sábado, 10 de fevereiro de 2024

Em política, as coisas são iguais ou diferentes, conforme der jeito

 

Na década de 90 do século passado – já lá vai muito tempo, pois era outro século e outro milénio, e as coisas mudam rapidamente –, estando eu a seroar em casa de família amiga, um canal de televiso transmitia um programa que era uma espécie de apanhados, sendo, nessa noite, vários transeuntes confrontados, de súbito, com o convite para serem testemunhas de casamentos de pessoas do mesmo sexo. Em geral, as pessoas, surpreendidas pelo convite e pela natureza do evento, reagiam com espanto (estava longe a possibilidade legal deste modalidade de união). Não obstante, numa dessas surpresas, uma pessoa atirou: “Ah, é como os padres!”

Espontaneamente, sem me dar conta de que estava a ser ouvido, vociferei uma expressão de todo asneirenta, no que deixei verdadeiramente espantados, não os intervenientes na televisão, a quem fora dirigido o doesto, mas os meus amigos e amigas ali presentes.

Isto nada tem a ver com o título que encima esta reflexão. Contudo, serve-me de arrimo para sustentar que, na política, aliás como na vida, as realidades, umas vezes, são iguais ou parecidas e, outras vezes, são diferentes.

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Até ao presente, todos os Presidentes da República (PR) eleitos em democracia dissolveram a Assembleia da República (AR). O facto em si é igual. Todavia, há diferenças.

Ramalho Eanes, antes de dissolver a AR, num primeiro momento, tomou a iniciativa de exonerar o primeiro-ministro (PM) Mário Soares e obrigou-o a permanecer em funções até à nomeação e à posse de novo governo, sem que o texto vigente, ao tempo, da Constituição da República Portuguesa (CRP) impusesse tal solução (também não a proibia), aduzindo, segundo a lógica de um conceituado constitucionalista, que “o mais contém o menos”. Além disso, ainda nomeou três governos ditos de iniciativa presidencial: o primeiro caiu, por rejeição do programa na AR; o segundo caiu, porque a AR, apesar de ter deixado passar o programa, rejeitou uma primeira proposta de Orçamento do Estado e, embora tenha aprovado a segunda, rejeitou as Opções do Plano, o que levou o PM a apresentar o pedido de demissão.

As outras dissoluções da AR, depois da Revisão Constitucional de 1982, tiveram origem na rutura da maioria parlamentar, por denúncia do acordo de coligação (1982 e 1985), ou na aprovação de moção de censura ao governo na AR (1987 – a única dissolução decretada por Mário Soares).

É, entretanto, de registar que, a partir da Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de setembro (primeira revisão da Constituição), o PM demitido é exonerado aquando da tomada de posse do novo governo, pelo que fica em funções, liderando um governo de gestão, até essa data.  

Em 2001, António Guterres pediu a demissão de líder de um governo minoritário, pelo facto de o seu partido ter perdido as eleições autárquicas (fez extrapolação para o âmbito nacional, conveniente, mas desnecessária), o que levou Jorge Sampaio a dissolver a AR.

Jorge Sampaio, em 2004, aceitou Santana Lopes a liderar um novo governo, em virtude da saída de Durão Barroso para a presidência da Comissão Europeia. Não leu as eleições de 2002 como vitória pessoal de Durão Barroso, como Ramalho Eanes também não fizera, em 1980, tal leitura, a propósito de Sá Carneiro, que falecera a 4 de dezembro desse ano, pelo que empossou um governo liderado por Francisco Balsemão.

O Partido Socialista (PS) discordou de Sampaio, argumentando que Santana não fora eleito, esquecendo que as eleições fazem deputados à AR, e não governos. Também Balsemão não fazia parte do governo em 1980, mas fora eleito deputado.

Quando Marcelo Rebelo de Sousa, em 2023, decidiu anunciar a dissolução da AR, em virtude da apresentação do pedido de demissão de António Costa, o PS discordou e tentou que o PR desse posse a novo governo, sendo acusado de mudar de opinião, relativamente a 2004. Também Mário Centeno, um dos nomes badalados, não fora eleito deputado.

O PR justificou-se com precedente anterior. Porém, ainda está por explicar o motivo por que Sampaio dissolveu a AR, que detinha uma maioria parlamentar, embora de coligação. A situação parecia igual (dois candidatos a PM não eleitos e uma maioria), mas era diferente, pois, em 2004, a maioria era de coligação e o governo parecia esboroar-se por dentro, ao passo que, em 2023, a maioria era de um partido que, apesar de governar mal, em determinados capítulos, se sustentava em maioria parlamentar sua. Tal atitude do PR decorre apenas do facto de ter dito publicamente, aquando da posse do governo, sem contestação significativa, que dissolveria a AR, se o PM viesse a cessar funções, uma vez que as eleições que deram maioria ao PS a deram a António Costa. Não se sabe em que norma da CRP leu tal desiderato.  

É certo que o PM, que não é arguido, foi vergastado por anúncio público de que era visado em inquérito em curso no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), tendo declarado que não tinha condições políticas para continuar no exercício do cargo (pelos vistos, aquando do pedido de demissão, não sabia do dinheiro encontrado nas estantes do seu chefe de gabinete).

Passo em silêncio o facto de Cavaco Silva ter dissolvido a AR, em 2009, e a Assembleia Legislativa Regional da Madeira (ALRM), em 2007 e em 2015, não por motu proprio, mas em resultado da apresentação do pedido de exoneração ao representante da República (RR), por parte do presidente do governo regional. O mesmo aconteceu com o atual PR, em 2023, em relação à ALRM e à Assembleia Legislativa Regional dos Açores (ALRA), em 2023, sem problemas.

As eleições na Madeira ocorreram em setembro de 2023, mas equaciona-se já dissolução, com marcação de eleições antecipada, após o decurso do prazo constitucional de seis meses (ver artigo 172.º da CRP). Também aqui há diferenças: rompimento da coligação (Madeira); não aprovação do Orçamento Regional (Açores); e constituição de arguido do presidente do governo regional (Madeira), o que não é o caso do governo da República.

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Alberto João Jardim, ex-presidente do governo regional da Madeira, que defende, agora, eleições, chegou ao poder, em 1978, numa transição de governos, como o Partido Social Democrata (PSD) e o partido do Centro Democrático Social (CDS) querem fazer. Por sua vez, o PS, que não queria eleições para a AR, tal como não as queira em 2004, deseja-as na Madeira.

O estatuto político-administrativo da Região Autónoma da Madeira (RAM) não estabelece prazo para a aceitação, pelo RR, do pedido de exoneração do presidente do governo regional ou para o processo de nomeação de sucessor, nem a nomeação de sucessor está explícita. Mas ela é possível ao abrigo do estatuto, que estipula que o presidente do governo “é nomeado” pelo RR, “tendo em conta os resultados das eleições” para a ALR e “ouvidos os partidos políticos nela representados”.

Era assim que o PM queria, a nível nacional, quando propôs ao PR o nome de Mário Centeno. E foi assim, na sequência da renúncia do primeiro presidente do governo regional, em 1978, quando Alberto João Jardim chegou ao poder. E, quando apresentou a demissão definitiva, em 2015, teria acontecido isso, se Miguel Albuquerque não tivesse recusado assumir a liderança do executivo.

A crer que a coligação PSD/CDS proponha novo nome, que o atual orçamento caia e se faça um novo até ao fim de fevereiro, é preciso saber se, a partir de 24 de março, o PR dissolve a ALRM e marca eleições, para meados de maio, em vésperas da campanha das europeias.

O partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) pediu uma reunião ao RR, para lhe apresentar as suas exigências para novo governo regional, ao passo que o PS insiste em eleições antecipadas. O PSD e o CDS estão a organizar-se, mas alguns partidos têm medo de ir, de novo, a eleições e todos olham para os Açores que resolveram a crise, de forma pouco sustentada.

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O presidente do PSD, a 30 de janeiro, defendeu que a demissão de Albuquerque da presidência do governo Regional da Madeira foi “decisão correta”, dizendo que nunca teve dúvidas, e pediu ao RR para “não empatar”, nomear novo governo e deixar a “democracia funcionar” na Madeira. Uma contradição, face ao que propôs para a AR!

Luís Montenegor disse à CNN Portugal que nunca teve dúvidas sobre qual seria o “caminho mais correto”, mas preferiu usar o seu “magistério de influência em privado em vez de público”. “Presunção e água benta cada um toma a que quer”, lá diz o ditado popular. E, questionado sobre se deve ou não haver eleições na RAM, o líder partidário apenas disse que “o PSD-Madeira está preparado para ir a votos” e que, a partir de 24 de março, o PR deverá “fazer uma avaliação” da situação, quando readquirir os poderes de dissolução.

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Sobressai a incoerência do PR, entre a solução da crise aberta com a demissão do PM, em novembro de 2023, e a que se afigurava para crise política decorrente da demissão do presidente do governo regional da Madeira. Enquanto no primeiro caso, o chefe de Estado se recusou a nomear novo governo do PS, no quadro da maioria parlamentar existente, preferindo anunciar, de imediato a dissolução da AR e a convocação de eleições antecipadas, obrigando o governo a manter-se em gestão, no caso da RAM, parece ter chegado a admitir a nomeação de um governo do PSD, sem novas eleições e sem deter maioria na ALRM.

Não invocável, embora verdadeiro, que a ALRM não pode ser dissolvida, sem passarem seis meses, desde a eleição, que se completam a 24 de março, devendo o governo demitido manter-se em gestão até à posse de novo governo, condizente com a nova composição da ALRM.

Não há inconstitucionalidade em anunciar a dissolução de um parlamento a prazo. E, se o PR deixa nomear novo governo, perde, politicamente, razão para, mais tarde, decretar a dissolução.

Com efeito, embora o PR não possa dissolver, nada o impede de anunciar a dissolução para quando for possível, como o fez, a nível nacional, para a AR, que só foi dissolvida a 15 de janeiro, tendo a crise eclodido a 7 de novembro. Duplicidade presidencial de critérios!

Por conseguinte, há dois efeitos díspares: a nível nacional, o PS teve de se refazer, em tempo recorde, e fazer a campanha eleitoral com o governo sob suspeita como pano de fundo; o PSD da Madeira, com novo governo, tem mais tempo para se refazer e fazer, quando necessário, uma campanha sem o espectro de um governo sob suspeita.   

O PSD madeirense, com a conivência dos líderes de topo, tentou libertar-se, rapidamente, do ativo tóxico governativo. É certo que, nas regiões autónomas, é ao RR que incumbe nomear os governos regionais. Porém, não é crível que o RR não articule as decisões com o PR, nem o PR decide sem se avistar (embora prevalecendo) com o PM, com o presidente da AR e com os partidos.

Miguel Albuquerque foi adiando a escolha do sucessor, mas não adiou a apresentação da sua demissão ao RR, que efetivou. Isso, nos termos do Estatuto Político-Administrativo, parece implicar a demissão imediata do governo, sem necessidade de aceitação, o que, logicamente, arrasta, a caducidade da proposta de orçamento regional, pendente de aprovação na ALRM. Porém, quando convém, os diplomas estruturantes são interpretados a contento.

É de apontar a questão levantada a propósito de o líder da Aliança Democrática (AD) querer fazer-se substituir em debates pelo líder do CDS, o que interlocutores rejeitaram, assim como os respetivos canais de televisão. O argumento é que, nas coligações anteriores, também o número dois da AD substituía o líder em debates eleitorais. Contudo, nem esta AD é igual às anteriores, nem o CDS ou o Partido Popular Monárquico (PPM) têm representação parlamentar.

Hoje, contas certas e redução do défice e da dívida pouco importam. Fundos europeus, que eram bons, em 1985-1995, agora, só atrasam o país (dantes, eram em ecus; agora, em euros). Agora, Polícia Judiciária (PJ) tem aumento de subsídio de risco; as outras polícias, só depois de março.

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Enfim, as coisas são iguais ou diferentes e as duplicidades são possíveis, quando nos jeito. Isso não é politicamente válido, como não é aceitável o aforismo: “Em política o que parece é.”  

2024.02.09 – Louro de Carvalho

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