terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Guiné-Bissau, com meio século de independência, não tem democracia

 

A 24 de setembro de 1973, em Madina do Boé, o PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde) proclamou, unilateralmente, a independência da Guiné-Bissau e elegeu Luís Cabral presidente do Conselho de Estado. E, a 10 de setembro 1974, depois de vários países terem reconhecido tal declaração, Portugal reconheceu a Guiné-Bissau como país independente, terminando, então, a guerra colonial no território, por força da Revolução dos Cravos.

A Guiné-Bissau (oficialmente República da Guiné-Bissau) tem um histórico de instabilidade política: desde a independência, apenas um presidente eleito, José Mário Vaz, completou, com sucesso, um mandato completo de cinco anos; e só desde 1994, após as primeiras eleições multipartidárias, se criou a Assembleia Nacional Popular (ANP).

Apenas 60% da população fala o Português, como primeira ou segunda língua, tornado língua oficial durante o período colonial. A maioria da população (90,4%) fala o Kriol, língua baseada no Português, enquanto o resto fala uma variedade de línguas africanas nativas. O produto interno bruto (PIB) per capita  é um dos mais baixos do Mundo. Porém, estabelece as convenientes pontes relacionais: é membro da União Africana (UA), da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), da Organização Islâmica, da União Latina, da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), da Francofonia e da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul.

Entretanto, sucedem-se os golpes e contragolpes, o que leva alguns a dizer a que a democracia guineense “está desmembrada na sombra dos olhares europeus”. A par da falta de democracia política, persiste a o crónico défice de desenvolvimento económico e social. É eloquente, neste âmbito, a reportagem de Joana Ascensão, publicada no site do Expresso, a 6 de fevereiro, de que se respigam alguns dados que exprimem as consequências do ambiente político turbulento.   

Fora de Bissau, há falta de tudo: água potável, saneamento e eletricidade; medicamentos, seringas e luvas; crianças e professores nas escolas; asfalto nas estradas; e, obviamente, após a dissolução inconstitucional da ANP e sem novas eleições à vista, a necessária democracia.

A distância de Bafatá (a segunda cidade) a Bissau (a capital) é de 150 quilómetros, praticamente em linha reta, mas a viagem demora três horas, pois o asfalto ou falha ou desaparece por completo.

No breu, a berma deixa ver pequenos focos de luz – de fogueiras ou de lanternas, meios que suplantam a falta de energia elétrica, que atinge 70% da população, toda a que vive fora de Bissau e que precisa de continuar a viver depois do pôr-do-sol.

Enquanto passa, na Rádio, um programa de ensino da língua portuguesa, prepara-se o noticiário que dará conta de confrontos entre a polícia e os alunos do liceu Quemo Mané, em Mansoa, no Norte do território, revoltados na tomada de posse, como diretor, do político indigitado pelo governo de iniciativa presidencial, por, alegadamente, não ter habilitações para o cargo.

Os ânimos estão inflamados. Até o guineense menos atento sabe que o país não anda bem, pois a democracia foi deixada em roda livre, desde que o presidente, Umaro Sissoco Embaló, dissolveu a ANP, alegando a suposta tentativa de golpe de Estado, que não se confirmou. Foi uma medida inconstitucional, porque a ANP não cumprira ainda doze meses, e porque nomeou um governo de iniciativa presidencial, sem ter marcado a data para novas eleições, aventando a hipótese de “lá para outubro ou para novembro, depois da época das chuvas”.

Por conseguinte, sobretudo desde 1 de dezembro, a Guiné-Bissau está em regime de autoritarismo e de impunidade. Por ordens superiores, deputados do PAIGC, o maior partido do país, foram impedidos de entrar na Assembleia Nacional. E o mesmo aconteceu com as visitas à sepultura do líder nacional, Amílcar Cabral, a ponto de os seus familiares quererem a transferência do cadáver para o cemitério municipal de Bissau. Foram proibidas as manifestações e os comícios; os jornalistas foram acusados pelo presidente de serem da oposição; e os Guineenses da diáspora, que vêm criticando este modo de atuação, foram avisados de que, ao voltarem, terão à espera o ministro do Interior, que tutela as políticas.

Partidos políticos como o PAIGC e o PRS (Partido da Renovação Social) têm vindo a terreiro, preocupados com a situação. E, a 3 de fevereiro, a crítica escalou, com o MADEM (Movimento para a Alternância Democrática), partido cofundado pelo presidente, a denunciar a “ditadura”.

Bubacar Turé, jurista e recém-nomeado presidente da Liga Guineense dos Direitos Humanos (LGDH), a 18 de janeiro, dia em que abraçou o cargo, disse que “a democracia está a desaparecer e a dar lugar ao autoritarismo na Guiné-Bissau”. E, ao apresentar o seu relatório, que descreve um país sombrio, denunciou: “Os cidadãos são raptados e espancados, brutalmente, por um grupo de milícias criado pelo regime. Os jornalistas são intimidados e alguns atacados. As decisões judiciais são ignoradas. A oposição democrática é tida como alvo a abater. Estamos a lidar com um regime completamente hostil.”. E, e aludindo a Sissoco Embaló, sem nunca referir o seu nome, atirou: “A vontade de uma única pessoa suplantou a própria Constituição e toda a ordem jurídica. E a autoestima e a esperança dos Guineenses desapareceram.”

No centro de Bissau, a poucos metros do palácio presidencial, aflora a figura citadina da Guiné – com gelados, croquetes e croissants – a contrastar com o país intensamente rural e pobre. Saindo de Bissau, já não há eletricidade, nem água canalizada, nem saneamento. A população organiza-se em tabancas (aldeias), em casas sob a terra, em comunhão com porcos, cabras e galinhas. Em cada tabanca há um “homem grande”, o mais velho, que dita os destinos da comunidade.

Comum a todo o país é a inexistência de serviços básicos. As pessoas compram, nas farmácias, luvas, agulhas e medicamentos, para serem atendidas nos hospitais e nos centros de saúde. Por falta de bolsas de sangue, morrem pessoas, todos os dias, por hemorragias. O sistema de educação está em colapso, com milhares de crianças de fora. As infraestruturas escolares estão em ruína. Miúdos transportam as suas cadeiras de plástico na ida para a escola. E o currículo é obsoleto.

As dificuldades não são de agora, mas pouco tem mudado em décadas marcadas por corrupção e por golpes de Estado. Desde que o país se abriu ao multipartidarismo, na década de 1990, nenhum governo conseguiu cumprir o seu mandato até ao fim. E, mesmo com estas condições gravíssimas, todos os dias se vê um punhado de cidadãos a delapidar os recursos económicos que pertencem ao povo e a privá-lo das suas necessidades básicas, num contexto de impunidade.

O país só parece outro na avenida Amílcar Cabral, que liga a rotunda dos Heróis Nacionais ao histórico Cais de Pidjiguiti e que foi inaugurada recentemente, com o alcatrão intacto. Há mulheres a vender fruta a quem passa; alguns homens descansam nos bancos de jardim colocados no passeio que separa as duas vias; nas mesas do café, refresca-se uma classe social mais abonada, cujo tema de conversa é, invariavelmente, a política. Poucos falam abertamente sobre o que pensam com estrangeiros. O medo e a revolta estão instalados. A legitimação internacional conseguida por Sissoco Embaló, com visitas de variados chefes de Estado e governantes europeus, incluindo portugueses, tem sido assunto corrente, pois a população não entende isso.

António Spencer Embaló, sociólogo e ex-secretário de Estado da Cultura da Guiné Bissau, pelo partido PAIGC, critica o facto de o Presidente da República de Portugal e o primeiro-ministro terem ido a Bissau, a convite do presidente guineense, para celebrar os 50 anos de independência do país, “numa data não celebrável”, porque “toda a gente sabe que a independência da Guiné-Bissau se deu a 24 de setembro de 1973 e toda a gente sabe que há uma forte contestação, inclusivamente do Parlamento [a ANP], àquela celebração”, a 16 de novembro, dia das Forças Armadas. “É terrível para o povo da Guiné-Bissau saber que, nesses momentos históricos, Portugal está a assobiar para o lado”, remata Spencer.

À porta da catedral de Bissau, após a missa de domingo, onde se concentra parte da minoria católica do país, de maioria muçulmana, o septuagenário Domingos Indi, antigo combatente na Luta de Libertação Nacional (contra Portugal), que emigrou para França, nos anos 90, desiludido com o país que ajudou a fundar, lamenta-se por terem perdido “tudo o que era esperança” na criação de bem-estar para o povo e de desenvolvimento do país. Entre os PALOP [Países de Língua Oficial Portuguesa], são “os últimos em tudo”. “O povo guineense é muito pacífico e eu não vejo revolta”, observa Domingos Indi.

Apesar de tudo, sente-se inconformismo, sobretudo na capital. Fora dela, a vida parece ser completamente distante das movimentações do palácio presidencial. É certo que as notícias não chegam, todas da mesma forma, aos dois milhões de pessoas, de mais de vinte etnias diferentes, na sua maioria muçulmanas, que coabitam no país do tamanho da região do Alentejo português, mas tem crescido a sensação de que o grito não tarda a ser ouvido.

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Em dezembro, a decisão de Umaro Sissoco Embaló de dissolver a ANP não surpreendeu os Guineenses, que viveram os últimos quatro meses entre a esperança da expressão “é desta que o país avança” e a espera por “mais um golpe, como já é tradição”. A população quebra o silêncio para falar apenas da “canseira” de uma vida a contar trocos, diariamente, mas que encerra o peso da instabilidade política, num país onde nunca um governo levou o mandato até ao fim. E Domingos Simões Pereira, presidente da ANP, qualificou o gesto presidencial como golpe de Estado constitucional, pois a dissolução aconteceu seis meses depois das eleições legislativas de 4 de junho de 2023 e quatro meses decorridos desde a posse do governo de coligação Plataforma Aliança Inclusiva (PAI)/Terra Ranka, liderada pelo PAIGC. E, ao mesmo tempo, acusa o presidente e primeiro-ministro de Portugal, país democrático, de se deixarem usar por Sissoco.

Por seu turno, Dautarin da Costa, sociólogo, professor universitário e ex-ministro da Educação (2019-2020), diz que a pesada herança do colonialismo não desapareceu em 50 anos de independência. Com efeito, “as lógicas de dominação e de exploração continuam, só que o colono tem outra cor”, o que dá para concluir que é relativamente fácil descolonizar países, mas é difícil descolonizar mentalidades. No entanto, mostra-se otimista, sentindo um fôlego emergente na nova geração que apresenta “movimentos coletivos, não muito organizados, mas com um denominador comum”, que estão a dar algum fôlego à crença de que a Guiné-Bissau poderá, um dia, vir a ser o país idealizado por Amílcar Cabral.

Presentemente, o travão ao avanço da democracia é a impunidade do presidente, segundo dizem antigos combatentes e novéis ativistas, enquanto a LGDH expressa a sua preocupação por o significado da independência não se ter traduzido em melhorias concretas para o povo.

O economista Abdulai Djaló acredita que, em termos financeiros, a Guiné-Bissau pode melhorar bastante ao longo das próximas cinco décadas, especialmente se desenvolver indústrias que contribuam para o crescimento das receitas estatais. E Nelvina Barreto, antiga ministra da Agricultura, defende, do ponto de vista político e social, um modelo de “governação partilhada” e a revisão dos indicadores de Saúde e de Educação, para promover o desenvolvimento do país.

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Enfim, é pena que um pequeno país, já cinquentenário, seja objeto de crescimento da pobreza, por via de conflitos internos, mas é bom que, no meio do caos político, económico e social, em que as pessoas sofrem, se erga, para durar, a chama da esperança.

2024.02.13 – Louro de Carvalho

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