segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

PR só prevê governo de quem for vencedor, o que é discutível

 
Segundo o oráculo de Belém, passado à ribalta por Ângela Silva, do Expresso, o Presidente da República (PR) cenarizou tudo e não antevê que quem fique em segundo lugar, nas eleições legislativas de 10 de março, governe. Portanto, confirmando-se as previsões, dará tempo a que o even­tual governo de curta duração que resulte das eleições fique, ao menos, durante um ano.
Na ótica do chefe de Estado, a gestão do período pós-eleitoral tem uma condicionante: só aceitar um governo do partido (ou coligação) que tenha vencido a disputa eleitoral, não por uma questão de princípio, mas pelo que decorre das hipóteses que equacionou e que o levam a cenarizar como provável a terceira dissolução da Assembleia da República (AR) e a convocação de eleições antecipadas. Com efeito, antevê que, ganhe o Partido Socialista (PS), ou ganhe a Aliança Democrática (AD), dificilmente haverá maioria capaz de se sobrepor ao partido vencedor. E, se um governo minoritário for confrontado com moções de rejeição na AR, como permite antever a entrada em cena do Chega aditivado, o PR não vê como sequenciar um ciclo em que tenha ele de segurar o executivo.
Se o PS ganhar as eleições, a direita for maioritária e Luís Montenegro mantiver o “não é não” para acordo com o Chega, não haverá solução de governo alternativa à da esquerda. Perdendo as eleições, dificilmente Montenegro resistirá na liderança do Partido Social Democrata (PSD), embora possa recandidatar-se a líder nas próximas eleições diretas internas, o que não contradiz a asserção de que não se agarra ao poder. Este cenário, possível, torna-se mais provável (não em absoluto) com o rombo judicial provocado no PSD/Madeira pela investigação que estalou em período pré-eleitoral, constituindo grande motivo de preocupação para a AD.
Porém, se a AD for vitoriosa, a 10 de março, mas sem maioria, e mantendo-se Montenegro fiel à posição de não fazer acordos com Ventura, o desfecho instável passa para a direita. Não haverá maioria de esquerda que faça perigar o governo da AD. E não é crível que o Chega avance com moção de rejeição, que o eleitorado de direita dificilmente aceitaria, e Montenegro garantiu: “Se ganhar eleições e não tiver maioria absoluta, nem a conseguirmos formar com os partidos entre o PS e o Chega [a IL – Iniciativa Liberal], estou disponível para governar em minoria.”
Se correr mal à AD, enquanto o PSD mergulha no processo de substituição de líder, o PR coabitará com Pedro Nuno Santos como primeiro-ministro (PM) à frente de governo de gestão ou em plenitude de funções. Tudo dependerá de André Ventura cumprir a ameaça de apresentar uma moção de rejeição ao governo, para a qual tentará arrastar a AD. Num caso ou noutro, o governo seria o do partido vencedor das eleições.
Governar em minoria é normal. António Guterres cumpriu uma legislatura, com governo minoritário; e o segundo caiu, porque o líder apresentou o pedido de demissão, por causa da derrota em eleições autárquicas. Contudo, dizem que a bipolarização radicalizada com as experiências do consulado de António Costa mudou as circunstâncias, pois consta que só aguentou dois anos a governar sem maioria. Porém, não é assim. Cumpriu legislatura completa com um governo minoritário. Havia apoio parlamentar maioritário à esquerda, mas nem sempre foi de fácil manutenção. E o segundo governo caiu, por ameaça intempestiva de dissolução da AR, caso não esta não aprovasse o orçamento, o que muitos quiseram ouvir.
Dificilmente um governo minoritário da AD, entalado entre a esquerda unida e o Chega atiçado, duraria um ciclo normal. Começaria por aguentar-se, por não ser crível que o Chega se juntasse ao PS, ao Partido Comunista Português (PCP), ao Bloco de Esquerda (BE) e ao Livre para o derrube. Mas, aquando da viabilização de orçamentos tudo se complicaria, a menos que o líder do PS levasse o partido a viabilizar tal solução. Pedro Nuno, porém, sinalizou o contrário.
Assim, parece que, ganhe quem ganhar, governará um ano, asserção que o Expresso atribui a um conselheiro do PR, sonhando o chefe de Estado com o regresso à fórmula em que os dois maiores partidos admitissem viabilizar governos minoritários um do outro (como fez quando líder do PSD, em três orçamentos do governo de Guterres), pois está preparado para um ciclo de “miniciclos”.
Marcelo, se as suas previsões se confirmarem, dará tempo para que o even­tual governo de curta duração que saia das eleições fique, ao menos, um ano, para não deixar o país sem orçamentos e para evitar comprometer o dossiê que mais valorizou nos últimos governos – a execução do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que designou de oportunidade única e que avisou não poder ser desperdiçada, a ponto de ter dito, em público, à ministra da Coesão Territorial que não lhe perdoava, se o PRR falhasse. Eram outros tempos; e, na conversa que tiveram em Belém, o PR terá comunicado a Pedro Nuno Santos que, se ele ganhar, mesmo com maioria de direita, será governo. Não se sabe é por quanto tempo.
***
Já na primeira reunião do ano com os membros da Casa Civil, o PR terá feito um exercício de abertura aos cenários possíveis e, sem se comprometer com nenhum, não omitiu as condicionantes que podem levar a nova dissolução da AR. Antecipando um duro final de mandato, o que lhe exigirá mais sangue frio, o seu papel será tão central que poderá ter de revisitar o seu poder máximo. E, sem se fixar nesse cenário, não excluiu que, se as escolhas evoluírem de equilíbrio bipolar para tripolar, em que um partido bloqueie soluções de governo, o jogo se complicará.
Todos reconhecem, em Belém, ser difícil ao líder do PSD replicar a estratégia de Costa, em 2015, criticada à direita (mas que seguiu nos Açores, em 2020). E o PR referiu como condicionante a garantia de Montenegro de que, perdendo as eleições, não governará. Porém, quem conhece bem o PSD sabe que, se houver maioria de direita, dificilmente o partido virará costas a uma solução que o leve ao poder. Aí, ou o líder reavalia estratégias (não lhe perdoarão não ter ganho ao PS com nove anos de poder e com o PM caído por si (não é verdade, pois foi empurrado pelo poder judiciário), ou, caindo Montenegro, a saída apontaria para novas eleições, seis meses depois.
Aceitar outro PM, sem ser sufragado pelo voto, contraria o que Marcelo (e o PS, no caso Durão-Santana) tem defendido. E, embora o líder do PSD tenha dito que teria de ouvir o partido, neste cenário muitos se virariam para Passos Coelho, só faltando saber o que diria Carlos Moedas.
Para o PR, eleições no início de 2025 seriam a derradeira oportunidade de ver a direita no poder, permitindo-lhe a saída com chave de ouro. Com efeito, qualquer novo governo o quererá ter como aliado, o que lhe permitiria despedir-se como parte de solução o mais estável possível.
A dinâmica que se vai gerar, nestes meses, está longe de concluí­da. Pode haver governos minoritários que firmem acordos eficazes – sinal que Marcelo deixou no primeiro discurso de 2024. Com efeito, não se sabendo o que sairá de 10 de março e não lhe cabendo antecipar riscos de ingovernabilidade, competirá aos atores políticos assumirem a construção de soluções.
O chefe de Estado, analisando os últimos dois meses de 2023, não deixou em claro como o tentaram responsabilizar pela crise e pelo “caso das gémeas”. Porém, a sua tese sobre a causa da crise não muda: a demissão do PM foi “uma legítima decisão pessoal”. Não obstante, António Costa, sem comentar o que diz o PR, sublinha, algumas vezes, que a responsabilidade pela convocação de eleições é do Presidente. Mas, sem Costa, acredita Marcelo, já não havia Governo: a maioria, a que um dia chamou “requentada”, aos olhos do Presidente “caiu por si”.
Formalmente, nunca um PM caiu por iniciativa do PR, depois da revisão constitucional de 1982. E, na vigência do texto constitucional de 1976 (colado ao II Pacto MFA-Partidos), só Mário Soares foi exonerado de PM por iniciativa de Ramalho Eanes, que deu posse a três governos de iniciativa presidencial, todos de curta duração. Desde 1982, o PR só pode demitir o governo, se estiver em causa o regular funcionamento das instituições democráticas. Contudo, é difícil ilibar Jorge Sampaio da responsabilidade da queda do governo de Santana; Cavaco Silva da do termo do segundo governo de Sócrates; e de Marcelo dos últimos dois governos de Costa.  
***
As eleições legislativas destinam-se à escolha dos deputados (e não do governo, diretamente) a partir das listas de candidatos (filiados ou com estatuto pessoal de independentes) apresentados pelos partidos políticos em cada círculo eleitoral. E, porque o nosso sistema de apuramento de mandatos é o de representação proporcional, nem sempre é constituída uma maioria parlamentar de um só partido ou coligação. Por isso, avisadamente, a Constituição da República Portuguesa (CRP), estabelece que o PR nomeia o PM, ouvidos os partidos com assento na AR e tendo em conta os resultados eleitorais (cf CRP, artigo 187.º, n.º 1).
Nestes termos, se um partido ou coligação dispuser de maioria na AR, caberá ao seu líder candidatar-se a PM ou apresentar um candidato da sua confiança, devendo o PR nomeá-lo. E, se um partido ou coligação vencer as eleições, mas sem obter maioria parlamentar, em princípio, deverá fornecer um candidato a PM, que o PR deve nomear. Porém, se for possível constituir uma maioria parlamentar alternativa à força que ganhou as eleições, o caso pode mudar de figura.
Governar em minoria relativa é complexo. É necessário que não haja coligação negativa a aprovar uma moção de rejeição do programa do governo apresentado na AR; e é preciso negociar a viabilização dos orçamentos do Estado e das Opções do Plano e, depois, medida a medida.
Até 2015, as forças políticas de oposição nunca se tinham coligado para rejeitar um programa de governo (o do governo de Nobre da Costa foi rejeitado, mas o seu governo não emanou de uma força política parlamentar). Porém, isso aconteceu com António Costa e perfez uma legislatura, o que acontece em vários países da Europa.    
Seja como for, não vale discutir se o candidato a PM foi ou não eleito ou se a vitória eleitoral é conexa com o líder da força política mais votada. À luz da CRP, de pendor parlamentar, não há eleição de PM e de ministros ou secretários de Estado, mas de deputados e da AR.
Por outro lado, um governo minoritário do partido vencedor das eleições só deve ser rejeitado liminarmente na AR, se a maioria opositora for capaz de viabilizar uma alternativa de governo, como sucedeu em 2015, o que a direita não entendeu e, em 2020, o PS/Açores não entendia.
Vital Moreira sustenta que “as coisas ficariam ainda mais simplificadas, se os líderes do PS e do PSD se comprometessem a respeitar o referido critério e a não propor nem votar nenhuma moção de rejeição contra o que, de entre ambos, tendo vencido as eleições, se apresentar à frente de um governo minoritário perante a AR”. Porém, entendo que os partidos devem fazer as suas propostas programáticas e debater as ideias de governação, mas deixar estes cenários para depois.
Apesar de ser expectável que o programa de governo minoritário será rejeitado na AR, o partido vencedor das eleições, mesmo com escassa maioria relativa, tem prioridade em ser chamado a formar governo pelo PR e a submetê-lo ao escrutínio na AR. Embora tal regra não resulte da CRP, sempre foi seguida até aqui, mesmo com Cavaco Silva, em 2015, o que alguns não entenderam. Caso esse partido não desista de formar governo e se apresente perante a AR, o outro partido de governo só deve impedi-lo de assumir funções, se negociar um governo alternativo com maioria parlamentar. Foi o que sucedeu em 2015, com António Costa a declarar, conhecidos os resultados eleitorais, que só votaria contra um governo PSD-CDS, se houvesse solução alternativa.
***
Aceito que o PR faça a projeção de cenários pós-eleitorais e a discuta com o seu estado-maior, mas que a mantenha na reserva do silêncio, para não condicionar as eleições e para não se dizer que só falta indicar-nos o partido em que devemos votar. E não vale a pena acenar com o poder de dissolução da AR, politicamente insustentável contra maiorias parlamentares. Todos estamos cientes do poder da bomba atómica presidencial. Até somos “a maior potência nuclear” (só a funcionar “ad intra”), com tantas dissoluções.  

2024.02.04 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário