terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

A guerra dos militares contra os católicos de Sagaing

 

Os descendentes de católicos portugueses viveram pacificamente, no centro de Myanmar, durante séculos, mas, desde o golpe de 1 de fevereiro de 2021, enfrentaram a crueldade de um exército impregnado de nacionalismo budista.

Uma reportagem, de 25 de agosto de 2023, da edição em Inglês da revista birmanesa Frontier Myanmarrefere que, um autocarro obrigado a parar num posto de controlo militar, no município de Ye-U, na região de Sagaing, uma mulher de 31 anos sobressaía pela altura, pelos olhos azuis e pelas caraterísticas faciais incomuns. E um soldado exclamou: “Vou levar este  kalar ma [termo depreciativo mais aplicado a muçulmanos e sul-asiáticos] para interrogatório durante algum tempo. O resto pode seguir.”

Temendo o que iria acontecer, os aldeões Chan Thar protestaram, o que gerou furiosa repreensão da parte dos soldados, que apontaram ameaçadoramente as armas para os passageiros. Estes gritaram com os soldados e imploraram, mas os soldados disseram que, se não fossem, matariam todos os passageiros e queimariam o autocarro. Os passageiros ficaram com muito medo e nada podiam fazer para deterem os militares.  

A mulher em causa foi rudemente arrastada para fora de vista, pelos soldados e, quando o autocarro se afastou com relutância, foram ouvidos dois tiros.

A aldeia de Chan Thar é famosa por ter uma grande população de Bayingyi, ou seja, católicos romanos de ascendência portuguesa que vivem em Myanmar, há séculos. Após centenas de anos de casamentos mistos, muitos são, agora, fisicamente indistinguíveis das populações vizinhas de Bamar, mas outros destacam-se. Isto pode ser perigoso, em Mianmar, onde os militares pregam um tipo tóxico de supremacia Bamar e de nacionalismo budista.

A 12 de outubro de 2022, a mulher em causa foi à cidade de Ye-U comprar suprimentos para a sua loja. Como de outras vezes, passou por postos de controlo ocupados tanto por militares como por grupos armados, formados em oposição ao golpe, amplamente conhecidos como Forças de Defesa Popular (PDF). Ela era frequentemente chamada de lado, para interrogatório pelos militares, devido à sua aparência incomum, e questionada sobre sua etnia e de onde era.

A mulher que a acompanhava, de regresso à aldeia, contou à família o que havia acontecido. E, naquela noite, o PDF local atacou o posto de controlo militar, recuperando um corpo queimado de mulher com ferimentos de bala. Era o corpo da mulher desaparecida.

A aldeia de Chan Thar fica a cerca de 10 quilómetros a oeste da cidade de Ye-U e é um dos aglomerados Bayingyi mais proeminentes do país. Antes do golpe, tinha cerca de 530 famílias e uma população de dois mil habitantes, a maioria dos quais católicos romanos. A sua presença é uma caraterística incomum da Zona Seca do centro de Mianmar, o coração de Bamar.

Chegaram ao que é hoje Nyanmar, pela primeira vez, no final do século XVI, comerciantes e aventureiros portugueses, incluindo Filipe de Brito e Nicote, que governou Síria, cidade portuária perto da atual Yangon, antes de ser derrotado e empalado pelo rei da dinastia Taungoo, Anaukpetlun. O rei reuniu quatro mil a cinco mil dos restantes colonos portugueses e mandou-os para o Norte, para a capital real de Ava, na Zona Seca, onde o sucessor, o rei Thalun, lhes concedeu terras no interior rural do que é, hoje, a região de Sagaing.

Quase um ano após o assassinato da mulher em referência, a aldeia de Chan Thar foi quase completamente destruída por repetidos ataques militares e por incêndios criminosos. Como a maioria dos moradores, ela e a família tiveram de se mudar e fugiram em abril de 2022.

Um residente de Chan Thar, cuja casa foi incendiada em 2022, disse que a aldeia fora invadida sete vezes, com sete civis mortos confirmados e mais cinco desaparecidos e presumivelmente mortos. Isso aconteceu duas vezes, em 2021, três vezes, em 2022, e duas vezes, em 2023. Supostamente foram alvo com frequência, porque se trata de “uma aldeia cristã”.

Dois dos civis assassinados teriam sido mortos durante uma operação de cerca de 130 soldados, em 10 de janeiro de 2022. Ambas as vítimas apresentavam ferimentos que mostravam sinais de tortura grave, segundo um membro do Ye-U PDF, que disse ter sido uma vítima encontrada com as mãos amarradas nas costas e a cabeça afundada. Depois, as tropas escreveram mensagens grafitadas, prometendo matar também todos os outros kalar da aldeia.

Tais mensagens ameaçadoras foram tema comum nas entrevistas nas aldeias de Bayingyi. E Frontier viu várias fotografias que mostram frases similares rabiscadas nas paredes dos edifícios.

A sensação é de que os militares odeiam aquela gente. Por todo o lado, escreviam frases como “Sai do kalar.” E, em maio de 2023, os militares destruíram quase todos os edifícios da aldeia.

Antes, quando uma coluna militar partia, os aldeões voltavam a correr, para verem de quem era a casa que havia sido incendiada e de quem eram as que ainda estavam de pé, mas, agora, quase todas as casas pegaram fogo, pelo que não há necessidade de verificar.

Os militares nem sequer pouparam as igrejas, muitas das quais têm centenas de anos, o que deixou os residentes com o coração partido, sobretudo quando destruíram a igreja da Assunção de Maria, que foi construída em 1894.

Em maio de 2022, foram divulgados vídeos nas redes sociais que mostram os restos carbonizados da aldeia de Chaung Yoe, no município de Taze, ao norte de Ye-U. Entre as ruínas, estavam os destroços de uma igreja de 120 anos. “Desde o ano passado [2022], não consigo regressar”, disse um residente, que se abrigou numa aldeia próxima.

Ko Saw, membro do grupo de resistência da Organização das Forças Especiais Khin-U, disse que, além da perseguição religiosa, os militares têm como alvo igrejas, para privar os civis de abrigo. Há décadas que os militares têm como alvo populações civis que suspeitam apoiar os opositores armados, na tentativa de isolar esses opositores do acesso a alimentos, fundos, informações e novos recrutas. “Os militares sabem que os edifícios religiosos podem abrigar mais pessoas. Por isso, geralmente, destroem-nos, bem como as escolas, aonde quer que vão”, disse.

O católico de mais alto escalão de Mianmar membro da comunidade Bayingyi, o arcebispo de Yangon, cardeal Charles Maung Bo, que nasceu na aldeia de Mon Hla, no município de Khin-U, noutra parte de Sagaing, gerou polémica, em 2021, por ter sido fotografado a celebrar o Natal com o líder golpista, general Min Aung Hlaing. Em curta mensagem, Bo apelou a “esforços extraordinários para trazer a paz”, nomeadamente através do perdão, da reconciliação e do diálogo. Todavia, o seu contacto com o chefe militar não protegeu Mon Hla da infernal campanha de incêndio criminoso que envolveu Sagaing. Em novembro de 2022, os militares atacaram a aldeia com helicópteros e com tropas terrestres, destruindo centenas de casas e fazendo três civis mortos, incluindo uma criança de sete anos. 

Ko Saw disse que um ataque anterior, em julho de 2022, matou um civil, enquanto outros cinco foram sequestrados. Dois dos seus corpos foram recuperados posteriormente, ao passo que os outros três nunca mais foram vistos e teme-se que estejam mortos.

O cardeal compartilhou um bolo de Natal com o líder do conselho militar. Um residente de Mon Hla, que ficou desapontado, ao ver isto, ainda pensou que, pelo menos, ajudaria a proteger a aldeia. No entanto, os militares atacaram a aldeia e queimaram-na. Destruíram a igreja e a casa do cardeal, de quem nada se pode esperar, pois não consegue nem proteger sua própria casa.

Ko Myo, um combatente da resistência, dizendo que o tratamento brutal dado pelos militares aos Bayingyi mostra o seu ódio pelas minorias religiosas, aduziu que, em 2022, os militares também atacaram a aldeia de Nabet, um aglomerado de Bayingyi no município de Myaung, em Sagaing, e deixaram um cadáver com uma advertência escrita: “Todos vós deveis morrer assim.”

“As pessoas das aldeias de Bayingyi têm maior probabilidade de serem mortas se encontrarem soldados. Embora os militares estejam a matar todas as pessoas, independentemente da raça, é óbvio que estão mais dispostos a usar a violência contra os não-budistas”, disse ele.

O capitão Paing Satt, um militar Tatmadaw (designação do exército de Nyanmar) estacionado no Comando Noroeste, em Monywa, capital de Sagaing, disse não haver ordens para discriminar o povo Bayingyi, mas os seus comentários revelaram profundos preconceitos e incapacidade de diferenciar entre combatentes e civis. “Você quer dizer as tribos portuguesas? Parecem-se com kalar e praticam o cristianismo, não é? Muitos deles são rebeldes indisciplinados que passaram por treino militar com o KIA [Kachin Independence Army: Exército da Independência de Kachin] para lutar contra o governo”, discorreu.

O KIA luta, há décadas, pela independência do povo Kachin, em que há muitos cristãos. Desde o golpe, aliou-se ao levante pró-democracia, treinando e armando grupos do PDF. Através destes grupos, alargou o seu alcance do Estado de Kachin para sul, até ao interior de Sagaing.

“Os militares têm de eliminar os que não praticam pacificamente a sua religião”, disse Paing Satt. “Se o Bayingyi se rebelar, o Bayingyi deve ser eliminado. Se o kalar se rebelar, o kalar deverá ser eliminado.”

***

Entretanto, uma reportagem do diário francês Le Monde dava conta, a 5 de fevereiro, da ação de um destacado monge budista (ashin, isto é, venerável), que foi um dos líderes da “revolução de açafrão”, em 2007, em que, pela primeira, vez os monges afrontaram o regime militar da altura, e que deixou o seu exílio na Noruega, para ir dar apoio à resistência birmanesa.

Neste país, cujos 50 milhões de habitantes são esmagadoramente (85%) budistas, uma acentuada pobreza, sobretudo na Zona Seca, leva muitos a verem os mosteiros como espaços de acolhimento, onde se pode ter uma vida com o básico assegurado. Muitos pobres encaminham para lá os filhos. E é tradição do país que todos passem alguns períodos da vida num mosteiro.

O monge budista, nomeado apenas por H., viajou com o enviado especial de Le Monde e com um negociante muçulmano da Malásia, por zonas controladas pela resistência; acendeu uma vela a Maria, em terra cristã, e encontrou-se com uma religiosa franciscana que veio dar apoio. Com efeito, o exercício do ecumenismo é uma preparação para a futura coexistência dos diferentes em democracia. Para ele, tal como para o governo clandestino e para a resistência, o objetivo da luta, uma vez derrotada a junta, é estabelecer uma “democracia federal”, na qual os cidadãos não tenham de se identificar pela religião e pela etnia a que pertencem, como agora acontece, mas só como birmaneses. E, na mesma linha, os Rohingya, minoria muçulmana no estado de Arakan, na fronteira com o Bangladesh, não podem ser considerados apátridas no seu próprio país, o que terá de passar por revogar as leis de nacionalidade em vigor.

O monge H. é o contraponto da deriva extremista e ultranacionalista do budismo, que a atual junta militar tem instrumentalizado para se legitimar.

A AILD – Associação Internacional de Luso-Descendentes, com sede em Lisboa, anunciou o lançamento de uma campanha de angariação de fundos para mitigar as perdas que afetaram várias das aldeias bayingyis, com antepassados portugueses, que foram inteiramente queimadas.

Considerando o momento que vivem essas comunidades como muito difícil, a AILD frisa que os bens das pessoas foram destruídos e houve vários assassinatos. “Aterrorizados pela ação da soldadesca e os tiros da artilharia, os habitantes dessas aldeias fugiram e encontram-se, agora, refugiados nas instalações da diocese, em Mandalay, a segunda cidade do país”, nota a Associação. O site da AILD tem um link a partir do qual é possível fazer um donativo.

A repressão militar, embora tenha uma especial incidência religiosa, é muito mais abrangente. Todos os que são de pensamento, linha de ação, etnia do atual poder militar sofrem perseguição, com risco de prisão, morte e destruição de património. Esta postura não é política!

2024.02.06 – Louro de Carvalho

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