sábado, 24 de fevereiro de 2024

No 731.º dia de guerra, Zelensky homenageia soldados mortos

 

A 24 de fevereiro, 2.º aniversário da invasão russa, Volodymyr Zelensky, presidente ucraniano, homenageou os soldados que tombaram na guerra, em cerimónia solene com a presença da presidente da Comissão Europeia e dos primeiros-ministros da Bélgica, da Itália e do Canadá.

A cerimónia decorreu no aeroporto de Gostomel, a poucos quilómetros da cidade de Bucha, local com grande simbolismo, por ter sido palco de uma terrível batalha nos primeiros dias da invasão russa iniciada a 24 de fevereiro de 2022. Na altura, as tropas do Kremlin estavam nos arredores de Kiev e, tal como em Bucha, os soldados ucranianos foram alvo de um massacre que incluiu muitos atos russos considerados crimes de guerra.

“Venceremos”, bradou Zelensky, frisando que os Ucranianos estão a lutar por isso há 730 dias.

Na cerimónia, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, elogiou a resistência da Ucrânia durante a guerra, e garantiu o apoio da União Europeia (UE), “enquanto for necessário”.

O presidente Zelensky “salvou o seu país e deu uma hipótese à resistência ucraniana. Na semana passada, abateu sete caças, levou [os Russos] de volta ao Mar Negro e retomou o comércio. Isso parecia impossível há dois anos”, disse Von der Leyen, acrescentando: “Lembremo-nos de como [os Ucranianos] chegaram tão longe. Confio que a Ucrânia continuará a surpreender-nos a todos. Enquanto for necessário, fornecer-lhe-emos apoio financeiro, munições e continuaremos a treinar soldados e a investir na indústria de defesa europeia.”

A primeira-ministra italiana, Georgia Meloni – com a intenção de assinar um acordo bilateral de segurança com Zelensky –, garantiu acreditar “que a Ucrânia também está a lutar pela liberdade e interesse nacional” dos Estados europeus.

“A Ucrânia faz parte da nossa nova casa” e “nós faremos a nossa parte na sua defesa”, afirmou Meloni, que, enquanto presidente do G7 (grupo dos sete países mais industrializados), organizou uma videoconferência com os sete líderes dos países para a efeméride, com resultados positivos. “Este local é o símbolo do fracasso de Moscovo e do orgulho da Ucrânia, os planos de Putin foram interrompidos aqui. Lembra-nos que há algo mais forte do que mísseis e guerra: amor pela terra e liberdade”, acrescentou Meloni.

Por seu turno, o primeiro-ministro canadiano, Justin Trudeau considerou: “As tropas russas tentaram tomar rapidamente o aeroporto [de Gostomel] e, com ele, a capital ucraniana.” “E hoje estamos aqui, porque falharam, como falharam em muitas outras coisas”, vincou, elogiando a coragem ucraniana e reafirmando o apoio do seu país à Ucrânia.

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Os Ucranianos habituaram-se ao som das sirenes. O peso da guerra é a presença constante em todas as esferas de uma sociedade que já sabe coabitar com o perigo. As mãos já não tremem e o quotidiano passou a depender de pequenos gestos de uma vida normal. O uso de drones dão a muitos elementos do povo a sensação de que o perigo é mais longínquo e as pessoas doentes ou debilitadas hesitam entre permanecerem em casa ou ir para os abrigos. Todavia, as sirenes continuam a soar, ainda que os canais de monitorização das redes sociais nem sempre revelem qualquer perigo, até àquele momento do alarme.

Muitos dos avisos são fornecidos à população via Telegram, rede social criada pelos Russos. E, embora os Ucranianos, com a invasão russa do seu país, tenham recusado o consumo de produtos provenientes do agressor, não prescindem da aplicação Telegram, uma das mais populares redes sociais no país e que funciona como ferramenta que ajuda os Ucranianos a manterem-se seguros. Ao longo destes dois anos de guerra, formaram-se vários canais de monitorização, que divulgam informação quase instantânea sobre as razões para os alertas de ataque aéreo em cada região. Os voluntários que os sustentam seguem milhentas contas nas redes sociais, escutam frequências de rádio e recebem comunicações diretas de fontes operacionais no terreno. É, pois, um serviço público de 24 horas com atualizações quase imediatas sobre bombardeiros que tenham levantado voo, sobre mísseis lançados, sobre drones acionados e os percursos que levam, sobre explosões (onde ocorrem), sobre a atividade dos sistemas de defesa aérea e sobre vários outros detalhes que permitem aos Ucranianos tomarem decisões conscientes do que fazer a cada momento.

Há noites em que até nos abrigos as paredes estremecem e as explosões ecoam de tal modo que os mísseis parecem cair todos ali à volta. O espaço dos abrigos é grande e alberga centenas de pessoas, mas não é confortável. Os abrigos são frios, húmidos, sem casas de banho, sem lugares para se sentarem, e ecoam tanto que o choro de qualquer criança se torna potencialmente muito intenso. Porém, são suficientemente profundos para as pessoas se sentirem seguras.

Os dois anos de guerra em larga escala são palco de constantes ataques aéreos, de notícias quase diá­rias de feridos e de mortos, o que alterou a perceção do Mundo para os Ucranianos. No início, diziam às pessoas que a vida de antes acabara. Porém, elas não compreendiam e não acreditavam. Agora, percebem ao que se referia quem as avisava. Têm uma vida que “corre num tempo mutilado”, dizem alguns. As lembranças do tempo de paz, de convívio alegre entre as pessoas e com a Natureza criam nostalgia e as pessoas estão convictas de que o tempo anterior não voltará. Ainda que a guerra acabe, nada será como dantes. O peso constante da guerra, peso que decide tudo nas vidas das pessoas, parece ter vindo para ficar. Até a noção do tempo mudou, os dias baralham-se com as semanas e os meses parecem anos.

As pessoas vivem com a consciência de perigo constante, a longo prazo, e agarram-se a todas as possibilidades de ter uma vida relativamente normal. A sociedade ucraniana transformou-se. Nos primeiros meses depois de 24 de fevereiro de 2022, sentia-se uma forma de estar inquieta e reativa.

O medo das pessoas de todas as idades era palpável. A guerra era desconhecida para a maior parte. Embora o país combatesse os Russos no Donbass, desde 2014, poucas pessoas sabiam o que era acordar ao som de explosões. Havia a esperança de que tudo acabaria depressa. Nas filas para os centros de recrutamento, rejeitavam muitos homens que se queriam alistar no exército, porque o número de voluntários era superior ao das armas. As fronteiras com a Polónia e com a Roménia transbordavam de mulheres, de crianças e de idosos que, sem saber o que os esperava dentro do país, arriscavam o desconhecido Mundo estrangeiro. Fecharam as escolas, os museus, os teatros, os restaurantes e até a maior parte das farmácias. Os bancos limitaram o dinheiro que se podia levantar. O mundo ucraniano parou. Em Kiev, as ruas ficaram vazias.

Muitos optaram por ir para o oeste do país, junto da fronteira com a União Europeia (UE) e com os países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO); outros esperavam nos arredores da capital, por acreditarem que o fumo não correspondia ao fogo. Porém, semanas mais tarde, soube-se que as forças russas mataram centenas de civis nas pequenas cidades, a norte da capital. Histórias de torturas e violações chocaram o Ocidente e os Ucranianos, sobretudo os que viviam e repetiam a propaganda sovié­tica e acreditavam que Russos e Ucranianos são “povos irmãos”.

O ódio de muitos Ucranianos para com os Russos não é ódio contra um país qualquer, mas ódio por um familiar morto, torturado ou violado, bem como por património destruído.

Mariupol, cidade com 540 mil habitantes e com forte indústria, foi um dos pontos mais negros da guerra. O cerco à cidade durou três meses. Os relatos dos que escaparam dão conta de longos e intensos combates, de cadáveres de civis amontoados nas ruas, da constante presença de explosões que tornou o silêncio ameaçador, de destruição sem fim à vista e de uma vida à beira do colapso, sem água, sem comida, sem eletricidade e com temperaturas negativas. Esperam que Mariupol volte para as mãos dos Ucranianos cerca de 4,9 milhões de deslocados internos e 6,7 milhões de refugiados que estão no estrangeiro.

É muito difícil imaginar os números dos soldados mortos nos últimos dois anos, nos dois lados da linha da frente. Nenhum dos países anuncia as baixas entre os próprios efetivos, mas as estimativas divulgadas por oficiais norte-americanos, no verão de 2023, davam conta de 120 mil mortos, entre os soldados russos, e de 70 mil, entre os ucranianos. No entanto, são dados que servem apenas de ponto de partida, pois a rea­lidade é ainda mais dura. A julgar pelos cemitérios ucranianos, onde as campas se multiplicam a uma velocidade incrível, o peso de soldados mortos, se o número fosse conhecido, poderia esmagar a população.

Vitaly Portnikov, politólogo ucraniano, espera que o tempo venha a acabar sempre com “a renovação do direito internacional, com a construção de uma nova ordem mundial e com a Ucrânia de volta às fronteiras de 1991. A questão é quando e como se processará isso, quando e como estará a Ucrânia nessa altura. As suas previsões são claras: a Ucrânia vai recuperar todo o território que está sob ocupação russa. Resta saber o que significa isso.

O politólogo admite como real a possibilidade de a Ucrânia voltar para a esfera de influência russa. “A guerra acaba, os agentes de influência russos voltam para a Ucrânia e os atores antirrussos são politicamente marginalizados”, teoriza. A única opção de isso não acontecer, segundo o politólogo, é a Ucrânia entrar para a NATO, “o mais rapidamente possível, a começar pelo território que está sob controlo de Kiev e, depois, espalhar-se para o resto do país”.

Nisto, coincide com a proposta de Anders Fogh Rasmussen, antigo secretário-geral da NATO, que defende a aceitação da Ucrânia como membro de pleno direito, na próxima cimeira, no verão de 2024, mas sem os territórios ocupados por Moscovo. Zelensky disse que não vê forma de tal acontecer, mas Portnikov garante que há um grupo de pessoas “a trabalhar para isso” e acredita que a política de isolacionismo da Rússia vai quebrar o país, mais tarde ou mais cedo.

O politólogo sustenta que a Rússia é parte da civilização ocidental e que é autoritária e anacrónica, pois lê Alexandre Dumas e interpreta ‘Os Três Mosqueteiros’, mas não lê Confúcio, nem poetas da Coreia do Norte ou da Índia. Deseja que a guerra acabe e diz que 2024 pode ser um ano de negociações, não como a Ucrânia nem como Vladimir Putin querem. Não acredita na escalada do conflito, pois Moscovo não terá capacidade para isso, agora. Pode, contudo, a frente continuar a congelar, acabando o ano como acabou 2023, admite. Não compreende a narrativa de desnazificação de Putin, para justificar a invasão à Ucrânia, “porque todos os sinais de fascismo que nós vemos são do lado russo: intolerância perante o outro, verbalização de ideias antissemitas, xenofobia, intolerância perante as minorias sexuais e aprovação de leis concordantes com isso”.

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Entretanto, enquanto a guerra corre bem, às vezes à Rússia e às vezes à Ucrânia, o vice-presidente executivo da Comissão Europeia, Valdis Dombrovskis, apela à entrega da parte dos Estados-membros de munições à Ucrânia e a investimentos nacionais em capacidades de defesa na UE.

Nas declarações à chegada ao segundo e último dia da reunião dos ministros das Finanças da UE, na cidade belga de Gante, no quadro da presidência rotativa do Conselho assumida pela Bélgica, Dombrovskis disse ser “evidente que a UE terá de prestar muito mais atenção às suas capacidades de defesa e às capacidades da sua indústria de defesa”. “Precisamos de trabalhar em conjunto para a desenvolver e, obviamente, isto também significa mais despesas ao nível dos Estados-membros, porque sabemos que muitos dos Estados-membros da UE ainda não estão a cumprir o objetivo da NATO para as despesas de defesa de 2% do PIB”, vincou.

Questionado sobre a emissão de dívida conjunta na UE para a Defesa, referiu: “Sobre os instrumentos exatos, é evidente que temos de fazer mais, tanto ao nível nacional como da UE.”

A economia ucraniana procura recuperar, apesar da guerra, que é suportada, em grande parte, pela ajuda militar e financeira internacional. Já no âmbito militar, é de referir que, a 1 de fevereiro, os líderes da UE acordaram num apoio financeiro de 50 mil milhões de euros à Ucrânia; nas últimas semanas, a Ucrânia assinou acordos bilaterais de segurança com o Reino Unido, com a França e com a Alemanha e está a negociar pactos similares com outros países; e vários governos europeus insistem na necessidade de coordenar melhor o fornecimento de equipamento à Ucrânia.

Perante a situação de impasse, a Rússia continua a mobilizar homens; a Ucrânia, entre o cansaço e um novo vigor, tem apoio renovado e aumentado da Europa, do Canadá e da Casa Branca.

2024.02.24 – Louro de Carvalho

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