-á eficaz ou não passará de provocação à Rússia, de consequências imprevisíveis. Tudo dependerá, também, do desfecho do impasse na Ucrânia.      

2024.02.26 – Louro de Carvalho

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Escutar Jesus é a via para encontrar a Vida em abundância

 

Em tempo da Quaresma, a Palavra de Deus encaminha-nos para a Páscoa de Jesus, que é também a nossa. E o Evangelho do segundo domingo propõe-nos a claridade da luz de Deus e a escura do Filho muito amado de Deus

O Evangelho de Marcos (Mc 9,2-10), pelo relato da Transfiguração do Senhor, apresenta-nos uma catequese sobre Jesus, o Filho amado de Deus, que realiza o seu (e do Pai) desígnio libertador em favor dos homens, através do dom da vida. Aos discípulos, desanimados e assustados, Jesus garante que a rota do dom da vida não conduz ao fracasso, mas à Vida plena e definitiva.  

Marcos situa o episódio num momento charneira da atividade de Jesus: a fase final da etapa da Galileia, antes de Jesus se dirigir para Jerusalém.

Após o êxito inicial da sua pregação, Jesus sente, cada vez mais, a resistência dos líderes religiosos ao anúncio do Reino. Pouco antes da transfiguração, fariseus e doutores da Lei tinham criticado a liberdade de Jesus, face às tradições religiosas; e Jesus tinha-os acusado de se preocuparem com ritos externos e de não com o essencial. A seguir, os fariseus tinham exigido de Jesus um sinal de que agia em nome de Deus; e Jesus tinha recusado. Enfim, o judaísmo não iria aceitar Jesus.

Aos discípulos isto levantava questões inquietantes. Viam Jesus como o Messias que Israel esperava, mas as autoridades estavam contra Ele e não Lhe davam crédito. E a dúvida era se tinham errado, ao crerem em Jesus e se disporem a andar com Ele.

Tudo se complica no momento em que Jesus lhe comunica a decisão de se dirigir para Jerusalém e os avisa de que lá iria sofrer muito e ser morto pelas autoridades (acrescenta que ressuscitaria, depois de três dias, mas os discípulos não sabiam o que significa isso). Pedro ousa contestar a decisão de Jesus e Jesus convida-o a pôr-se no seu lugar de discípulo e a não ser obstáculo ao projeto de Deus. E, antes de começar a caminhar para Jerusalém, insta cada um a renegar-se a si mesmo, a “tomar a cruz” e a segui-Lo no caminho do dom da vida até à morte.

Perante a instalação da dúvida amarga, Jesus houve por bem revitalizar o ânimo dos discípulos. Chamou Pedro, Tiago e João – o núcleo duro do colégio apostólico – e convidou-os a subir com Ele a um monte. Iriam ser confrontados com o fundamento do caminho proposto por Jesus.

A narrativa é uma teofania (manifestação de Deus). Assim, o narrador põe no quadro os ingredientes das teofanias do imaginário judaico (que se encontram quase sempre nos relatos teofânicos veterotestamentários): o monte, as aparições, as vestes brilhantes, a nuvem, a voz que vem do céu e o medo e a perturbação dos que experienciam o encontro com o divino. E a catequese estrutura-se sobre símbolos veterotestamentários: o monte; a mudança do rosto e as vestes brilhantes; a nuvem; Moisés e Elias; o temor e a perturbação; e a voz de Deus.

O monte, não identificado (a tradição aponta o Tabor), situa-nos num contexto de revelação: é no monte que Deus Se revela; e foi no monte (o Sinai) que faz aliança com o Povo e dá a Moisés as tábuas da Lei.

A mudança do rosto e as vestes brilhantes e brancas evocam o resplendor de Moisés, ao descer do Sinai, após o encontro com Deus e a receção das tábuas da Lei. E o branco é a cor de Deus. Por isso, estamos no âmbito do divino.

A nuvem indica a presença de Deus: era nela que Deus Se ocultava e era a partir dela que Deus conduzia o Povo ao longo da caminhada pelo deserto, em direção à Terra Prometida.

Moisés e Elias representam a Lei e os Profetas (que figuram Jesus e que permitem entendê-Lo) e são personagens que, para a catequese judaica, apareceriam no “dia do Senhor”, quando se manifestasse a salvação definitiva.

O temor e a perturbação dos discípulos são a reação natural de homem ou mulher, ante a grandeza, a omnipotência e a majestade de Deus.

Porém, o elemento de excelência é a voz que vem da nuvem (onde Deus se oculta). Essa voz” dirige-se aos discípulos e declara solenemente: “Este é o meu Filho muito amado”. O próprio Deus apresenta Jesus e garante que Ele é o Filho amado que veio ao encontro dos homens com um mandato do Pai. E o testemunho de Deus completa-se com um imperativo: “Escutai-o”. Os discípulos ficam assim prevenidos de que devem escutar e acolher as indicações de Jesus, sem mais hesitações e medos, em cada passo do caminho.

Marcos tomou estes elementos, amassou-os e construiu a sua catequese. Nela, Jesus é apresentado, antes de mais, como o Filho amado de Deus, em quem se manifesta a glória do Pai. Ele não é visionário iludido e sem os pés assentes na terra, nem revolucionário, com sede de protagonismo que se aproveita, em benefício da sua ambição política, de um grupo de ingénuos. É o Filho amado de Deus, enviado aos homens para lhes dar a salvação e a Vida. Tudo o que diz e faz está conforme o plano de Deus. Os discípulos devem escutá-Lo e seguir as suas indicações, mesmo quando propõe o caminho difícil de dom da vida até às últimas consequências.

Jesus é o Messias libertador e salvador esperado por Israel, anunciado pela Lei (Moisés) e pelos Profetas (Elias). Ele veio concretizar as promessas de Deus ao longo da História da salvação.

Jesus é o novo Moisés, Aquele por quem Deus dá ao Povo a Nova Lei e faz a Nova Aliança. Da ação libertadora de Jesus, novo Moisés, nascerá o novo Povo de Deus que, guiado por Jesus, o caminhará pelo deserto da cruz até à Terra Prometida, onde encontrará Vida em abundância.

Sobre este quadro paira a luz da ressurreição. A glória de Deus que se manifesta em Jesus, as “vestes brilhantes, muitíssimo brancas” (que lembram a túnica branca do “jovem” sentado junto do túmulo de Jesus e que anuncia às mulheres a ressurreição) e a recomendação de Jesus (“que não contassem a ninguém o que tinham visto, enquanto o Filho do Homem não ressuscitasse dos mortos”) vêm nesse sentido. Os discípulos são, assim, convidados a olhar para lá da cruz e a descobrir que, no final, não está o fracasso, mas a ressurreição, a vida, a vitória sobre a morte. No entanto, eles ainda não estão preparados para entender o alcance de tudo isto (enquanto desciam do monte, discutiam “uns com os outros o que seria ressuscitar de entre os mortos”). Só o compreenderiam mais tarde, à luz da ressurreição de Jesus.

Todavia, mesmo sem compreenderem, os discípulos desceram do monte com outra perspetiva de Jesus e do seu plano. E, sem mais hesitações, foram atrás de Jesus para Jerusalém.

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Na primeira leitura (Gn 22,1-2.9a.10-13.15-18), sobressai a figura de Abraão como paradigma do crente. É o homem de fé inabalável, que vive na constante escuta de Deus, aceita os seus apelos e lhes responde com total obediência. Essa entrega a Deus é fonte de Vida e de bênção.

No início, surge o verbo que preside ao relato e define o sentido que os catequistas de Israel deram à narrativa: o verbo hebraico “nassah” (“pôr à prova”). No Antigo Testamento (AT), este verbo apresenta, não raro, as cambiantes “examinar”, “experimentar”, “testar”. Define, logo, o que está em jogo: Deus vai “submeter Abraão a um teste”. É frequente no AT a ideia de que Deus submete a provas o Povo ou personalidades, para Deus experimentar a fidelidade do Povo. São forma de Deus confirmar que a comunidade ou a pessoa é capaz de viver a relação de especial comunhão e intimidade com Ele. Porém, Abraão não sabe que está a ser testado.

A prova a que é submetido é dramática: Deus pede-lhe que tome Isaac, o seu único filho, e o ofereça em holocausto sobre um monte. Ora, Isaac não é só o filho único e amado de Abraão, embora isso bastasse para tornar a prova muito dura. Isaac é, também, o herdeiro da promessa que Deus, continuamente, renovou a Abraão, é a garantia do futuro, da numerosa descendência que irá tomar posse da terra, é a garantia das promessas que deram sentido à peregrinação de Abraão desde que Deus o mandou deixar a sua terra, a sua família e a casa de seus pais.

Abraão está ante um Deus que parece retomar o que dera e cuja palavra de agora parece desmentir a de outrora. É o absurdo da exigência que nega a História da Salvação; é o impasse, a obscuridade, o sofrimento em que Abraão de repente se acha; é o ser instado a atirar-se às cegas para caminho escuro e incompreensível.

Do princípio ao fim, Abraão não abre a boca, a não ser para dizer: “Aqui estou” – expressão de total disponibilidade diante de Deus. Não discute, não argumenta, não procura respostas para esse drama incompreensível que parece hipotecar tudo o que Deus lhe havia prometido. Age, apenas. Levanta-se de madrugada, prepara tudo para o holocausto, caminha. No monte do sacrifício, erige o altar, amarra a vítima e puxa do cutelo. O silêncio, a imediatez da resposta e a forma de agir mostram a entrega, a confiança total em Deus, a obediência até às últimas consequências.

Percorrido o longo e angustiante caminho da prova, chega e o momento em que Deus, pela voz do seu mensageiro, verifica o resultado: todo o comportamento de Abraão ao longo desta crise testemunha que ele “teme o Senhor”. Esta expressão – frequente no AT – significa a reverência e o respeito, bem como a pronta obediência à vontade divina, a confiança inamovível no Deus que não falha, a renúncia aos próprios critérios, a adesão incondicional à vontade de Deus.

O episódio termina com a referência à “recompensa” oferecida por Deus. A obediência de Abraão irá gerar plenitude de vida e de dons divinos (bênção), uma descendência numerosa “como as estrelas do céu ou como a areia que está na margem do mar” e a posse da terra. O mais interessante é a asserção de que a obediência de Abraão resultará em bênção para “todas as nações da terra”.

Nesta catequese, o objetivo não é dizer-nos quem é Deus e como Ele age. A história do sacrifício de Isaac destina-se, sobretudo, a propor-nos a atitude que o crente deve assumir diante de Deus. Abraão é apresentado como o protótipo do crente ideal, que sabe escutar Deus e acolher o seu plano com obediência incondicional, com total confiança. Mesmo que a proposta de Deus seja incompreensível ou que os seus desafios interfiram com os projetos do homem, o crente ideal deve acolher o plano de Deus e realizá-lo com fidelidade.  

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A segunda leitura (Rm 8,31b-34) lembra aos crentes que Deus os ama com um amor imenso e eterno. A melhor prova desse amor é Jesus Cristo, o Filho amado de Deus, que morreu para ensinar ao homem o caminho da vida.

Quando Paulo escreve aos Romanos, está a terminar a sua terceira viagem missionária e prepara-se para partir para Jerusalém. Terminado a sua missão no Oriente, queria levar o Evangelho ao Ocidente. Dirigindo-se, por carta, aos cristãos de Roma, estabelecer laços com eles e dá-lhes conta dos principais problemas que o ocupavam (entre os quais a questão da unidade, presente na comunidade cristã de Roma, afetada por alguns problemas de relacionamento entre judeo-cristãos e pagano-cristãos). Estamos no ano 57 ou 58.

Na primeira parte da Carta, o apóstolo faz notar aos cristãos divididos que o Evangelho é a força que congrega e salva todo o crente, sem distinção. Embora o pecado afete, como realidade universal, todos os homens, a justiça de Deus dá vida a todos, sem distinção; e é em Jesus Cristo que a vida se comunica e que transforma o homem. Batizados em Cristo, os cristãos morrem para o pecado e nascem para a vida nova. Passam a ser guiados pelo Espírito e tornam-se filhos de Deus; libertados do pecado e da morte, frutificam em santificação e caminham para a Vida eterna.

E, depois de desenvolver esta reflexão, Paulo celebra, com um hino, o amor salvador de Deus, em que os filhos e filhas de Deus fundamentam a sua esperança no triunfo final. O trecho em apreço é parte desse hino.

A razão para a esperança dos cristãos está na certeza que Deus ama todos os seus filhos com amor imenso e eterno. O envio ao Mundo de Jesus Cristo, o Filho único de Deus, que nos mostrou o caminho da vida plena e da felicidade sem fim, que lutou até à morte contra tudo o que oprimia e escravizava o homem, é a prova do imenso amor de Deus por nós.

Ora, se Deus nos ama tão intensa e totalmente, não há lugar para o medo. Ninguém ousará acusar-nos, condenar-nos ou fazer-nos mal. O próprio Deus, com o coração inundado de amor, “justifica-nos”, isto é, pronuncia sobre nós o veredicto de graça e de perdão, apesar de o não merecermos.

Jesus não nos condena, pois morreu para nos libertar e está ao lado de Deus a interceder por nós. O amor que nos dedica iguala o amor do Pai. Assim, enfrentamos a vida com serenidade e esperança, confiando totalmente no amor de Deus. E celebramos a Vida!

2024.02.25 – Louro de Carvalho