sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

A vida das pessoas não pode ser confiada exclusivamente à tecnologia

 

A 15 de janeiro, a BBC recordou os dias dramáticos dos chefes de postos de correio. O caso não era muito conhecido. Terá começado antes do fim do século XX e continuado até 2015. Durante este período, muitos chefes de postos de correio britânicos de pequenas cidades ou de áreas rurais (em Inglês subpostmasters: parceiros de franquia ou proprietários de empresas independentes) passaram a ser acusados de roubo, de fraude e de falsificação de contabilidade financeira. Eram incriminações-chapa: subtraíam dinheiro das contas bancárias dos postos que dirigiam. E as condenações incidiram em centenas de pessoas, provocaram, em casos extremos, suicídios e, mais comummente, penalizações variadas, incluindo a prisão e o público enxovalho.

As contas feitas no papel estavam certas, mas o sistema informático assinalava grandes défices. Porque uma cláusula contratual ditava que eram os responsáveis por qualquer desaparecimento de dinheiro, ficavam alarmados. Não os tranquilizavam os telefonemas para a assistência técnica. A cada um era dito não haver outros relatos de problemas idênticos, pelo que ficava sozinho no drama. O problema coletivo tornava-se sarilho individual. A alternativa era pagar, de imediato, o défice, em dinheiro, ou enfrentar julgamento, com alta probabilidade de ir parar à prisão.

O caso tem sido falado, nos últimos tempos, porque o primeiro-ministro (PM) do Reino Unido (UK), Rishi Sunak, foi instado a promover a anulação das sentenças condenatórias dos chefes de postos de correio do país. A resolução surge justificada por ter ficado comprovado que houve uma tremenda injustiça. A culpa era da informática (dos informáticos ou dos chefes dos informáticos): um sistema de software desenvolvido pela empresa japonesa Fujitsu fornecia dados incorretos sobre faturação. A inquestionável informática tinha a responsabilidade pelo que Rishi Sunak considerou como um dos maiores erros judiciais da História do Reino Unido.

A resolução do PM foi acelerada pela exibição televisiva da série Mr Bates vs the Post Office e por 2024 ser ano de eleições gerais. Transmitida, no início de janeiro, pelo canal britânico ITV, em quatro episódios, a história de Alan Bates, chefe de posto de correio protagonista da campanha contra a injustiça, foi vista por nove milhões de espectadores. A BBC anotava que a série, ao evidenciar a magnitude do escândalo, provocou tanta indignação que, rapidamente, levou a alcançar o que não tinha sido possível lograr ao longo de décadas de reclamações e de protestos.

Citado pela BBC, Toby Jones, o ator que interpreta Alan Bates, fez profissão de fé no duradouro valor da arte dramática no progresso da consciencialização pública e dos debates nacionais. Portanto, a série tem o crédito de haver fornecido a empatia necessária para suplantar os muitos anos de indiferença, cumulada de cinismo que nem a persistência de Bates contrariou.

A saga dos chefes de postos de correio britânicos “é um drama real de vidas destruídas pelo mau funcionamento de apenas um programa de software e pela cultura tóxica de uma empresa pública que deveria ter estado mais vigiada”, assinalou Marta Peirano, a 15 de janeiro, no diário espanhol El País, evocando o caso para incentivar à ponderação das reais consequências de introduzir soluções opacas para modernizar infraestruturas sanitárias, educativas, financeiras e administrativas, em contexto político incentivado por forte exuberância tecnológica e pouco sentido de responsabilidade. A reflexão, como sustenta a jornalista, torna-se pertinente, agora que a inteligência artificial (IA) se apressa a entrar em estabelecimentos de ensino, na administração central e local, nos tribunais, nos centros de saúde e noutros serviços críticos, substituindo o que aí mais falta faz: “melhores condições de trabalho e mais pessoal”.

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Já a 10 de janeiro, o jornal britânico The Guardian publicou uma peça de Peter Walker, Daniel Boffey e Rowena Mason, sob título “Escândalo Horizon: centenas de operadores de correios terão condenações anuladas”, dando conta de uma medida inédita a aprovar pelo parlamento, dentro de meses, “destinada a pôr fim a um dos maiores erros judiciais da História britânica”.

Todavia, advogados seniores, sustentando que isto não deve ser vista como “um precedente”, disseram que a decisão de aprovar um projeto de lei que anula tantos veredictos judiciais é constitucionalmente extraordinária e corre o risco de eliminar a independência do poder judicial, se for vista como um precedente para casos futuros.

Ao anunciar a mudança, dias após a transmissão de um drama da ITV que catapultou a saga para a área política, o PM disse à Câmara dos Comuns que a legislação absolveria todos os condenados no escândalo Horizon. Qualquer pessoa que veja anulada a sua condenação terá a oferta inicial de 600 mil libras ou a possibilidade de avançar com processo de avaliação detalhado, se achar que lhe é devido mais dinheiro. Os que fazem parte de um litígio de grupo separado, que já receberam algum dinheiro, receberão 75 mil libras cada. E serão pagos pelo contribuinte, pelo menos, 450 milhões de libras.

Kevin Hollinrake, o ministro responsável pelos assuntos postais, admitiu que haja pessoas a ter compensação de modo fraudulenta, mas que o risco vale a pena terminar a longa espera.

“Este é um dos maiores erros judiciais na História da nossa nação”, disse Sunak, na resposta a perguntas dos parlamentares. “As pessoas que trabalharam arduamente para servir as suas comunidades tiveram as suas vidas e reputações destruídas, sem terem qualquer culpa. As vítimas devem obter justiça e compensação.” E frisou: “Garantiremos que a verdade venha à tona, que emendaremos os erros passados e que as vítimas terão a justiça que merecem”.

Alan Bates – o postmaster que faz campanha, há 20 anos, a expor o escândalo recebeu o anúncio com a aprovação. “Já era hora, esta era a coisa decente a fazer”, disse ao Times. “Temos todo o país atrás de nós agora. Ainda há muito trabalho a fazer. Uma vez concluído o trabalho, o trabalho está concluído e podemos relaxar um pouco – mas ainda não chegamos lá.”

Também o Partido Trabalhista manifestou o apoio imediato, o que significa que o projeto seria aprovado, no parlamento, sem obstáculos. Porém, as organizações jurídicas disseram que os ministros deveriam garantir ao parlamento, e na lei, que se trata de um caso único. David McNeill, da Law Society, disse: Estamos a olhar para baixo com uma espécie de sensação incómoda de vertigem? Sim, estamos. Viola um princípio fundamental que é, efetivamente, o governo legislar contra as decisões, contra a independência dos tribunais. São circunstâncias excecionais, é uma medida extraordinária. Não deve, nunca deve, ser vista como um precedente.” E Sam Townend KC, presidente do Conselho da Ordem, prometeu exame cuidadoso das propostas, pois é necessário “garantir a independência do poder judiciário”; e “o governo deve ser cuidadoso, ao estabelecer precedentes legais e constitucionais”.

Downing Street, ou seja, o gabinete do primeiro-ministro, disse que este passo não foi tomado de modo leve e que foi consultado o judiciário. E, mais tarde, o primeiro-ministro da Escócia, Humza Yousaf, afimou que todos os condenados na Escócia, como parte do escândalo, serão inocentados. Escrevendo a Sunak, disse que queria trabalhar com o governo do UK, para garantir que as vítimas serão inocentadas. Efetivamente, uma lei como a proposta por Sunak para anular as condenações não teria efeito na Escócia, mas Yousaf indicou que um consentimento legislativo do parlamento escocês será a forma mais rápida de garantir que fosse aplicada a norte da fronteira.

Falando à BBC, Hollinrake aceitou que a resposta foi acelerada pelo drama da ITV “Mr Bates vs the Post Office”, transmitido em quatro partes, uma semana antes, que narrava a história de Alan Bates, operador dos correios que liderou a campanha contra a injustiça. “É claro que respondemos à pressão pública. É para isso que estamos aqui”, disse Hollinrake. “Isto é o governo. As coisas vão para a pilha “muito difícil”. Há muitas partes interessadas diferentes envolvidas no governo.”

Embora o plano inocente e compense, rapidamente, as mais de 900 pessoas processadas pelos Correios, injustamente acusadas de receber dinheiro, entre 1999 e 2015, continua a disputa política paralela sobre a responsabilidade pelo caso.

O anúncio do plano por Sunak foi feito em resposta a uma pergunta formulada por Lee Anderson, vice-presidente do partido Conservador, que apelou a que Ed Davey, que foi ministro responsável pelos assuntos postais de 2010 a 2012, renunciasse ao cargo de líder Liberal Democrata.Parte inferior do formulário Porém, a atenção incidiu também nas ligações dos conservadores à Fujitsu, que forneceu o software de contabilidade Horizon defeituoso, no qual se basearam as condenações.

Simon Blagden, um conservador que preside à agência governamental Building Digital UK, foi referenciado pela Fujitsu UK, em 2015, como membro da sua equipa de liderança que fez parte do conselho de negócios responsável do Reino Unido e da Irlanda, além de ser presidente de uma das subsidiárias, a Fujitsu Telecomunicações, durante 14 anos, de 2004 a 2019.

O governo disse que Blagden “não estava, de forma alguma, envolvido” no projeto Horizon e que a Fujitsu Telecommunications era “uma organização separada”.

Há questões complicadas para alguns funcionários de Whitehall sobre a sua supervisão dos Correios, incluindo funcionários públicos que faziam parte do seu conselho em nome do governo. Susannah Storey, agora secretária permanente do Departamento de Cultura, Media e Desporto, e Richard Callard e Tom Cooper, dos Investimentos Governamentais do Reino Unido, eram diretores não executivos dos Correios e, provavelmente, serão chamados a depor no processo público em curso sobre as condenações.

Apresentando o plano na Câmara dos Comuns, Hollinrake disse, após o discurso de Sunak, que os operadores dos correios condenados durante o período relevante seriam convidados a assinar uma declaração, garantindo que não cometeram um crime e que poderiam ser processados ​​por fraude, se esta fosse falsa. “Não pretendo dizer à Câmara que este é um dispositivo infalível, mas é um dispositivo proporcional que respeita o calvário que essas pessoas já sofreram.”

As duas classes de compensação – 600 mil libras e 75 mil libras – refletem o facto de o segundo grupo, de 555 pessoas, fazer parte de uma ação judicial de grupo que recebeu compensação, através de um acordo dos Correios, em 2019. Grande parte do pagamento de 43 milhões foi para custas judiciais, e os do grupo que acreditam ter direito a mais de 75 mil libras também podem passar pelo processo de avaliação. Hollinrake disse esperar que os que foram processados, ​​​​após participarem de um esquema-piloto do software, também seriam elegíveis para compensação.

Os Correios processaram mais de 900 proprietários-operadores de agências com base em informações do sistema Horizon. Embora tenham admitido a culpa, até dezembro só 142 revisões de casos de recurso foram concluídas. Destas 93 condenações foram anuladas, com 54 mantidas, retiradas ou recusadas a permissão de recurso.

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Quem não se lembra das erradas e erráticas colocações de professores (a lecionar disciplinas para as quais não tinham o mínimo de conhecimento) no ano letivo de 1976/77, com a desculpa de que “foi o computador”? Quem não se lembra do caos do concurso de professores para o ano letivo de 2004/2005, que só foi resolvido em outubro, por substituição da equipa de procedimentos do Ministério da Educação e pela intervenção de outra empresa informática? Quem nunca foi cilindrado por um lapso informático, por um erro bancário ou fiscal? Quantos professores não foram obrigados a fazer sumário na plataforma nos primeiros cinco minutos de aula?

Recentemente, soube de uma criança de “oito anos” (1.º ciclo), a qual, porque alguém se esqueceu de a inscrever para almoço na plataforma, foi inibida de almoçar na escola.

Em contrapartida, eu próprio vi-me em dificuldade para submeter ao fisco um formulário, mas, pedida ajuda a um funcionário, que simpaticamente a prestou, resolvi o problema por mim.     

É preciso menos deslumbramento pela tecnologia e mais respeito pelas pessoas. A tecnologia é facilitadora, e não substituta de pessoas. Quando ela falha, as pessoas devem ser ajudadas. Não me venham dizer que a IA pode substituir a mão humana em escolas, hospitais, segurança social, banca, etc.!

2024.02.02 – Louro de Carvalho

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