segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

A religião de Deus pretende amar e unir – diz Bahá’u’lláh

 

Celebrou-se, a 4 de fevereiro, o Dia Internacional da Fraternidade Humana, criado pela Resolução 75/200 da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), a 21 de dezembro de 2020, com o principal objetivo de “promover a tolerância e o diálogo entre povos de diferentes religiões e culturas e de destacar o contributo de cada uma para a Humanidade”.

É também o seu escopo “sensibilizar para a necessidade de políticas que satisfaçam este propósito, especialmente na educação das crianças e dos jovens, sobretudo numa altura em que o discurso de ódio tem vindo a fazer parte da agenda política”.

A instituição desta virtuosa efeméride é sinal do reconhecimento internacional do “Documento Fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum”, assinado pelo Papa Francisco e pelo Grande Imã de Al Azhar, Ahmed Al Tayyeb, a 4 de fevereiro de 2019.

A ideia de fraternidade sempre esteve presente na História humana, embora adquirindo significados diferentes ao longo do tempo, mas sempre como vínculo de afetos e de partilha entre um grupo ou comunidade. Se, no início, o vínculo se restringia ao meio familiar, entre irmãos descendentes da mesma família, a História bíblica atribui-lhe significado mais universal.

Recorda o Papa, na encíclica Fratelli Tutti (FT): “Nas tradições judaicas, o dever de amar o outro e de cuidar dele parecia limitar-se às relações entre os membros de uma mesma nação. O antigo preceito ‘amarás o teu próximo como a ti mesmo’ (Lv 19,18) entendia-se como referido aos compatriotas. Todavia, especialmente no Judaísmo que se desenvolveu fora da terra de Israel, as fronteiras foram-se ampliando. Aparece o convite a não fazer aos outros o que não queres que te façam a ti (cf Tb 4,15). E a propósito dizia, no século I (a.C.), o sábio Hillel: ‘Isto é a Lei e os Profetas. Todo o resto é comentário’. O desejo de imitar o comportamento divino levou a superar a tendência de limitar o amor aos mais próximos: ‘A compaixão do homem tem por objeto o próximo, mas a misericórdia divina estende-se a todo o ser vivo’ (Sir 18,13)” (FT n.º 59).

Se, no início, o conceito de próximo excluía o estrangeiro, a evolução da ideia e o alargamento de fronteiras gerou a inclusão do estrangeiro como filho do mesmo Pai. E o cristianismo deu-lhe o estatuto de universalidade: “O que quiserdes que vos façam os homens, fazei-o também a eles, porque isto é a Lei e os Profetas (Mt 7,12). “Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36).

Politicamente, o auge da relevância da Fraternidade aconteceu com a sua inclusão no lema da Revolução Francesa (1789): “liberdade, igualdade e fraternidade”. Pela primeira vez, a ideia de fraternidade extrapolou a esfera religiosa para se tornar categoria política. Porém, se as duas primeiras ideias da trilogia foram integradas no discurso político, a fraternidade, por motivos políticos, foi substituída pela solidariedade, conceito mais restrito, que põe em oposição o grupo de iguais face ao exterior, o diferente. E, na Revolução Industrial, a fraternidade era problema para as lutas sociais, face ao vigente capitalismo pujante. Assim, durante muito tempo, mesmo mantendo a França o lema da Revolução, a fraternidade viu-se politicamente relegada para segundo ou terceiro plano. Contudo, face às consequências da globalização e à exigência de defesa do planeta, a ideia renasceu das cinzas.

Assim, durante a sua Viagem Apostólica aos Emirados Árabes Unidos, em fevereiro de 2019, o Papa Francisco e o Grande Imã de Al Azhar, Ahmed Al Tayyeb, ao assinarem o documento em referência,  deram um passo de gigante na afirmação da fraternidade como ideia central do diálogo entre as várias religiões e culturas. Na sequência, ao escrever a encíclica “Fratelli Tutti”, Francisco intuiu bem o conceito e o seu verdadeiro alcance enquanto plataforma de diálogo universal. Serão os dois documentos marco no relançamento do diálogo entre religiões e culturas. A ideia de fraternidade de Francisco contém em si as potencialidades da plena cidadania, quando os homens e mulheres se reconhecem como iguais, irmãos unidos pelos laços da família universal.

Reconhece-se o outro através do amor e comunhão entre irmãos e irmãs. Assim, escreveu o Papa: “O diálogo entre pessoas de diferentes religiões não se faz apenas por diplomacia, amabilidade ou tolerância”. E, como ensinaram os bispos da Índia, “o objetivo do diálogo é estabelecer amizade, paz, harmonia e partilhar valores e experiências morais e espirituais, num espírito de verdade e amor” (cf FT, n.º 251). Não há, pois, verdadeiro diálogo entre religiões e culturas, se o objetivo for impor a nossa realidade, em vez de, humildemente, irmos ao encontro do outro, escutá-lo e acolhê-lo na sua verdade.

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Por iniciativa da MEERU (Promover a Coesão Comunitária através do Diálogo e da Proximidade) e do Blanquerna Obervatory (observatory of media, religion and culture), com apoio do KAICIID DIALOGUE CENTRE e parceria do 7 Margens, decorreu, na “Porta”, do Porto, em Dia Internacional da Fraternidade Humana, no âmbito do projeto Bridges of Faith, uma conversa entre o muçulmano Khalid Jamal, o padre Rui Santiago e o judeu Joshua Ruah.

As razões para o diálogo são inúmeras, como diz Khalid Jamal, membro da Direção da Comunidade Islâmica em Lisboa.

As religiões são paz e o Nosso Deus fala-nos de paz. É preciso compreender que as religiões – tantas vezes instrumentalizadas e ao invés do que muitos apregoam – são “bálsamo para a vida humana e veículo privilegiado para a promoção da paz e da fraternidade universais”, mas, não raro, confundidas com outras agendas, de índole mercantilista, geopolítica, entre outras.

O Mundo não tem de ser de confrontação e de guerra, mas só atingiremos a suprema bondade, quando soubermos apreciar o outro na beleza da sua diversidade, e não na igualdade forçada.

Há mais o que nos une do que o que nos separa. As afinidades são infindáveis, um Deus único, que falou e que se revelou, através das Escrituras (é a boa nova do monoteísmo). O Deus do pai Abraão, de Moisés, de Jesus que nasceu numa terra Santa, para todos – e que é, tristemente, palco de guerra sangrenta – que mais devia unir, em vez de separar.

Desta vez, Khalid Jamal propõe uma receita mais original: o diálogo religioso precisa de empatia e de amabilidade, e ambas têm de ser compatíveis com a máxima honestidade de ideias.

O cristão precisa de aprender a ouvir do muçulmano que Allah não tem parceiros e que Jesus não é Deus. E o muçulmano tem de ter a frontalidade de o dizer aos cristãos. O muçulmano precisa de aprender a ouvir do cristão que há, no Deus único, três pessoas divinas e que uma delas, sem deixar de ser Deus, se tornou homem em Jesus, que é realmente Deus. E o cristão tem de ter a frontalidade de o dizer aos muçulmanos. Nada disto perverte as suas fés, nem representa discurso de ódio recíproco. Aliás, representa máximo respeito recíproco, constituindo saudável e radical disposição de não andar a brincar às escondidas intelectuais ou religiosas.

O estímulo da amizade promove, genuína e descontraidamente, que sejamos capazes de apreciar o que o próximo diz, “calçando os seus sapatos”, como diria Mia Couto, resgatando os melhores argumentos destes, pela simpatia que por eles nutrimos, usando uma linguagem universal e não exclusiva da fé de cada um, com verdade, não nos furtando aos temas difíceis e tendo por propósito o diálogo e não o consenso, numa própria e verdadeira fraternidade universais.

Enfim, ressalta a célebre e sábia frase popular das terras do tio Sam: “Se não aprendermos a dialogar sobre a religião, acabaremos por guerrear por causa da religião.

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O redentorista Rui Santiago sente que a amizade desencadeia a vontade de participação alegre e diz que a conversa em referência é uma iniciativa de quem se dedica à Esperança nos desafios quotidianos da inclusão e de relações improváveis. Gosta de ver as coisas de outros lugares, de pensar com as palavras de outros, de ouvir histórias e de receber visões. “Estar à conversa com um irmão judeu e com um irmão muçulmano significa entregar uma mão a um e a outra mão a outro e ficar feliz por me levarem a passear a ver o que eles quiserem”, confessa.

Fascina-o a maravilha de andarmos num Mistério e de vivermos de sinais, de aproximações, de alegorias, de metáforas, de imagens, de palavras. Os crentes são catadores de sinais e, nos melhores dias, cantores de prodígios e de narrativas. Estar à conversa com estes irmãos permite a partilha generosa destes sinais colhidos e interpretados, destas alegorias e metáforas diferentes. E ver-se pelos olhos de outros é sempre um modo de bênção.

Os três grupos religiosos, comungando na fé em Deus Criador, sabem que, “na origem de tudo; está um desígnio único, um amor único, um projeto único, uma Criação Una”, o que leva a conversa a ser “um sinal bonito entre a poesia do uno e a profecia da unidade.

Os três conhecem-se desde o tempo em que estavam juntos nas entranhas de Abraão, princípio visceral das mesmas tão ampliadas tradições. Por isso, “trazem, nas memórias mais primevas, o apelo à irmandade, à paternidade comum na bênção e na promessa”.

Os três são “gente d’A Palavra” e creem num Deus que se diz, que fala, que dialoga connosco, em modos vários e mediações. São gente que “anda debaixo do braço de um Livro”. Quando abrem os Livros Santos, sabem que “estão a expor-se ao Livro, a deixar-nos folhear por ele”. Creem no vigor de palavras que nunca murcham nem se esgotam e fazem da Palavra “lugar de interpretação incessante e de encontro”. Por isso, estar à conversa é uma “velada profissão de fé na vitalidade da Palavra de um Deus que se comunica”.

Considera que precisam de oportunidades para dicções autênticas e esperançosas entre si. Muitas palavras mal ditas já aconteceram e ainda acontecem, infelizmente. Porém, crê numa profecia transcrita no último livro do seu Novo Testamento, onde “o sonho do projeto criador e salvador de Deus, finalmente culminado”, é ilustrado com imagens e palavras. A meio dessa exuberância, ressalta um milagre deste calibre: “E nunca mais haverá nada mal dito!” (Ap 22,3) É por isso que estarem os três à conversa é ocasião para ensaiarem o tal futuro grandioso. É um treino de bendição partilhada, de bênção recíproca, de palavras que bendizem uns aos outros.

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Joshua Ruah, antigo dirigente da Comunidade Israelita de Lisboa (IL), refere que há quem acredite que Deus nos mostra o caminho, mas que outros preferem falar no Universo e nas coisas que o cosmos nos diz. Como em tantas outras áreas da vida, acredita que “o que importa realmente é saber ouvir”. Em toda a sua existência, teve a noção de que a morte é uma coisa que temos de pensar e de aprender. E o aprender é simples: “Faz o melhor que puderes e o mais rapidamente possível porque podes não ter tempo para acabar”. Como se convenceu de que tinha um prazo de validade, ali por volta dos 60 anos, foi‐se habituando a esta ideia e tentando adaptar a vida ao pouco tempo que lhe restava.

Sente que vivemos um momento, se não de viragem, de reflexão. A globalização da miséria, os ricos cada vez mais ricos, o fim da classe média, os algoritmos inclementes, o fim do trabalho, as alterações climáticas, a corrupção e incompetência políticas. Todavia, não é esta a Historia em que acredita. Basta olhar para trás, considerar as convulsões e as revoluções e ter um bocadinho de fé́. Resolver-se-á́ tudo, possivelmente, com algum atraso, mas o mais importante é e será́ a literacia: “aprender a pensar, a raciocinar e a sentir melhor”. Teremos novos paradigmas de relação social, de economia, de finanças e de distribuição de riqueza. Até à disseminação da Internet e, em particular, dos smartphones, a aprendizagem cingia‐se, em grande parte, à memorização. Hoje, com a memória mais na algibeira, o processo de aprendizagem levar-nos-á́ a destinos mais igualitários e livres, pelo caminho da criatividade. Este novo Mundo pode ser aterrorizador para os mais velhos, mas espera-se que os mais novos creiam no seu poder demiúrgico, no sentido da inovação, da fraternidade e da felicidade.

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Estarem à conversa um muçulmano concreto, um cristão concreto e um judeu concreto, a partir das suas histórias é sinónimo de crer na “força desarmada do encontro, do diálogo e da amizade entre pessoas, para abrir caminhos para a Paz”. É a via para mais liberdade e mais igualdade.

2024.02.05 – Louro de Carvalho

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