segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Cristo suportou as nossas enfermidades e assumiu as nossas dores

 

A liturgia do 5.º domingo do Tempo Comum, no Ano B, confronta-nos com problemas que, desde sempre, inquietaram as pessoas e que têm a ver com o sentido do sofrimento e da dor que marcam a caminhada humana pela terra e com a postura de Deus, face aos dramas existenciais do homem.

A Palavra de Deus não tem respostas absolutas para estas questões, mas certifica-nos de que o plano de Deus, para nós, é a felicidade e a vida infindáveis, o que é fundamental.

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Em primeira leitura (Jb 7,1-4.6-7), o crente Job comenta, amargamente, o facto de a sua vida estar atormentada pelo sofrimento atroz e o de Deus parecer indiferente à sua sorte. Porém, é a Deus que Job se dirige, pois sabe que Ele é a sua única esperança e que fora d’Ele não há salvação.

O Livro de Job, uma das pérolas da literatura universal, expõe uma reflexão sobre as grandes questões que se colocam ao homem: Qual o sentido da vida e do sofrimento? Qual a situação do homem ante Deus? Qual o papel de Deus na vida e nos dramas do ser humano?

Job é um homem piedoso, bom, generoso e cheio de “temor de Deus”. Possuía muitos bens e uma família numerosa. De súbito, viu-se privado de todo o seu património, perdeu a família e foi atingido por doença grave.

O seu drama, pormenorizadamente apresentado nos dois primeiros capítulos do livro, introduz a reflexão sobre a retribuição, um dos grandes dogmas da fé israelita. Segundo a catequese tradicional, Javé recompensa os bons pelas boas obras e castiga os maus pelas injustiças e arbitrariedades que praticam. A justiça de Deus é linear, lógica, imutável. Javé é previsível, faz a contabilidade das ações do homem e paga em conformidade. Contudo, a vida desmente, por vezes, esta visão de Deus e do seu modo de agir. Não raro, os maus têm bens em abundância e vivem vida longa e feliz, enquanto os justos eram pobres e sofriam a injustiça e a violência dos poderosos. E o dogma não responde ao problema do sofrimento do inocente.

Job discorda dessa teologia e, a partir da sua experiência, denuncia a fé instalada em teorias desligadas da vida. Não aceita as falsas imagens de Deus fabricadas pelos teólogos israelitas. Como não pode aceitar esse deus falso, parte em demanda do verdadeiro rosto de Deus. E, em busca emotiva, dramática, temperada pelo sofrimento, pela rebeldia e pela revolta, chega ao “face a face” com Deus, descobrindo um Deus omnipotente, desconcertante, incompreensível, que ultrapassa a lógica humana, mas que ama, com amor de Pai, cada uma das suas criaturas.

Job reconhece a sua pequenez, finitude e incapacidade para compreender o plano de Deus, a vacuidade da pretensão de julgar Deus e de entendê-Lo, à luz da lógica humana. Por isso, decide trilhar a única rota que faz sentido: entrega-se totalmente nas mãos de Deus.

O trecho em apreço integra o corpo central do livro (Jb 3,1 – 31,40). Aí temos um diálogo entre Job (crente inconformado, polémico, contestatário) e quatro amigos (defensores da teologia tradicional). Job desfaz os argumentos da catequese oficial e expõe a sua insatisfação e revolta, num desafio ao deus falso que os amigos lhe apresentam e que Job não aceita. O primeiro dos amigos a falar é Elifaz de Teman. Job responde, refletindo sobre o sentido da vida. E, para mostrar como a vida é dura, Job utiliza três exemplos: o soldado, condenado a uma existência de luta, de risco e de sujeição; o escravo, condenado a uma vida de trabalho, de tortura e de maus tratos (só os breves descansos, à sombra, lhe dão algum alívio); e o trabalhador assalariado, condenado a trabalhar duramente de sol a sol (embora receba o salário). Estes são os três estados considerados mais penosos e miseráveis da vida do homem.

Contudo, Job sente a sua situação ainda mais terrível. A dor que lhe enche a existência cansa mais do que o trabalho do assalariado; a sua infelicidade é mais dorida do que a vida do soldado; o seu desespero é mais pesado do que a sujeição do escravo. Job não tem descanso, nem de noite nem de dia, e a sua desilusão não é atenuada com a esperança de recompensa.

Depois de traçar o quadro da sua existência, Job dirige-se diretamente a Deus e pede-lhe que recorde a triste situação do seu servo. O trecho desta liturgia termina no v. 7, mas a oração de Job continua até ao final do capítulo. As suas palavras são de desespero, de amargura e de revolta contra o Deus incompreensível e prepotente que Se recusa a pôr fim ao drama do amigo. O grito de revolta de Job brota do coração dorido e é a expressão da angústia do homem que, na miséria, se sente injustiçado e condenado pelo próprio Deus; e é o grito do crente que, sentindo-se à deriva, sabe que só no seu Deus pode encontrar a esperança e o sentido para a vida.

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Evangelho (Mc 1,29-39) mostra-nos a serenidade, a oração e a ação do Homem que sofreu mais do que Job. Estamos na primeira parte (cf Mc 1,14-8,30) do Evangelho de Marcos. Nela, Jesus é apresentado como o Messias que proclama o “Reino de Deus”.

Marcos faz-nos acompanhar Jesus até à casa de Pedro onde está preparada, para Ele, a refeição de sábado. A casa, segundo os dados arqueológicos ficava a 40 metros da sinagoga de Cafarnaum. Mas, na agenda de Jesus para o dia, havia mais um compromisso: ao anoitecer, encontra-se com “a cidade inteira”, reunida à porta da casa de Pedro. Estes quadros fazem parte da “jornada de Cafarnaum” (Mc 1,21-39): a descrição de um dia típico de Jesus, no cumprimento da missão que o Pai lhe confiou.

A casa de Pedro e André está cheia de discípulos. Está lá a sogra de Pedro, que pertence àquela casa de família. E os que estão dentro são a família de Jesus (“o que fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe”). Pedro ocupa, ali, um lugar de referência.

Um dos membros da família – a sogra de Pedro – estava em debilidade (“estava de cama com febre”); mas Jesus, que veio para dar vida, aproxima-se dela e cura-a. O episódio é descrito com sobriedade, sem gestos teatrais. Porém, sobressaem três pormenores. O primeiro é a indicação de que Jesus “aproximou-Se” da doente. A iniciativa de Se aproximar de quem está prisioneiro do sofrimento é de Jesus. Toma a iniciativa, pois a missão que recebeu do Pai é realizar a libertação do homem de tudo o que o faz sofrer e lhe rouba a vida. O segundo é a indicação de que Jesus tomou a doente pela mão e “levantou-a”. O verbo utilizado (o verbo grego “egueirô” – “levantar”) aparece em contextos de “ressurreição”. A mulher está prostrada pelo sofrimento que lhe limita a possibilidade de viver em pleno; mas o contacto com Jesus, que lhe devolve a vida, equivale à ressurreição. O terceiro é a indicação de que ela “começou a servi-los”. O efeito do contacto com Jesus e do dinamismo de vida que d’Ele brota é a atividade expressa no serviço aos irmãos.

No final do dia, Marcos leva-nos a acompanhar Jesus até à porta da casa. Está ali reunida “a cidade inteira”. O sol já se pôs, as trevas mergulharam toda a gente em escuridão, sem esperança. Só Jesus, no papel de Messias libertador, é capaz de lhes devolver a luz. Jesus “curou muitas pessoas que eram atormentadas por várias doenças e expulsou muitos demónios”. Tais enfermos e possessos do demónio representam os privados de vida, os prisioneiros do sofrimento, da injustiça, do egoísmo, do pecado. O evangelista convida-nos a ver em Jesus Aquele que tem poder para libertar o homem das misérias mais profundas e para lhe dar vida nova, vida livre e feliz.

A “casa de Simão Pedro” (onde Jesus atua e diante da qual se reúne “toda a cidade” à procura da libertação) pode ser – nesta catequese – uma representação da Igreja. É aí que Jesus oferece à família de Pedro, ou seja, à sua comunidade) vida em abundância. Nesse espaço familiar, Jesus aproxima-Se dos homens, liberta-os do sofrimento que aliena, dá-lhes vida definitiva e capacita-os para o serviço aos irmãos. A multidão que se reúne à porta da casa de Pedro representa a Humanidade que busca a libertação e a vida verdadeira e que olha para a “casa de Pedro” (a Igreja) à procura de Jesus e da sua proposta libertadora.

No quadro final, antes de concluída a jornada, o evangelista convida-nos a olhar para Jesus, retirado num lugar solitário, em oração. A oração, o tempo para o encontro e para o diálogo com o Pai, não podia faltar num dia típico de Jesus. A oração é, para Ele, “o cume e a fonte da ação”.

Assim, a oração aparece como condição para o surgimento do Reino. É nela que Jesus encontra a motivação para a sua ação em prol do Reino e a força para Se libertar da tentação da popularidade fácil e para centrar, de novo, a atenção em Deus e no seu desígnio. O encontro a sós com Deus não é alienação, fuga dos problemas do Mundo, mas momento de comunhão com Deus, que nos ajuda a perceber o plano de Deus para o homem. A oração torna-se, pois, a rampa de lançamento para o nosso compromisso com a transformação do Mundo.

Alimentado pelo diálogo com o Pai, Jesus retoma a missão e parte ao encontro das povoações vizinhas a anunciar, em palavras e em gestos libertadores, a Boa Notícia do Reino de Deus. Não vai sozinho (“vamos”, diz): a missão de anunciar a libertação diz respeito aos discípulos que estiveram com Jesus na “casa de Pedro”, aos de ontem, aos de hoje, aos de sempre.

Manifesta-se, aqui, a eterna preocupação de Deus com a felicidade dos filhos. Na ação libertadora de Jesus em prol dos homens, começa a manifestar-se o Mundo novo, sem sofrimento, sem opressão, sem exclusão, que Deus sonhou para os seus filhos. E o texto sugere que a ação de Jesus tem de ser continuada pelos discípulos.

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Na segunda leitura, (1Cor 9,16-19.22-23) Paulo de Tarso revela aos Coríntios – e aos crentes de todas as épocas e lugares – que o amor é o princípio fundamental que guia cada um dos seus passos. Foi por amor que ele se fez servidor do Evangelho, sem exigir nada de ninguém.

No Mundo grego, os templos eram os principais matadouros de gado. Os animais eram oferecidos aos deuses e imolados. Uma parte do animal era queimada; outra parte pertencia aos sacerdotes; e havia as sobras, que o pessoal do templo comercializava. Essas sobras encontravam-se à venda nas bancas dos mercados e entravam na cadeia alimentar. No entanto, tal situação suscita alguns problemas aos cristãos: comprar essas carnes e comê-las pode significar compromisso com os cultos idolátricos. E que fazer, quando se é convidado para comer em casa de um amigo e nos servem carnes provindas dos templos pagãos?

Questionado pelos Coríntios sobre estas questões, Paulo foi respondeu, que, uma vez que os ídolos não existem, comer dessa carne não é problema. Porém, sendo o mais importante não escandalizar os mais débeis, se houver esse perigo, deve evitar-se comer a carne de animais imolados aos ídolos, a fim de não faltar à caridade.

Contudo, o apóstolo vai além da questão concreta dos Coríntios e enuncia um princípio que vale para qualquer situação: o fundamental não é o que tenho o direito de fazer, mas que sejam os meus comportamentos guiados pelo amor. Ora, o amor pode exigir que eu renuncie à minha liberdade e aos meus direitos, em prol de um bem maior. Para ilustrar esta doutrina, Paulo dá o seu exemplo: renunciou, muitas vezes, aos seus direitos, por causa do amor aos irmãos. Escolhido por Deus para ser apóstolo, como apóstolo, podia reivindicar viver à custa do Evangelho. Porém, nunca exigiu nada, porque o que o preocupa é o benefício das comunidades e dos irmãos.

A tarefa de anunciar o Evangelho não foi, para apóstolo, emprego que lhe dava jeito ou carreira apetecível, mas obrigação que lhe foi imposta. É uma afirmação surpreendente, mas sente-se obrigado a anunciar o Evangelho, desde “aquele dia”, o dia em que, no caminho de Damasco, encontrou Cristo e se apaixonou por Cristo e pelo seu projeto de libertação. É essa paixão que o obriga a dar testemunho da Boa Nova de Jesus. Sente que, se não tivesse agarrado essa missão com todas as forças e com todo o querer, a sua vida deixaria de fazer sentido. A exclamação “Ai de mim se não anunciar o Evangelho!” traduz esse imperativo que sente e que brota do seu amor a Cristo, ao Evangelho e aos homens. Por amor, Paulo renunciou à própria liberdade e pôs a sua vida ao serviço de Cristo e do Evangelho.

Ao dedicar toda a vida ao serviço do Evangelho, teria direito a receber o seu sustento dos que beneficiam do seu trabalho missionário, mas nunca recebeu qualquer pagamento. Sempre agiu por amor. E, quando se ama, a recompensa deixa de ser importante. Por amor, Paulo renunciou aos seus direitos e fez-se “servo de todos”, renunciou aos próprios interesses e benefícios pessoais e identificou-se com os fracos, fez-se “tudo para todos”. Com efeito, a lei fundamental e decisiva da vida de Paulo é o amor. O amor está acima da liberdade e sobrepõe-se até aos mais legítimos direitos da pessoa. É de acordo com este pressuposto que os discípulos de Cristo devem viver.

2024.02.05 – Louro de Carvalho

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