quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Estado quer ser ressarcido da indemnização paga à família de Ihor

 

O Estado português, em nome do “direito de regresso”, pretende ser ressarcido da indemnização 712 950 euros que pagou à família pela morte do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk, em 12 de março de 2020, em virtude da qual foram condenados a pena de prisão efetiva de nove anos três ex-inspetores do extinto Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Tal pretensão implicaria o erário público vir a receber, de cada um, 237 650 euros.

O montante da indemnização, assumido pelo Estado pelo facto de se tratar de uma morte ocorrida (provocada?) em instalações do Estado e à guarda da polícia portuguesa, foi arbitrado, em dezembro de 2020, pela Provedora de Justiça.

Os referidos inspetores, que foram demitidos da função pública, em outubro de 2023, em resultado de processo disciplinar, estão a cumprir, no estabelecimento prisional de Évora, penas que lhes foram aplicadas, não pelo crime de homicídio, mas pelo crime de ofensas à integridade física qualificada e agravada pelo resultado, que foi a morte.

Ora, admitindo que a pena aplicada é justa – para o cidadão comum, não é percetível a justeza da diferença entre morte provocada (homicídio) e ofensas à integridade física de que resulte a morte, mas seria difícil avaliar a intenção comportamental dos arguidos – a indemnização calculada unilateralmente, e não por um tribunal, com direito a suficiente contraditório e a recurso, não parece dever ser imputada aos arguidos e condenados criminalmente. Por outro lado, como refere a defesa de um dos justiçados (pelos vistos, secundada pela dos outros), a indemnização em causa ultrapassa “os valores considerados justos e equitativos, em situações similares, pela jurisprudência uniforme dos tribunais superiores”.

A defesa de Luís Silva, a primeira que deu entrada no tribunal, sustenta que a decisão de pagar foi meramente política.Se o Estado português decidiu atribuir alguma indeminização à família de Ihor Homeniuk, fê-lo no cumprimento de uma obrigação natural, isto é, uma obrigação de natureza moral, e não no cumprimento de uma qualquer obrigação de natureza civil, portanto nós entendemos desde logo por essa razão que não há lugar a qualquer direito de regresso”, alega a advogada Maria Manuel Candal.

Salienta, igualmente, a defesa que a Provedora de Justiça se baseou, para o cálculo dos danos patrimoniais – num total de 314 950 euros –, nas informações comunicadas pela viúva de Ihor, Oksana Homeniuk, sem apresentação de prova documental nem quanto ao que Ihor auferia, nem quanto aos rendimentos da própria. 

Afirmando desconhecer se a viúva tinha a profissão de professora e auferia 300 euros por mês e não acreditar que Ihor Homeniuk tivesse um rendimento mensal de 1500 euros na atividade de construção civil, num total anual de 18 mil euros, a defesa cita a decisão da Provedora de Justiça, qual reconhece essa ausência de prova: “Sem que haja junção de comprovativo documental, invoca-se um rendimento mensal de cerca de 1500 euros […] Cumpre superar a evidente dificuldade gerada pela não apresentação de prova documental do rendimento alegado, designadamente de índole fiscal […].” Contudo, segundo a advogada, a Provedora de Justiça superou a dificuldade “dando de barato” que a informação comunicada estava correta.

Também a fixação dos montantes para os danos de sofrimento antes da morte e para os danos morais (não patrimoniais) é motivo de contestação, por estarem em causa valores muito superiores – entre 10 vezes mais (para o sofrimento antes da morte, que foi avaliado em 100 mil euros) e duas vezes mais (para os danos morais da viúva e dos filhos, 56 mil euros para cada) – aos atribuídos pela jurisprudência dos tribunais superiores em danos similares. É, ainda, reputada de ilegal a compensação por danos morais paga ao pai de Ihor (50 mil euros).

Efetivamente, a ilegalidade apontada resulta de, aquando da habilitação de herdeiros efetuada na Ucrânia, após a morte de Ihor, o seu progenitor ter renunciado, a favor da nora e dos netos, a qualquer direito; de, segundo a lei portuguesa (ver artigo 496.º do Código Civil), numa situação de morte, o direito a ressarcimento por danos não patrimoniais só é devido a ascendentes, caso não haja cônjuges não separados e filhos; e de a Resolução do Conselho de Ministros, de 10 de dezembro de 2020 (que resolveu atribuir uma indemnização à família, a arbitrar pela Provedora de Justiça) referir apenas a viúva e os dois filhos como recipientes da mesma.

Todavia, a Provedora de Justiça entendeu, ao fixar a indemnização por danos não patrimoniais, “não desmerecer a dor dos pais […] pela circunstância de concorrerem cônjuge e filhos”, assumindo que tanto na fixação do valor da compensação do progenitor como da viúva e filhos “os valores estabelecidos têm como horizonte o máximo adotado em procedimentos similares, superando-o”.

Apresentadas durante o mês de fevereiro, as contestações dos ex-inspetores respondem à ação de que o Estado português deu entrada, ainda em 2023 (dentro do prazo de três anos para exercer o direito de regresso), no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa (TACL), requerendo que este ordene aos três ex-inspetores que reembolsem o erário público do montante despendido.

Na sua petição inicial, o Estado, representado pelo Ministério Público (MP), lembra que a dita Resolução do Conselho de Ministros, que assumiu o pagamento da indemnização, refere que será exercido o direito de regresso, relativamente à mesma, “nos termos que resultarem da responsabilidade individual judicialmente provada”. E cita a Lei da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Pessoas Coletivas, a qual determina que o Estado e as pessoas coletivas de direito público “são responsáveis de forma solidária com os respetivos titulares dos órgãos, funcionários e agentes, se as ações ou omissões […] tiverem sido cometidas por estes no exercício das suas funções e por causa desse exercício”. Daí decorre que, sempre que o Estado e pessoas coletivas de direito público atribuam qualquer indemnização por aquele tipo de situação, “gozam de direito de regresso contra os titulares de órgãos, funcionários e agentes responsáveis”, sendo este exercício “obrigatório”.

Sendo assim, conclui o MP: “Sentenciada criminalmente a culpa dos réus [os três ex-inspetores] na morte de Ihor Homeniuk, quando em funções públicas […], tem o Estado português o direito de por eles ser ressarcido integralmente nos montantes que pagou aos herdeiros do falecido, ou seja a reaver os 712 950 euros.”

Porém, como refere a contestação, há outro processo criminal a correr, aguardando julgamento, em relação com a morte de Ihor, com mais cinco arguidos. Trata-se de três inspetores do extinto SEF – incluindo o ex-diretor de Fronteiras de Lisboa, António Sérgio Henriques, entretanto, tal como os três ex-inspetores condenados, demitido da função pública –, e dois seguranças da empresa de segurança privada Prestibel. Dois dos inspetores em causa estão acusados de homicídio negligente por omissão, o que, a ficar provado, significará corresponsabilidade na morte de Ihor.

Estabelecendo a dita resolução do Conselho de Ministros que a responsabilidade indemnizatória se assumia “relativamente à morte de um cidadão à guarda do Estado e em instalações públicas”, argumenta a defesa de Luís Silva que o direito de regresso, a ser reconhecido, teria de se exercer, igualmente, sobre os arguidos deste outro processo, no caso de virem a ser condenados. Por isso, requere que esses arguidos e a empresa Prestibel sejam chamados ao processo instaurado pelo Estado no TCAL e que esta mesma ação seja suspensa até existir decisão, com trânsito em julgado, no processo criminal em curso, aduzindo: “A decisão que venha a ser proferida neste processo-crime é absolutamente indispensável para a boa decisão da presente causa.”

Tendo a viúva de Ihor apresentado, neste novo processo-crime, um pedido de indemnização de 700 mil euros (que o juiz considerou fora de prazo) – no quadro do apoio à vítimas da guerra na Ucrânia (não se vê a conexão) – em relação aos referidos cinco arguidos e à empresa de segurança privada Prestibel, a defesa de Luís Silva contesta a sua legitimidade, pois, com o pagamento à assistente e aos demais herdeiros de Ihor Homeniuk da quantia apurada no âmbito do denominado “Processo de Indemnização”, ficaram eles inteiramente ressarcidos de todos e quaisquer danos sofridos por Ihor, desde a sua entrada em Portugal e até ao seu falecimento.

Assim, a defesa sustenta que o Estado não tem qualquer direito de regresso – nem sobre os três condenados passados, nem sobre os eventualmente futuros condenados – em relação à indemnização atribuída, já que a decisão de a pagar não resultou de condenação judicial. Portanto, se o Estado decidiu proceder ao pagamento da aludida indemnização, fê-lo no cumprimento do que terá perspetivado como obrigação natural, e não ao abrigo de uma obrigação civil.

Por outro lado, recorda que foi o Estado a declarar, em novembro de 2020, em sede do processo criminal contra os três inspetores e através do MP (que assumia o papel, simultaneamente, de acusador dos arguidos e de defensor do Estado, do qual eram funcionários), a “nulidade insanável” do pedido de indemnização de 999 mil euros, ali apresentado por Oksana Homeniuk, por considerar que o tribunal em causa – o criminal – não era para tal competente.

Uma vez decidido pelo governo o pagamento de uma indemnização a Oksana e filhos, o tribunal criminal perguntou à viúva, assistente no processo criminal, se mantinha interesse no pedido de indemnização ali efetuado, tendo ela desistido do pedido, declarando-se “inteiramente ressarcida”, o que levou o tribunal a extinguir a instância cível.

Por fim, a defesa proclama que jamais os ex-inspetores seriam condenados, pelo tribunal, a pagar uma indemnização do valor “unilateralmente decidido pelo Estado”, porque não só o pedido efetuado pela viúva entrara fora de prazo – o que deveria implicar a respetiva nulidade – como o tribunal nunca atribuiria um valor “sequer próximo” do que foi pago à família, “por total ausência de fundamento legal” e “total ausência de fundamento de facto.”

Na verdade, em novembro de 2021, aquando do julgamento dos recursos dos ex-inspetores no Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), o procurador que ali representava o MP criticou o valor da indemnização atribuída à família de Ihor, alegando que, “se o Estado Português tiver de dar tanto dinheiro por uma indemnização, vai à falência em pouco tempo”. Porém, o advogado de Oksana Homeniuk reagiu, invocando as indemnizações, igualmente fixadas pela Provedora de Justiça, respeitantes às vítimas dos incêndios de 2017, o que, do meu ponto de vista, não quer dizer que os factos sejam equiparáveis ou que os cálculos das indemnizações individuais tenham sido corretos. O mesmo não digo das verbas alocadas para recuperação daquela faixa territorial.   

***

Parece que há, neste caso, algumas confusões. Se é difícil compreender que, em ato de que resultou a morte de alguém, dois arguidos tenham sido condenados a nove anos de prisão e outro da mesma categoria funcional a sete anos (isso teria acontecido, se o TRL não tivesse corrigido a decisão do tribunal de primeira instância), também é difícil aceitar que todos tenham tido o mesmo grau de culpabilidade no ato. Por outro lado, confunde-se o papel do Estado na sua componente diplomática – fez bem em sentir-se responsável e em pagar pela morte de um cidadão estrangeiro em instalações à sua guarda e por funcionários dos seus quadros ou de empresa por si contratada – com a responsabilidade criminal e civil de pessoa singular. Também é inegável que o valor da indemnização em causa ultrapassa o determinado pelos tribunais em casos similares. Recordo, a título de exemplo, que a indemnização calculada pelo homicídio de um militar da Guarda Nacional Republicana (GNR), em 2015, pouco passou da centena de milhar de euros.

Por fim, não veio a lume o eventual comportamento pelo qual Ihor foi vítima de maus tratos. E, se a morte não foi provocada, mas decorreu de meras agressões (?), como pode imputar-se uma indemnização ao excesso dos agressores policiais?

2024.02.29 – Louro de Carvalho

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