segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Depois de provado no deserto, Jesus anuncia o Reino de Deus

 

No primeiro domingo da Quaresma, no Ano B, a liturgia mostra que Deus nunca desiste de recriar o mundo do homem, ferido pelo egoísmo e pela maldade; e desafia-nos a cooperar com Deus na construção de um mundo novo, de harmonia e de paz, que é o desígnio do Criador.

No Evangelho (Mc 1,12-15), Jesus recusa o mal e opta pelo caminho indicado pelo Pai, que está «na origem de um mundo novo, o Reino de Deus. E conta com os discípulos para serem, em todos os momentos da História humana, seus construtores e arautos.

Marcos inicia a narrativa, começando por nos situar num deserto não identificado, mas não longe do lugar onde João Batista batizou Jesus. É o momento em que Jesus faz a sua opção fundamental. Depois, Marcos apresenta-nos um sumário-anúncio da pregação inaugural de Jesus sobre o Reino. Já não está Jesus no deserto, mas na Galileia, região setentrional da Palestina, terra cosmopolita em permanente contacto com uma população pagã e, portanto, considerada à margem da História da salvação, mas sendo aí que a proposta de Deus começa a ecoar no mundo dos homens.

De acordo com o evangelista, o Espírito que ungiu Jesus, no batismo no rio Jordão, impeliu-o, logo a seguir, para o deserto. A partir daqui – e não só neste quadro – Jesus é impelido pelo Espírito, em ordem à concretização da missão que o Pai lhe confiou.

O deserto é, na Teologia de Israel, o lugar privilegiado do encontro com Deus: experimentou ali o Povo o amor e a solicitude de Javé e propôs ali Javé uma Aliança a Israel. Porém, o deserto é lugar de prova: ali foi Israel confrontado com opções e sentiu, várias vezes, a tentação de escolher rumos opostos aos de Deus. Portanto, o deserto para onde Jesus vai é o lugar do encontro com Deus e do discernimento, o lugar onde é confrontado com a tentação de abandonar Deus e de seguir outro caminho. Vivendo entre feras, Jesus é servido pelos anjos.

No deserto, Jesus ficou “quarenta dias”. Este número, frequente no Antigo Testamento (AT), evoca, inúmeras vezes, o tempo da caminhada do Povo de Israel pelo deserto, desde que deixou a terra da escravidão, até entrar na terra da liberdade; define o tempo que Moisés ficou no monte, junto de Deus; recorda a duração da caminhada de Elias para o Horeb, o monte de Deus; e presentifica um tempo de prova que é tempo de manifestação da ação salvífica de Deus.

Durante esse tempo, Jesus foi “tentado por Satanás”. O termo “satanás” designava, originalmente, o adversário que, em julgamento, acusava. Mais tarde, passou a designar uma personagem que integrava a corte celeste e que acusava o homem diante de Deus. Na época de Jesus, a figura de satanás evocava um espírito mau, inimigo do homem, que procura destruir o homem e frustrar o plano de Deus. É neste sentido que Satanás tenta levar Jesus a esquecer o desígnio de Deus e a fazer escolhas pessoais em contradição com a vontade do Pai.

Marcos não especifica as tentações que Jesus enfrentou, mas é natural que pensasse (como Lucas e Mateus), em tentações de poder e de messianismo político. O deserto era tido como o lugar de refúgio dos agitadores e dos rebeldes com pretensões messiânicas. A tentação pretenderia, pois, induzir Jesus a enveredar por um caminho de poder, de autoridade, de violência, de messianismo político, frustrando o plano de Deus que passava pelo messianismo do amor incondicional, do serviço, do dom da vida.

A referência às feras que rodeavam Jesus e aos anjos que O serviam alude a interpretações de Gn 2-3, em voga nos ambientes rabínicos, no século I. Alguns mestres de Israel ensinavam que Adão vivia no paraíso em paz com todos os animais e que os anjos estavam à sua volta para o servir; mas, quando escolheu o caminho da autossuficiência e se revoltou contra Deus, rompeu-se a harmonia original, os animais tornaram-se inimigos do homem e até os anjos deixaram de o servir. A catequese rabínica adiantava que a chegada do Messias faria nascer um mundo harmonioso, sem violência e sem conflito, onde os animais ferozes viveriam em paz com o homem. Seria o regresso ao plano original de Deus para os homens e para o Mundo. É isso que Marcos está a sugerir: com Jesus, chegou o tempo messiânico de paz sem fim, o tempo de o mundo regressar a essa harmonia que era o plano inicial de Deus. Por outro lado, parece estabelecer um paralelo entre Adão e Jesus: Adão cedeu à tentação e escolheu caminho contrário ao de Deus e criou inimizade, escravidão, sofrimento; Jesus escolheu viver na completa fidelidade ao plano de Deus e fez nascer um mundo novo, de harmonia, de paz, de amor, de felicidade sem fim.

Na segunda parte do trecho em apreço, acompanhamos Jesus à Galileia e testemunhamos como Ele, impelido pelo Espírito, concretiza a missão que o Pai lhe confiou.

Ora, as primeiras palavras de Jesus são: “Chegou o tempo.” É o tempo do Reino de Deus. A expressão – frequente no Evangelho de Marcos – vinca um dos grandes sonhos do Povo de Deus.

A catequese de Israel referia-se, com frequência, a Javé como ao rei que governa o seu Povo. Mesmo quando Israel passou a ter reis terrenos, eram tidos como servos de Deus, escolhidos e ungidos por Javé para governarem o Povo, em nome Deus, o verdadeiro rei. O exemplo mais típico do rei/servo, submetendo-se em tudo à vontade de Deus, é David. A saudade deste rei ideal e do tempo ideal de paz e de felicidade em que Javé reinava (através de David) sobre o seu povo marcará toda a História futura de Israel. Nas épocas de frustração nacional, quando reis medíocres guiavam a nação por caminhos de morte e de desgraça, o Povo sonhava com o regresso ao tempo de David. E os profetas alimentarão a esperança do Povo, anunciando a chegada do tempo futuro, em que Javé voltará a reinar sobre Israel e restabelecerá a situação ideal da época de David. A tarefa será confiada a um ungido que Deus enviará ao seu Povo. Esse ungido (“messias”, em Hebraico; “cristo”, em Grego) estabelecerá, em definitivo, o reino de paz, de justiça, de abundância, de felicidade.

O Reino de Deus é, pois, uma noção que resume a esperança de Israel num mundo novo, preparado por Deus para o seu Povo. Esta esperança está bem viva no coração de Israel na época em que Jesus aparece a dizer: “Cumpriu-se o tempo e está próximo o reino de Deus”. Certas afirmações de Jesus, registadas nos Evangelhos sinóticos, mostram que Ele tinha consciência de estar ligado ao Reino e de que a chegada do Reino dependia da sua própria ação.

Jesus começa a construção do Reino, pedindo aos conterrâneos a conversão (“metanoia”) e o acolhimento da Boa Nova (evangelho). “Converter-se” é transformar a mentalidade, as atitudes e os comportamentos, reformular os valores que orientam a vida, reequacionar a vida, de modo que Deus esteja no centro da existência do homem e ocupe sempre o primeiro lugar. “Acreditar” é aderir à pessoa de Jesus, escutar a sua proposta, acolhê-la no coração, fazer dela o guia da própria vida; é escutar essa Boa Notícia de salvação que Jesus traz e fazer dela o centro à volta do qual se constrói toda a existência.

Conversão e adesão ao desígnio de Jesus são duas faces de uma mesma moeda: a construção do um Homem Novo, com novos valores, com uma postura vital inteiramente nova. Teremos, então, um mundo novo – o Reino de Deus.

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primeira leitura (Gn 9,8-15) é um extrato da narrativa de um cataclismo que lavou o mundo do pecado. Ensina que Deus, depois de eliminar o mal, não está interessado em fazer guerra aos homens; por isso, depõe o seu arco de guerra e oferece-lhes uma Aliança incondicional de paz. O trecho em causa faz parte de uma secção que abrange Gn 6,1-9,17. É a história de um cataclismo de águas, que teria eliminado toda a humanidade, exceto Noé e a sua família.

Alguns estudiosos consideram que o dilúvio bíblico pode estar conexo com o fim da era glaciar, quando a fusão dos gelos provocou notáveis avalanchas de água que invadiram as terras habitadas e deixaram profundos sinais na memória coletiva. Contudo, é provável que o dilúvio do Génesis (contado em moldes semelhantes em certos textos mesopotâmicos) seja uma das catastróficas inundações dos rios Tigre e Eufrates, entre 4000 e 2800 a.C.. É provável que o texto bíblico evoque essa realidade. Não foi um dilúvio que submergiu a terra inteira, mas a fantasia popular, a partir de uma das inúmeras inundações da planície mesopotâmica, expandiu as dimensões do acontecimento e apresentou-o como castigo divino que atingiu toda a Humanidade.

Os catequistas de Israel dizem ao Povo que Deus não fica de braços cruzados, quando os homens se lançam por caminhos de corrupção e de pecado. E, porque Deus não castiga, às cegas, bons e maus, justos e injustos, propõem a saga do justo Noé e da família, salvos por Deus.

Na fase subsequente ao dilúvio, tendo deixado de chover e Noé e a família desembarcado em terra seca, os sobreviventes construíram um altar e ofereceram holocaustos sobre ele. E Deus comprometeu-Se a não mais castigar os seres vivos, de forma tão drástica, abençoou Noé e a família, fez com eles uma Aliança de Paz e entregou-lhes o cuidado da criação. Noé e a sua família são a nova Humanidade, que nasceu da água purificadora.

Trata-se da primeira Aliança entre Deus e os homens (a segunda será entre Deus e Abraão; a terceira será a Aliança do Sinai, entre Deus e Israel). Porém, esta é diferente das Alianças que serão, mais tarde, feitas com Abraão e com Israel. Nas Alianças posteriores, um indivíduo ou um Povo eram chamados a uma relação de comunhão com Deus e aceitavam ou não esse desafio; se o indivíduo ou o Povo em causa não aceitassem, não haveria relação e, portanto, não haveria Aliança. Todavia, a Aliança de Javé com Noé e seus descendentes não implica adesão ou reconhecimento da parte do homem, nem implica promessa do homem de não voltar a percorrer caminhos de corrupção e de pecado. Deus sabe que o homem é frágil e pecador; mas, por sua iniciativa e sem contrapartidas, decide nunca mais entrar em guerra com os seres que criou. Esta Aliança é uma decisão unilateral de Deus, que decide viver em paz com a sua criação.

Deus tomou esta decisão, porque o seu amor é infinitamente maior do que a vontade de castigar. Porque ama, Deus decidiu viver em paz com os homens e garante-o através de um compromisso solene. Doravante, o ser humano não precisará de viver com medo de Deus.

O sinal desta decisão é o arco-íris. Em hebraico, a palavra “qeshet” designa o arco-íris e o arco de guerra. Jogando com tal duplicidade, o teólogo sacerdotal sugere que Javé pendurou na parede do horizonte o arco de guerra, a demonstrar a intenção pacífica. O arco-íris, sinal que toca o céu e a terra, é o arco de Javé, pelo qual o desígnio de paz de Deus abraça o mundo e os homens.

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segunda leitura (1Pe 3,18-22) recorda-nos que, pelo Batismo, os cristãos aderiram a Cristo e à salvação que Ele trouxe. E, envolvidos nesse dinamismo de vida e de salvação que brota de Jesus, são semente de uma nova humanidade.

A Primeira Carta de Pedro é dirigida aos cristãos de cinco províncias romanas da Ásia Menor: a Bitínia, o Ponto, a Galácia, a Ásia e a Capadócia. O autor apresenta-se com o nome do apóstolo Pedro, mas a análise literária e teológica não confirma que Pedro seja o autor do texto. A sua qualidade literária não corresponde ao modo de escrever de um pescador pouco instruído, como é o caso de Pedro; a teologia presentada demonstra uma reflexão posterior à época de Pedro; e o ambiente descrito na carta corresponde à situação da comunidade cristã no final do século I, quando Pedro já tinha morrido. Portanto, o autor será um cristão anónimo – talvez o responsável de uma comunidade cristã –, culto e que conhece profundamente o pensamento petrino e a situação das comunidades cristãs da Ásia Menor.

Os destinatários são comunidades rurais que vivem à margem das grandes cidades. A maioria dos seus membros são pastores ou camponeses que trabalham propriedades não suas; mas há também, entre eles, pequenos proprietários de terras. Trata-se, em geral, de gente economicamente débil, vulnerável ao crescente clima de hostilidade para com o cristianismo.

O trecho em referência é a parte final de uma perícope (cf 1 Pe 3,13-4,11) na qual o autor expõe qual deve ser a atitude dos crentes, confrontados com as provocações, as injustiças e a hostilidade do mundo. Depois de pedir aos crentes que, mesmo no sofrimento, não se cansem de fazer o bem, a carta apresenta a razão fundamental pela qual os crentes devem agir desta forma tão ilógica: o exemplo de Cristo.

Cristo, que era justo e bom e não tinha feito nada de mal, aceitou morrer para conduzir todos os homens – mesmo os maus e os injustos – ao encontro da vida verdadeira, da felicidade plena. A sua morte não foi um fracasso, pois a sua existência não terminou no sepulcro; vivificado pelo Espírito, Ele alcançou, de novo, a Vida e a glória; e, depois de vivificado pelo Espírito, Ele “foi pregar aos espíritos que estavam na prisão da morte e tinham sido outrora rebeldes”.

O autor refere-se, provavelmente, à verdade proclamada no credo de que Jesus ressuscitado teria descido “à mansão dos mortos”, para libertar todos os que eram prisioneiros da morte. A morte e a ressurreição de Cristo tiveram uma dimensão salvadora que atingiu toda a Humanidade, inclusive os pecadores que tinham perecido nas águas do dilúvio, no tempo de Noé.

Na sequência, o autor aproveita a imagem do dilúvio para avançar com a sua reflexão. Com o dilúvio, Deus fez surgir da água uma Humanidade nova. A água purificadora do dilúvio pode ser uma figura do Batismo. Ora, ao sermos batizados, aderimos a Cristo e participamos da salvação que Ele nos trouxe. Pelos méritos da entrega de Cristo, o pecado ficou sepultado na água do Batismo; morremos para o pecado, para ressuscitarmos com Cristo para uma Vida nova e fomos vivificados pelo Espírito. Animados pelo Espírito, comprometemo-nos a seguir Jesus na vida de dom, de entrega, de amor que Ele viveu; e, pelo batismo, nascemos para a vida do bem, da justiça, da verdade, ou seja, tornamo-nos pessoas novas. Por conseguinte, nós, batizados em Cristo, temos por missão dar testemunho da Vida nova que recebemos. Cristo é o nosso modelo. Se vivermos de forma coerente com a nossa opção por Cristo, seremos a semente de um Mundo novo.

2024.02.18 – Louro de Carvalho

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