quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Megaprocessos longos e investigação mais morosa do que o julgamento

 

 

A duração total de cada megaprocesso até trânsito em julgado, sem possibilidade de recurso, é, em média, de oito anose a fase de investigação é mais morosa do que a de julgamento. São duas das conclusões do estudo “Processos de especial complexidade”, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa (TJCL), divulgado pelo Conselho Superior da Magistratura (CSM).

O estudo, que foi apresentado a 8 de fevereiro, no âmbito da conferência “Megaprocessos – Quando a justiça criminal é especialmente complexa”, no TJCL, entre os dias 8 e 9, foi realizado a partir de 140 processos de criminalidade complexa distribuídos na comarca de Lisboa, de 2013 a 2023. Entre estes, estão processos como o Banco Português de Negócios (BPN), o caso EDP (que envolve Ricardo Salgado e Manuel Pinho), a Operação Marquês, mas exclui a recente Operação Influencer e um dos maiores processos da justiça: o caso do Universo Espírito Santo.

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É de anotar que a participação na referida conferência foi vedada aos procuradores por parte da Procuradoria-Geral da República (PGR), pelo que o debate só contou com a participação de juízes, de advogados, de órgãos de polícia criminal, de académicos e de jornalistas. De facto, a PGR assume que “o momento não é de todo propício a que, no contexto do mencionado evento, essa reflexão possa ser feita com rigor e serenidade” e considerou “desaconselhada a participação de magistrados do Ministério Público [MP]”. Uma bela “lei da rolha” da PGR!

O tema dos megaprocessos é muito debatido por serem processos especiais e “mais complexos”, impondo necessidades logísticas superiores aos processos comuns. Por isso, “não permitem o tratamento e julgamento no tempo considerado adequado, levando, muitas vezes, a que a imagem da Justiça saia prejudicada”, segundo o comunicado da conferência.

“Salvaguardar esta situação é uma preocupação antiga da Comarca de Lisboa, que se tem debruçado sobre o assunto. Nesse sentido, os Gabinetes de Apoio aos juízes e ao presidente da Comarca realizaram, ao longo dos últimos dois anos, um estudo quantitativo e qualitativo sobre os processos de especial complexidade ali tramitados”, refere a Comarca de Lisboa.

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Segundo o estudo, todas as fases processuais são mais céleres, quando há medidas de coação privativas da liberdade, como a prisão preventiva ou a prisão domiciliária, sendo que os períodos mais rápidos, neste contexto, decorrem entre a acusação e a fase seguinte e a decisão instrutória e o julgamento. Na totalidade dos processos analisados, 77% têm uma fase de investigação mais demorada, face à de julgamento. Assim, os processos mais morosos, na fase de inquérito, não correspondem aos mais demorados, na fase de julgamento.

Entre as causas da morosidade dos processos, está o número de testemunhas quando são ouvidas mais do que uma vez ou quando se ouvem menos testemunhas por sessão, o número de sessões de julgamento e a existência de “incidentes”, como o pedido de escusa do juiz, o pedido de perícias, as recusas do juiz, a arguição de nulidades ou o conflito negativo de competência.

Entre os tipos de crime dos processos que mais demoram a investigar, na fase de inquérito, estão o terrorismo, a fraude, a discriminação racial, o branqueamento e o abuso de confiança; na fase de instrução, contam-se o abuso de poder, a falsificação, a corrupção e o peculato; e, na fase de julgamento, sobressaem os crimes de extorsão/coação, de abuso de poder, de abuso de confiança, de abuso de autoridade militar e de peculato.

Entre todas as fases do processo, a duração total até trânsito em julgado, na Comarca de Lisboa, é de oito anos e um mês, em média. Ainda assim, 6% dos processos demoram mais de 15 anos, até ficarem concluídos. E, nos 57 processos sem trânsito em julgado, a decorrer na Comarca de Lisboa, a média é de nove anos e três meses, ou seja, superior aos processos que já transitaram em julgado. O maior número de processos situa-se entre os oito e nove anos (21%). Cerca de 9% dos processos demoram mais de 15 anos. E, analisando a duração total dos processos com e sem medidas de coação, conclui-se que há predominância de processos até oito anos de duração total, quando há medidas de coação privativa da liberdade. Já nos processos sem medidas de coação, existe uma maior distribuição ao longo do tempo.

Relativamente às fases processuais dos processos sob estudo, conclui-se que é possível verificar a relação de tempo das três fases, “sendo que, em 77% dos processos, a fase de investigação é superior à fase de julgamento”. Na fase de inquérito, dos 132 processos analisados, verificou-se que, em média, a duração é de três anos e oito meses. A maioria dos processos duram até três anos e apenas 6% duraram mais de sete anos. Na fase de instrução, dos 118 processos considerados, a duração média foi de cinco meses e 25 dias. “Apesar do valor médio indicado, verifica-se que, na maioria dos processos, 53% (62), esta fase dura até três meses. No entanto, 18% (21) dos processos apresentam uma duração superior 14 a nove meses”, lê-se no estudo, que refere: “Se for tida em consideração metade do tempo médio de instrução, dois meses e 28 dias, existem 51 processos com esse tempo ou tempo inferior. Assinala-se, porém, que em 10 processos a instrução durou menos de um mês.”

Na fase de julgamento, dos 109 processos analisados, a duração média é de cerca de dois anos e três meses. “Na maioria dos processos, 57% (62), a fase de julgamento tem uma duração inferior a dois anos e somente 9% (nove) dos processos duram mais de cinco anos”, diz o estudo.

Com julgamento realizado até metade do tempo médio, um ano e um mês, encontraram-se 44 (40,4%) processos, havendo seis em que esta fase durou menos de seis meses. “Quando se tem em consideração o dobro do tempo médio de julgamento, quatro anos e seis meses, encontram-se 11 (10,1%) processos com valores iguais ou superiores. Destes, sobressaem quatro em que o julgamento durou mais de sete anos”, lê-se no estudo.

Os megaprocessos, ou processos de especial complexidade, englobam vários tipos de crimes que podem ir do branqueamento ao peculato. No estudo, foi analisado apenas o crime principal ou mais relevante, tendo em conta o número de crimes totais no processo associado ao crime-base, a distinção do crime-base dos crimes instrumentais e o crime-base numericamente prevalecente em sede das várias fases. Em 55 processos, o crime principal é o de associação criminosa (40%), mas, como este crime “tendencialmente cai em sede de julgamento”, nestes casos, o estudo focou-se no crime seguinte mais relevante. “Verifica-se que o crime com maior incidência é a burla (com 35 processos – 25% do total), seguida da fraude e da corrupção. No outro extremo (com apenas um processo), temos vários tipos de crimes”, refere o estudo.

Considerando os processos já com trânsito em julgado, 68 processos, os mais morosos foram os relativos à extorsão/coação, à fraude e ao abuso de poder, que tiveram uma média de duração de mais de 10 anos. Já os menos morosos, foram os processos com crimes de auxílio à imigração ilegal e ao roubo, com uma média de quatro anos.

O estudo conclui ainda que, relativamente ao número de crimes, não parece haver relação com a duração da fase de inquérito. “Apesar de o processo com o maior número total de crimes (7679 crimes) ter demorado quase sete anos em fase de inquérito, o processo que demorou mais tempo tinha apenas um total de 32 crimes”, refere o estudo. E, tendo em consideração o prazo médio da fase de inquérito, por grupo de número de arguidos, parece haver ligeira relação, mas não muito definida. Ou seja, conforme aumenta o número de arguidos, o prazo do inquérito diminui.

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O advogado Paulo Saragoça da Matta, um dos oradores da Conferência, diz que não há “demora na Justiça penal”. A Justiça penal, tal como a cível, recuperou imenso dos atrasos da década de 90 do século XX e do início deste século. Porém, nos megaprocessos, todos os tempos são, por definição, mais dilatados, dando a perceção pública (em regra, os megaprocessos são mediáticos) de que a Justiça penal é morosa. Assim, a demora limita-se aos megaprocessos.

Em sua opinião, não há que ‘partir’ nenhum megaprocesso: apenas cumprir o que a Lei estabelece.

Só se deve criar um megaprocesso, quando não há outra solução para realizar as pretensões punitivas do Estado, e não seja caso para separação de processos. Contudo, pensa que as investigações de alguns departamentos de investigação e ação penal (DIAP) usam o método oposto. Seguindo a metodologia do Fio de Ariadne, encontram “verdades” que têm de demonstrar. E, em vez de autonomizarem cada verdade, optam por inserir no mesmo sistema vários problemas. Assim, se começam por procurar a corrupção numa adjudicação pública, acabam por inserir, no processo, a investigação e acusação desse ato corrupto e de mais uns tantos e a de recebimentos indevidos de vantagem, de prostituição de menores, de pornografia infantil, de imensas fraudes fiscais e de branqueamentos de capitais. É um errado paradigma de modelo investigatório

Desconhece as razões da proibição de os procuradores participarem na conferência sobre o tema. Sabe que, na PGR, se tomam decisões a bem da República. Havendo 77% dos processos mais demorados na fase de inquérito do que na fase de julgamento, pensa que é “muito difícil fazer investigação criminal em processos de extrema complexidade”. Os megaprocessos são, em regra, de extrema complexidade, sobretudo se incidirem nos “crimes de catálogo especial”: corrupções, oferecimento ou recebimentos indevidos de vantagem, branqueamento de capitais, etc. São crimes de rasto muito difícil de detetar (hoje mais detetáveis do que antes, mercê das alterações legais dos últimos 20 anos), por serem, muitas vezes, transnacionais, por ocorrerem sob um véu de silêncio. Ninguém, por exemplo, declara ao serviço de finanças proventos ilícitos de atos de corrupção. Por isso, isso é “ilógico de falar em fraude fiscal, por não declaração de proventos emergentes de corrupção”, pois “nunca ninguém tal defendeu para os proventos do tráfico de droga, por exemplo.

Assim, os inquéritos têm de ser longos. “O que é complexo, é complexo.” Por isso, espanta-o a posição de juízes, de procuradores, de jornalistas e de comentadores mediáticos (“especializados em processo penal”, sem terem entrado num julgamento penal), quando entendem que é excessivo o tempo de instrução que dura dois anos, sovando os juízes de instrução criminal (JIC) a cargo de quem o processo pende, se antes houve um inquérito de seis anos. O mesmo diz das críticas aos Tribunais de Julgamento. E assente: “Do erro do MP ou do advogado pode nada resultar, mas do erro do julgador pode resultar a destruição de uma família, além do óbvio sofrimento para o condenado.”

Quanto à comunicação (ou falta dela) da parte do MP/PGR, diz que, em vez de avaliar a sua prestação, deve “dar-se a precedência às instituições para se justificarem do que fazem, porque fazem, ou o que pensam fazer no futuro, perante as experiências do passado”. E da prestação de contas, perante a sociedade e perante cada utente da Justiça, por parte da Magistratura Judicial e do MP, considera-a “apenas simbólica e interior aos próprios corpos judiciários respetivos”. 

Questionado se faz sentido deixar de existir a fase de instrução, no processo penal, refere que, “se for para ter uma instrução igual à que temos tido desde 1988” e como a querem muitos operadores da Justiça e comentadores, “podem acabar com ela”. Porém, “nunca deveria ser abolida”, pois “a submissão de alguém a julgamento penal é um ato de grande gravidade, altamente lesivo do arguido, tal como em tempos o Tribunal Constitucional [TC] considerou”. Por isso, “não deve ser uma macaqueação de instrução”, que o é, hoje, na maioria dos casos. Se é fase para contraditar a decisão de acusar, só é séria, se nela se permitir exercer contraditório à prova só “produzida’ pelo MP com vista a acusar e se nela se permitir apreciar nova prova que infirme a carreada pelo MP em inquérito. Se for para cumprir um mero formalismo, será inútil.

Não pensa que haja perseguição dos políticos ao MP, mas que há políticos a não cumprir o seu dever e que o MP age com mais liberdade do que antes. Quanto a falhar, todos podem falhar!

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Pelo exposto, é lamentável que responsáveis judiciários travem o debate sobre temas tão sérios. É sempre invocável, se quisermos, a falta de condições para o debate.

2024.02.08 – Louro de Carvalho

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